Vicente de Paula Faleiros é professor emérito da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Agora que estou aposentado a organização do tempo depende de mim e não tanto das exigências. Para escrever é necessário disciplina, ou seja, organização do tempo disponível. A agenda de compromissos precisa incluir o trabalho de escrever. Posso escrever pela manhã ou pela tarde, dependendo dos compromissos acadêmicos, políticos (como ir a manifestações por direitos humanos), de lazer. Gosto de aproveitar o período matinal para elaborar a organização do texto ou fazer rascunhos. Tenho boa condição para escrever no meu escritório privado, um apartamento que comprei somente para isso e que foi uma prioridade de investimento. Em casa escrever fica mais tumultuado, com as demandas de serviços, consertos, telefonemas, visitas. No escritório é mais tranquilo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho mais disposição durante o dia que à noite, com o cansaço se acumulando no final da tarde. É necessário estabelecer prioridades para os textos, dependendo da demanda, da urgência e da motivação. Algumas demandas se acumulam para palestras, artigos, comentários. A preparação pressupõe uma organização dessas demandas, que por sua vez, vão exigir mais fundamentação ou pesquisas bibliográficas e na internet. Faço inicialmente uma pesquisa assistemática do tema e depois uma seleção dos dados. Os livros ou textos de que disponho na minha biblioteca de nove mil volumes sobre o tema sobre o qual me debruço vão sendo colocados no chão para consulta ou citação.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gosto de escrever todos os dias, mas há dias em que preciso descansar, em outros em que preciso acelerar. Descansar é fundamental, escrever é exigência mental para organizar os pensamentos e as informações. Intercalo a escrita de um texto acadêmico ou burocrático com a escrita de poesia. Esta não flui sistematicamente, depende da inspiração, o que pode interromper um texto acadêmico.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de fazer rascunhos. O rascunho é ao mesmo tempo, uma síntese e um ponto de partida que se modifica ao longo da elaboração do texto. A palavra rascunho está associada a um risco, um traço inicial. O plano de Brasília se iniciou para Lúcio Costa com o traçado de uma cruz, ampliada depois para asas de uma borboleta. O risco, o traço inicial é uma elaboração mental que associa o conhecimento adquirido a uma visão questionadora e crítica. É necessário para mim levar em conta dados disponíveis e recentes investigações que vão se acumulando sobre determinado tema. Por exemplo, se estou voltado para o tema da desigualdade, vou associando reflexões sobre a estrutura, as classes, a democracia, a mobilidade social, as condições do contexto histórico geral e pessoal, o território, a exclusão pela raça, pelo gênero, pela migração… Gosto de olhar a complexidade da temática e recuperar pesquisas que fundamentam o tema por meio da busca na internet, nos bancos de dados disponíveis. A internet abre espaços para contrapor olhares. Daí sai uma estrutura de texto pontuada. Do traço inicial vão-se arquitetando vínculos e conexões. A interpretação da pesquisa pressupõe um projeto fundamentado a que se agregam conhecimentos interconectados, mas chega um momento de saturação que é imprevisível, que se revela nas repetições das referências e na perda da “virgindade” da originalidade que precisa ser sempre retomada no desenrolar da pesquisa. Essa originalidade vai sendo revelada pelas perguntas, pois pesquisar é perguntar continuamente, encadeando perguntas, silêncios e sussurros.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Alguns textos precisam ficar de molho algum tempo para serem jogados fora, transformados ou finalizados. O rascunho pode esperar ou ter urgência de ser publicizado pelas circunstâncias, pelos inevitáveis prazos (chamados de deadline– dia da morte anunciada). Lido com os prazos estabelecendo prioridades anuais, mensais, semanais e diárias. As prioridades estão determinadas pelas demandas e também pelos recursos, informações e inacabamentos. Nunca vejo um texto meu como definitivo, mas pode ser concluído num determinado momento. Há diferença entre estar concluído e ser definitivo. Alguns textos ficam inacabados e podem servir de subsídio para uma publicação futura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como faço e refaço rascunhos ou rabiscos, a revisão dos mesmos é contínua. No entanto, os textos são datados. Uns perdem a validade, outros podem ser referência para um tema específico por um longo tempo. Por exemplo, tenho pesquisado e publicado trabalhos sobre a