Verginia Grando é escritora, roteirista e diretora de cena.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina de manhã sim, mas ela quase sempre não está ligada a escrita a não ser quando acordo com alguma ideia ou frase na cabeça – o que acontece com alguma frequência quando estou imersa em algum processo criativo, seja de direção ou escrita – então eu anoto o que veio assim que acordo nas notas do meu celular, sem pensar muito sobre o que aquele texto ou ideia é ou onde ele ou ela vai se encaixar. Antigamente tinha um caderninho que eu deixava perto da cama com uma caneta Bic, embora mais romântico abandonei esse hábito pela praticidade do smartphone. Mas, no geral, minhas manhãs são devagar e dedicadas à minha saúde, meu corpo, minha mente e o meu eu no mundo. Acordo, abro a janela, volto pra cama e fico um tempo observando os passarinhos nos galhos da grande árvore em frente à minha janela. Se tem sol posso passar um tempo olhando os raios de luz passar pelo meu cristal pendurado na janela, transformando o invisível em bolas de arco-íris na parede branca do quarto. E por aí vai… até que eu me acho no mundo. Levanto e vou fazer uma meditação rápida em frente ao meu altar. Café da manhã, correr 8 km ao longo dos trilhos do trem e banho ou café da manhã, banho e academia dependendo do dia. Depois eu faço o meu almoço e só vou escrever (ou trabalhar com alguma decupagem de direção e coisas do tipo) de tarde. Obviamente toda essa rotina muda se estou filmando ou trabalhando em algum projeto com prazo muito específico. Mas, no geral, quando a vida permite, é isso que narrei aí. Ou quase isso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De tarde, com certeza. Antigamente gostava de escrever e trabalhar mais durante a noite, de madrugada. Isso mudou bastante junto com o meu metabolismo, eu acho. Hoje em dia quero ler, dormir, assistir filmes, ouvir um vinil e meditar à noite. Trabalho bem durante as tardes, desde que não falte café. Não tenho ritual algum a não ser os cristais: amo cristais, tenho vários deles espalhados na minha casa. Cada projeto que inicio eu escolho um ou mais deles e deixo na frente ou ao lado do teclado do computador quando vou escrever. Também levo para o set quando vou gravar alguma coisa como diretora. Os cristais estão sempre comigo, é fato.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta diária, já tentei trabalhar assim e não funciona comigo. Geralmente eu traço uma meta de quando eu quero terminar um livro. Por exemplo, terminei há um mês e meio o meu terceiro livro, que se se chama Amores Ruins. Esse livro começou a nascer em mim mais ou menos em fevereiro do ano passado, mas só comecei a escrevê-lo em março. Delimitei que seriam de quinze a dezessete contos sobre esse tema de amor ruim e coloquei como prazo para terminar o livro até junho desse ano, 2018. Acabei fechando o livro em quinze contos dentro do prazo que me coloquei. Durante esse um ano e três meses eu não escrevia todos os dias. Em alguns momentos passei semanas sem escrever, porém sempre pensando na história que eu estava criando naquele momento. Posso passar um dia inteiro só olhando pela janela, imersa no personagem que estou criando, sem escrever nada. No dia seguinte eu sento e escrevo dez páginas. É assim comigo. Também, no meu caso, tem os momentos nos quais eu tenho que simplesmente me afastar do livro e ir para mundo, caminhar na rua, falar com estranhos, tomar cafés com os amigos, deixar que as histórias me achem. Meu processo de escrita é lento, mas é meu. Gostaria de escrever mais rápido? Claro que sim. Mas não consigo mudar quem eu sou. Sou uma pessoa de processos lentos e profundos, quase uma ofensa num mundo que exige que tudo seja cada vez mais rápido e efêmero.