Víctor Gabriel Rodríguez é Livre-Docente em Direito Penal pela USP e Professor Associado de Direito Penal da USP/FDRP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo bem cedo, sempre gostei de redigir pela manhã. Creio que todos os escritores são assim, tem o processo criativo pelo amanhecer. Mas, com o passar dos anos (tenho 42, agora), noto que o processo tem-se agravado, por dois motivos. Primeiro, porque o processo de iniciar o dia se faz cada vez mais lento. Isso não é de todo mau, mas há que dar-se conta: preparar o café, vestir-se, começar o dia, tudo consome mais dos nossos minutos; como a natureza é sábia, a lentidão é compensada pelo segundo motivo: durmo bem menos que na juventude, então gradualmente retiro das horas de sono o que me consome o processo de levantar. Ou seja, acordo mais cedo.
A disciplina para colocar-se a escrever é essencial, e nela se encontra a rotina. Se não existe um rito, um procedimento-padrão, o natural é que te assalte a dúvida de o que fazer logo ao levantar. Se nossa atividade exigisse sair de casa e ir à loja ou à fábrica, como ocorre com outros trabalhadores, essa condição já nos determinaria a rotina. Como não temos essa imposição externa, temos de fazê-la por nós mesmos. Não é fácil.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Certa vez conversei com um amigo escritor sobre essa influência do relógio biológico e chegamos a algumas conclusões em comum. Sem dúvida, a produção escrita rende mesmo nas primeiras horas da manhã. É quando os textos se plasmam no papel ou na tela. Mas o cotidiano da escrita reserva outras horas de trabalho que a experiência mostra serem igualmente importantes. A leitura, a reflexão, as idéias mais absurdas nascem da tarde pra noite. Elas não são o texto em si, mas o texto delas depende. Uma frase anotada à mão à meia noite pode significar três páginas inspiradas e coerentes na manhã seguinte. Interdependência pura.
Para ser um pouco mais preciso quanto ao horário, em geral uma revisão de texto durante a tarde funciona bem para temperança: é mais fácil colocar-se no lugar do leitor, notar os excessos – por assim dizer – de personalidade do texto feito pela manhã. Mas note: falo sobre o texto criativo. Informes, relatórios, cartas de recomendação e demais burocracias deixo sempre para esses horários tardios, a fim de não consumir aqueles minutos matinais mais preciosos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo absolutamente todos os dias, mas não por uma meta diária de páginas. Se trabalhamos por número de páginas, o mais provável é que se produzam muitas laudas de quase lixo.
Escrevo todos os dias porque minha profissão é essa, embora rejeite o predicativo de “escritor”. À exceção de Cervantes e outros pouquíssimos, creio que ninguém se pode dizer escritor. O que ocorre é que o texto escrito é a estrutura de qualquer trabalho que eu tenha de entregar, para ganhar a vida: aula, livro didático, tese, artigo, palestra, narrativas para o jornal, roteiro de filme… Sentar pela manhã e “escrever” pode significar a produção de uma palestra bem estruturada para um congresso, que só dali a um ano se transforme em um artigo submetido a revista científica. Ou que pereça como texto ao ser pronunciado à plateia, mas que assim já cumpriu seu papel, literalmente.
Aliás, muito da nossa experiência já aponta que alguns escritos que produzimos durante o dia são rascunhos tão distantes de um texto final, que eu os encaro como mero treino. Mas nem por isso desimportantes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Por essa pergunta, você me transporta ao ponto-chave da redação científica, então a resposta é mais complexa. Mas vamos lá.
Como sabes, escrevi um livro – que hoje é um dos meus prediletos – em que comprovo que a estrutura do texto argumentativo é, no fundo, a mesma da narrativa (O ensaio como tese: estética e narrativa na composição do texto científico). Se o autor imagina o texto científico como uma narrativa, consegue a devida progressão. Há muitos outros detalhes nisso, mas grosso modo os argumentos, na tese, encontram-se e transformam-se reciprocamente tal qual se transformam os personagens de uma boa novela: por interações constantes e racionais ao longo do texto. Uma transformação brusca romperia o ritmo e a coerência, tanto na narrativa quanto na escrita científica.