temática da violência, com especificações para a infância e a velhice. Busquei uma definição de violência que possa se articular com o que já foi publicado, e ao mesmo tempo, trazer ou fazer emergir uma definição própria. Por exemplo, no meu livro “Violência contra a pessoa idosa – ocorrências, vítimas e agressores” (Brasília: Universa, 2007) defino a violência como “a negação do conflito”, pressupondo a negação da alteridade, da mediação, da relação social de trocas recíprocas, da negociação, com imposição do poder mais forte, da dominação, do medo ou da cooptação. Parto do pressuposto paradoxal de que o conflito, intricado às contradições, é a forma fundante das relações e mesmo da convivência, o que descontrói o pensamento que considera a violência na ordem estática, naturalizada ou como perversão ou descontrole pessoal incontornável. Desta forma, a construção de um pensamento crítico, de uma epistemologia crítica, vai se elaborando no processo da pesquisa e da redação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A passagem da escrita à mão para o computador é um processo irreversível. O computador oferece dispositivos de agilidade, correção e visibilidade para o texto. Eu posso ver os parágrafos na tela, mudá-los de lugar e de conteúdo, apagá-los, dar-lhes uma melhor formatação. As correções, para mim, são inevitáveis e os recursos do computador me ajudam muito. No entanto, os computadores morrem, têm morte programada. Meu laptop Dell já me avisou que não terei mais suporte, “recomendando” ou chantageando para comprar outro aparelho… O arquivamento em nuvens cria uma dependência, pois a empresa (multinacional) exige pagamento mensal para ter acesso a ele, e então você fica nas nuvens da empresa cujo satélite pode pifar de uma hora para outra, e além disso, tem que pagar pela armazenagem de dados, com o se fosse uma mercadoria da esquina. É bom ter backup físico. A poesia pode ser escrita à mão em qualquer papel, depois passada para o computador. Algumas ideias são escritas à mão como anotações, mas não o faço de forma sistemática.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A leitura de textos clássicos, de livros instigantes, de jornais, de revistas, principalmente sobre as temáticas da filosofia e da ciência são instigantes. Acabo de ganhar um livro sobre Jesus Cristo que me está provocando reflexões instigantes. Estou pensando fazer uma resenha do mesmo. Gosto de ler entrevistas políticas ou não, que sempre mostram uma dimensão pessoal da reflexão. Quem não se lembra da entrevista do Marcola na prisão? Quem não tem interesse numa entrevista do ex-presidente Lula? É um ponto de vista de quem está vivenciando uma questão. Há que se fazer uma leitura crítica das entrevistas a partir do lugar de fala, pois traduzem também as distorções de quem fala. Na televisão há ótimas entrevistas, principalmente nos canais fechados ou pagos, que trazem uma percepção atual da realidade no contexto da história de quem está falando.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Minha tese de doutorado foi escrita à máquina com papel carbono. O corretor de datilografia foi, na época, um avanço que permitia mais fluência. A fotocópia eliminou o carbono. Ainda guardo minhas máquinas de escrever. No entanto, é o fato de ter uma ideia, um projeto que nos leva a colocá-lo em visibilidade no papel ou em tela. As formas de comunicação pelo WhatsApp, pelo Twitter ou pelo Facebook incorporam as regras do dono do negócio, mas permitem expressões cotidianas entre milhões de pessoas. O uso do computador é um vício, mas ao mesmo tempo uma ajuda, um suporte, um “papel em branco” que acolhe os pensamentos. É preciso ter o que dizer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho projetos de alguns livros que podem florescer ou não. Um deles é de contribuir, com mais um texto, sobre epistemologia, o que se originou do significativo número de trabalhos acadêmicos que orientei, seja de conclusão de curso, de mestrado, de doutorado. E principalmente da vivência de mais de vinte pesquisas, cada uma com uma metodologia bem explicitada, mas que pressupõe a epistemologia, a dialética, a crítica. Alguns trabalhos se dizem marxistas, mas pressupõem uma epistemologia positivista apenas da constatação de variáveis selecionadas e da “prova” empírica, o que me parece paradoxal. Disponho de 34 livros de Bourdieu, de textos da Escola de Frankfurt e de Niestzsche que gostaria de aprofundar, assim como Piketty e Chomsky. Escrevo e quero publicar poemas em forma de haicais numa edição limitada. Trabalhei nos últimos 20 anos sobre a questão da velhice e do envelhecimento e que, cada dia, se rejuvenesce em mim (a questão, é óbvio).