Victor Oliveira Mateus é poeta e ensaísta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho apenas uma rotina matinal, pois todo o resto do dia depende de circunstâncias e pensamentos que me podem levar numa ou noutra direção. Assim, cerca de quatro horas de cada manhã são dedicadas à leitura de outros autores e daí até às catorze horas trato da correspondência, bem como de aspectos ligados à Editora Labirinto, onde tenho vindo, nos últimos anos, a coordenar alguns projetos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho momentos específicos para o trabalho, já que aspetos ligados quer a situações quer a estados emotivos podem favorecer mais um momento do que outro. A geometrização do dia em função do ato de escrever é algo que me é completamente alheio. Quanto à questão dos rituais para a escrita, penso existirem procedimentos específicos da escrita poética que só acidentalmente se coadunam com a escrita ensaística ou de um conto. No primeiro caso, o da poesia, gostaria de referir um excerto de Maria Gabriela Llansol, que, no seu Livro de Horas III (pp. 198-199), diz que determinadas imagens se vão depositando no seu trabalho de costurar como um tropel, um alvoroço, que lhe desperta o espírito e disciplina as mãos. É muito interessante esta imagem, daquela que é, na minha opinião, uma das maiores escritoras portuguesas do século XX, pois aqui é dito que o ato de escrever não é determinado pela Razão nem pela Vontade de quem escreve, embora estas variáveis sejam fundamentais, mas só num momento segundo, assim, o vetor da escrita poética vem ao Cuidado e à Atenção do poeta e não o contrário. Mais à frente, Gabriela Llansol diz ainda abrir um livro de S. João da Cruz e receber inteiramente o que vai ler, enfatizando-se assim que aquele que escreve não é, no momento originário da criação, aquele que impõe regras à escrita, mas sim aquele que a percepciona e acolhe. Ora, no ensaio ou no conto as metodologias são substancialmente distintas, no primeiro há todo um trabalho de pesquisa e investigação que urge fazer. Ganhei, ao longo das décadas em que lecionei, um método extremamente interessante: conseguia enquanto executava tarefas mecânicas ir concebendo objetivos, estratégias e técnicas de aprendizagem, ou seja, se o meu corpo travava ou acelerava um carro, a minha mente ia, por exemplo, estruturando um determinado instrumento de avaliação. Este desdobramento psíquico aplico-o com frequência à concepção e maturação de um ensaio ou de um conto, cuja escrita e respetivos melhoramentos poderão depois ocorrer nos momentos mais diversificados. Há, portanto, para mim, um abismo metodológico e de criação entre a poesia e os outros gêneros aqui referidos, mas, como é óbvio, tudo isto é muito pessoal.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Creio que parte desta pergunta foi já respondida anteriormente, acrescento, no entanto, que não tenho quaisquer metas ao nível da produção de texto, sejam elas diárias ou outras. Eu sou muito despojado relativamente ao meu trabalho, não sinto a necessidade de me forçar a uma publicação espartilhada por períodos temporais.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa para um ensaio é o corolário de um tema ou de uma inquietação que me acompanhou durante largos períodos de tempo, assim, sucede que, muitas vezes, a última etapa da pesquisa se acabe somando a notas, apontamentos e livros lidos num labor, que por razões que foram profissionais, ocorreram durante décadas. No ensaio nunca me debruço sobre algo que me seja indiferente e/ou em torno do qual eu não tenha feito inúmeras leituras, portanto, há qualquer coisa de lúdico naquilo a que eu chamo pesquisa. Depois o começar depende de vários fatores, pode acontecer perfeitamente, como num projeto que eu tenho agora em mãos, um monte de livros e apontamentos aguardar que eu regresse a eles, mas também pode suceder que após a pesquisa eu comece a redação imediatamente. Não tenho também aqui qualquer esquema rígido. Com a poesia é diferente, ela tanto pode estar meses sem me lançar o seu apelo, como posso escrever, de supetão, vários textos, aliás, isto ocorreu-me com a primeira parte do meu próximo livro que foi escrita em três dias, após largos meses da maior infertilidade poética, por conseguinte, é um pouco como referi na segunda resposta, na poesia a Palavra vem a mim por caminhos e determinações que me transcendem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Relativamente às travas da escrita e à procrastinação, estas não provocam em mim a mínima ansiedade, daí eu só aceitar trabalhos que tenham prazos bastante dilatados, suspeito sempre do trabalho por empreitada. Tenho muita dificuldade em entender um escritor enquanto tarefeiro. Aconteceu-me já, por exemplo, pedirem-me poemas com determinados prazos para projetos específicos e que eu ao ver que o tempo não me é suficiente, dizer ao coordenador do projeto que não posso corresponder com o que me é pedido. Não fico minimamente magoado com qualquer desacerto nestas coisas, pelo contrário, olho é com alguma estupefação quem quer ser tudo em tudo. Já a questão das expetativas não sei se se coloca com premência a quem vive e escreve muito à margem do ruído e do comerciável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número específico de revisões que costume fazer, isso depende da abrangência, da dimensão e do hermetismo do texto. No caso dos livros de poesia eu nunca os envio para a editora sem que alguns poetas os leiam, os critiquem e até me sugiram alterações. Não fico nada magoado com qualquer sugestão que se oponha àquilo que está escrito, antes pelo contrário, fico imensamente grato a quem me faz pensar. O meu próximo livro de poesia, a sair provavelmente em outubro, não seguiu para a editora sem que três poetas que eu admiro o lessem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Também aqui eu não tenho um padrão. Apesar de ter hoje uma boa relação com a tecnologia, eu tanto posso esboçar um poema, ou ideias para uma tese, numa série de guardanapos de papel se acaso estiver num café, como posso escrever diretamente no computador se estiver em casa, mais uma vez se infere, a partir do que tenho vindo a dizer desde o início: não sou eu que determino a Palavra ou a escrita, mas são elas que me usam como veículo que as registam e modelam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Na poesia as ideias podem irromper dos, e nos, mais diversificados contextos, algo que se me abre ao olhar ou um outro algo que me assoma à mente, de um modo ou de outro elas vêm quando e como querem. No ensaio podem-me ser sugeridas por um pedido ou encomenda, contudo, eu jamais me lanço ao trabalho se nele não tiver uma certa dose de prazer e serenidade. Não tenho quaisquer hábitos para manter a criatividade. Quando lecionei, e nas rubricas referentes à Psicologia da Inteligência, abordávamos temas que tinham a ver com este assunto, mas no meu quotidiano eu não lhe dou qualquer importância.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos foram-se esbatendo em mim as preocupações de concordância com as mais diversas variáveis epocais ou modais: a caça à metáfora; a caça à pontuação e aos artigos definidos; a caça aos adjetivos; etc. Nada disso se me apresenta hoje como elemento condicionador. Escrevo e ao escrever escrevo-me também num processo que é acima de tudo efêmero: a Palavra diz-se das mais diversificadas formas, aquele que a ouve e a transcreve tem muito pouca importância. Se pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos diria tão só que alguns são absolutamente dispensáveis.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que gostaria de fazer é sempre aquele que tenho em mãos e neste momento estou, com uma grande poeta espanhola, a trabalhar numa obra bilíngue que me está dando bastante prazer. A linha do horizonte, para mim, está a uma distância muito curta: eu não dou qualquer valor ao renome e a coisas semelhantes. O homem é um ser de passagem – e apenas isso! Os livros que eu gostaria de ler são aqueles que existem já e suspeito que não virei a ter tempo de os ler.