Então, começar a redigir uma tese antes de ter muito claras as idéias principais e o eixo de progressão (que não significa antever as conclusões) é um ato temerário. Seria como começar a escrever um romance sem saber o tema ou sem desenhar os personagens. Acho que, como conselho principal para o escritor estreante em uma tese, digo que ele acredite que começar a escrita sem uma pesquisa firme lhe representará uma perda de tempo inestimável. Rascunhos, esquemas, notas, fichamentos são uma realidade de preparação que ninguém consegue pular. Ninguém, ao menos, que queira fazer um trabalho minimamente rigoroso.
Uso o mesmo rigor para minhas narrativas. Publico uma coluna mensal em jornal jurídico em que faço narrativas muito intencionais. Cada palavra, cada linha é calculada, exatamente para que o leitor não perceba essa intencionalidade. Para que pareça um insight espontâneo. O processo de pesquisa, porém, é o mesmo da tese. A profissão de professor universitário me dá a graça de poder manter diálogos dos mais variados, desde um Ministro de Estado estrangeiro ao narcotraficante do meu bairro predileto, onde mantenho um pequeno studio. Muitas dessas conversas eu busco propositadamente, como alguém que procura na biblioteca um livro essencial à sua tese. Mas isso não significa que aquele diálogo se transforme em um texto meu no dia seguinte, porque o diálogo deve maturar na consciência, encontrar seu momento de entrar em algum texto, algum dia. Até lá, será uma nota sistematizada em um banco de frases e temas, tal qual num texto científico. Demora e dá trabalho, mas não há outro método; se há, não o conheço.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esses problemas são comuns a todos os escritores, e em alguma medida só se agravam. Quase todos de minha geração conhecíamos a história de Aldrovando Cantagalo, o personagem de Monteiro Lobato. Aldrovando (cujo nome já vinha no gerúndio) era um linguista rigoroso, que revisou milhões de vezes seu primeiro livro, precisamente uma Gramática, antes de publicá-lo. E que morre ao ver que esse seu livro, quando publicado, imprime-se com um erro gramatical logo na dedicatória, porque um tipógrafo desavisado resolveu alterar a ordem dos pronomes. Experiências como a de Cantagalo, ainda que não letais, multiplicam-se quando publicamos bastante, então o receio é natural, muito mais para o conteúdo que para a norma culta: o medo de que a publicação não esteja boa o suficiente, de que haja um gap incorrigível, sempre embarga a escrita. Mas há que lidar com isso, e no meu caso tenho uma fórmula que funciona muito bem: jamais leio um texto meu já publicado, à exceção dos momentos em que tenho de elaborar nova edição. Ler algo que já não podemos reformar é uma tortura que causa danos psicológicos irreversíveis, vai por mim.
Lidar com a procrastinação, pra mim, é mais simples, porque não vivo muito esse problema.
[Desligar internet e celular, claro, é questão básica. Não sou ligado nas tecnologias, mas sei de gente que gasta horas diárias nas redes sociais. Eu raramente leio meu Facebook, que uso pra divulgação dos meus textos quase exclusivamente, e mesmo assim sem muitos resultados: recebo muito mais e-mails de leitores por mim desconhecidos, que veem meus textos na imprensa escrita ou no site, do que curtidas no Face.]
Para achar a ordem de tarefas, faço uma lista de prioridades. Outra coisa, bem distinta, é pensarmos que o trabalho jamais está definitivamente pronto, mas isso não é procrastinar. Meu pai, que fazia lindas pinturas a óleo, costumava dizer que um bom pintor nunca acredita que seu quadro esteja finalizado: corre o risco de morrer retocando-o, se alguém não lhe tira a tela da frente. Real.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sobre revisão, além de o que acabo de contar, há algumas questões interessantes.
Primeiro, sobre o revisor profissional.
Eu, particularmente, estudei muito nossa gramática, já que fui professor de língua portuguesa e revisor de textos, na juventude. Ainda assim, porque a vida nos leva a lidar com outros idiomas e já não sendo o estudo gramatical minha rotina, estou mais sujeito a erros. Então, há que ter cuidado.
Por outro lado, a qualidade dos revisores tem deixado a desejar. Creio que não por falta de preparo, mas porque as editoras estão estranguladas em orçamento, daí o trabalho de revisão é feito por pessoas com pouca experiência e muita pressa. Confronto e interpelo sempre revisores profissionais do meu texto e, não raro, eles admitem que tenho razão mesmo em regras gramaticais, para as quais em teoria eles têm formação específica. Ainda assim, é regra básica que jamais se publique algo que não passara pelos olhos atentos de um revisor preparado.
Quanto ao número de revisões, o essencial é estabelecer-se um método. Quer dizer, é necessário fazer versões de cada texto, para que o autor não se perca reformando-o a cada momento que o abre na tela.
Eu numero as versões sempre. Minha tese de livre-docência, por exemplo, foi defendida há mais de dois anos e ainda não publicada. Estou na versão 91 dela, mais da metade feita após a entrega da tese para a banca. Em suma, não paro de mexer no texto, mas tampouco me perco nele. Tenho a esperança que este mês a editora me imponha prazo final, como alguém que arranque a tela da frente do pintor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os primeiros rascunhos, sempre à mão. Um esquema, pelo menos. Desde criança, sou fanático com caderno de anotações e canetas, e para mim isso está extremamente ligado à criatividade e à estruturação do texto. Com o tempo fui ficando encanado com problemas ambientais, então sinto-me culpado ao usar papel: o mundo caminha para aboli-lo e eu não devo estar na contramão do sistema. Daí coleciono blocos de notas feitos com folhas do escritório, verso de laudas impressas, no intuito de reutilizar. Serve pra aliviar a culpa, porque sem papel e caneta eu simplesmente travo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Desvendar o próprio cérebro é tarefa de todos que criam. Já narrei algumas dessas experiências, mesmo para pensar na tese. Meu processo criativo é baseado em apontamentos de conversas e leituras. Tudo o que leio se transforma em notas. Os artigos jurídicos que estudo estão todos cheios de rabiscos, setas, e palavras para me chamar a atenção no futuro. Tenho livros de literatura com frases grifadas (a lápis), que reescrevo nos meus papéis apenas para treinar, como se estivesse estudando um idioma estrangeiro e quisesse ganhar para mim aquela capacidade enunciativa. É uma forma também de roubar o talento do escritor que admiramos.
De resto, todas as conversas que travo são intencionais, e quem lê meus diálogos percebe que ao menos parte deles é recortada quase literalmente de uma situação real. Fico de muito mau humor quando tenho que dialogar algo burocrático, com alguém que nada tem a acrescentar a meu trabalho. Com o tempo, descobrimos algumas pessoas que são verdadeiras fontes de observações geniais, tanto para minha escrita no Direito penal quanto para as ficções. Visitas a bons professores e pesquisadores que te indicam bibliografia ou te apontam incoerências em sua argumentação devem ser constantes.
Como também são constantes as visitas a personagens que, sem a mesma erudição, te passam vivências que parecem textos já prontos. Por exemplo, o meu barbeiro. Um barbeiro que está aqui no meu bairro, no centro de São Paulo, há vinte anos, desde seus quinze ou dezesseis. Não há uma vez que eu não saia do salão dele completamente transformado, e não me refiro a meus poucos cabelos. Ele passa o dia todo assistindo à televisão que fica à parede do seu estabelecimento, e é fanático por novelas. Comenta-as todas, mas a fundo: sabe o nome dos dramaturgos (e de todas suas outras novelas), discute a trama, desvela dilemas morais intrincados e, principalmente, denuncia o reducionismo dos personagens, suas configurações prototípicas. Ele não sabe que faz isso, mas faz. Não raro, sugere que o diretor escolhera a atriz errada para encarnar a personagem, que deveria ser outra e tal. Se meu barbeiro houvesse estudado, seria um dos nossos grandes críticos de arte, e se eu fosse da TV o contrataria como crítico leigo. Mas, enfim, sou eu quem sorvo de suas histórias e comentários da dramaturgia, que ele entrelaça com as fofocas do nosso violento bairro: crime organizado, o tráfico de drogas diário, a corrupção da polícia.
Depois de um corte com um barbeiro num dia inspirado, a construção do texto pode ser mero trabalho de datilografia, mas nunca imediatamente. Há que esperar que suas palavras se transformem em lembrança mais remota.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que meu processo não mudou. Faço quase o mesmo que fazia quando tinha catorze anos e escrevia contos imaturos. Claro, não havia computador.
O processo se aperfeiçoa pela experiência. Já tenho mais ideia de como meu texto ficará no final, sei (ou tenho mais noção de) o que vai funcionar ou não.
No estilo há sim mudanças, mas isso não é o processo de escrita. Fiquei muito menos agressivo e ao mesmo tempo mais crítico, mas esse é outro tema.
Se voltasse a meu doutorado, seria muito mais humilde. Eu achava que dominava o mundo pela minha tese, e isso não existe. Não significa que não há originalidade, mas não se desvenda o infinito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários projetos, alguns iniciados. No Direito penal, acho que falta um livro que desvele os dilemas morais do nosso dia a dia, com o salto que existe para a criminalização. Mas não em matérias específicas: no geral. Nosso Direito evoluiu muito ao considerar a culpabilidade, e foi ficando denso, o que é ótimo porque significa uma evolução, que temos de acompanhar e para ela colaborar. Mas alcançou-se uma complexidade que raríssimos juízes desvendam. Claro, a maioria deles sequer se dá conta de que trabalha materialmente com conceitos de antes da Segunda Guerra. Não desprezo a técnica, mas acho que falta uma obra que construa esses dilemas de modo aparentemente mais simplificado, para conceder um panorama existencial mais amplo, mesmo aos penalistas eruditos. Todos os meus textos de ficção, na verdade, dão voltas sobre esse mesmo tema: por o que cada um de nós é responsável nesta sociedade complexa.
Acho que alcancei maturidade para um projeto desse, mas (como consequência direta) me falta tempo para realiza-lo. Maturidade porque noto que agora consegui de vez abandonar o tom professoral em meus escritos, um sonho antigo. Nada de impor regras, apenas conduzir o leitor à reflexão. Isso implica também retirar o discurso panfletário, que eu já exerci, mas hoje vejo ser coisa de adolescente. Protestar e gritar sobre injustiça significa servir de massa de manobra para perpetuá-la, entenda bem o que digo. Aqueles que afirmam não impor regras e lutar por dar voz crítica a seus leitores tem sido, na realidade, autoritários, impositivos e descaradamente patrulhadores da opinião alheia. A crítica tem de ser suave e positiva, constante e pontual, porque é assim que as mudanças se operam. Queria construir um livro que cuidasse das contradições da imputação penal de modo a transformar aqueles que a fazem, não para desconstituir frontalmente o sistema. Tenho certeza, por exemplo, que a novela de Dom Quixote (que eu li duas vezes), transformou muito mais nossa sociedade que qualquer tratado de política ou direito: cenas que simplesmente mostravam o ridículo do status nobiliário de então. Eu, claro, não sou Cervantes, mas tenho o direito de aprender dele, mesmo para o Direito.
Para a ficção, tenho um projeto de um dia fazer um falso-documentário do meu bairro. O Glicerio, aqui em São Paulo, é um mundo à parte, que merece uma despretensiosa ode. Algo simples, que relate a riqueza da nossa fauna urbana (nota: em tempos precipitadamente corretos, “fauna urbana” não significa chamar ninguém de animal). Poderia ser mesmo um dia na tal barbearia, porque o mundo tem direito a vivenciar os diálogos que eu vejo, a cores. Por exemplo, uma cena que mostre o preconceito que sofrem os chineses que migram pra cá, por não conhecer o idioma, mas que passa longe das bandeiras identitárias que se hasteiam por aí; ou a luta dos migrantes haitianos para que seus jovens não sejam cooptados para o crime. Mas tudo isso meramente sugerido, na figuratividade de cenas triviais, ponderadas, sem anjos ou demônios. Não ia ser legal?
Gostaria de ler um livro que explique por que algumas pessoas se odeiam. Como esse livro não existe, ainda leio livros policiais. Há alguns que não são ruins.
Gostaria de ler um livro que explique por que algumas pessoas se odeiam. Como esse livro não existe, ainda leio livros policiais. Há alguns que não são ruins.