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que eu já respondi um pouco sobre isso na pergunta anterior, mas eu não escrevo muitas notas. Sou mais de ficar ruminando as ideias, emoções e imagens dentro de mim. Aquilo que me chama atenção na vida, no dia a dia, que gera uma imagem ou sensação fica arquivado em mim algumas vezes por anos, até que aquela inquietação ou personagem se tornam tão latentes que sou obrigada a escrever para colocá-los pra fora. Dependendo do contexto eu tenho que pesquisar sim, é claro: se é algo de época ou se quero falar de coisas das quais só conheço de forma rasa eu tenho que buscar outras fontes – e, de preferência, não uma visão unilateral do que estou pesquisando, mas diferentes pontos de vista. Para mim tudo começa com o personagem. Não ligo muito para ação. A ação pode ser qualquer coisa, porque o que importa é o estado no qual aquele personagem se encontra, o que está acontecendo dentro dele que reflete para fora e como esse fora vibra dentro dele. A permeabilidade da membrana do tempo/espaço da psique humana. Eu amo isso. Já falei algumas vezes que eu não escrevo livros e não dirijo filmes: eu simplesmente crio personagens. É assim que eu vejo o meu trabalho. Mas alguém de fora pode me ver diferente e provavelmente também estará certo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não penso muito nisso. Quando trava eu aceito que está travado. Aceito que está faltando vida na minha vida e me jogo no mundo. Uma hora a história vem até mim, e ela sempre vem. Acho que a prática da meditação me ajuda muito nisso. Também não crio muita ansiedade em relação ao outro quando escrevo, penso mais em qual é a inquietação que tenho comigo naquele momento que eu gostaria de dividir com alguém, no caso o leitor, e que com sorte ele ou ela estabeleçam um diálogo comigo, me tragam respostas ou mais perguntas. Se eu pensar no outro e criar esse tipo de ansiedade de expectativas além das minhas próprias inquietações eu não escrevo. Eu não faço nada. Até porque a gente costuma ser bem mais exigente com a gente mesmo do que com o outro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso umas três vezes antes de sentir que está pronto para mim. A minha última revisão sempre é em voz alta. Leio tudo em voz alta feito louca pela casa e onde engata eu mexo porque sei que não está fluindo. Fico rouca uma semana, mas vale o esforço. E, sim, eu sempre mando o livro para algumas pessoas antes. Os roteiros também. Uma vez escrita a história precisa ganhar vida, ser reconhecida no mundo, e isso só se faz quando um outro alguém lê aquilo que a gente escreveu.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Computador, direto. Notas de celular que são mandadas para o e-mail e depois copiadas rapidamente para o arquivo do livro. Acho legais os rascunhos à mão, romântico. Usei muito lá atrás. Hoje em dia prefiro a agilidade do processo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da vida. Costumo me manter aberta para a vida, para experiências que o dia me propõe sem tentar manipular muito o tempo e o espaço das coisas. Sou fã das pequenas coisas, constantemente vejo beleza naquilo que quase todo mundo ignora. Talvez esse seja meu exercício de criação diário: achar a beleza onde ninguém vê, estar sempre aberta às coisas simples e pequenas, achar a semente do oposto naquilo que é.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que muita coisa mudou. A gente muda e todo o resto muda junto. Um personagem que não muda nem um pouco do começo ao fim é um personagem morto: em alguma parte da história ele tem que mudar um pouco, nem que seja para depois voltar ao começo. O que mais consigo identificar que mudou é o horário de trabalho: esse migrar do escrever nas madrugadas para as tardes. Isso veio com uma mudança em relação à minha saúde a partir dos trinta e poucos anos: precisava cuidar mais do meu corpo, da minha saúde. Muita energia concentrada na cabeça que tinha que ser jogada também para o resto do corpo porque eu já me sentia no limite e uma hora o elástico ia estourar para algum lado. Comecei a dormir mais cedo, praticar esporte, comer melhor e com isso o fluxo da escrita melhorou também.
Outra mudança grande é que eu sou na verdade roteirista e diretora de cena. Nunca pensei em escrever livros. Mas, de um longa que escrevi chamado “Canções para Diana”, que está em captação há anos (a saga de tentar fazer cinema no Brasil), eu acabei aprofundando a personagem principal que no filme larga seu emprego para tentar o sonho de ser escritora e escrevi o livro que ela teria escrito, que se chama “Se nada mais der certo eu não tenho plano B”. Mostrei esse livro que era um spin of do longa para um amigo meu, Thiago Tizzot, que tem uma editora, a Arte e Letra. Ele viu valor literário na obra e quis publicar. Foi um processo legal que achei que iria parar por ali. Porém, no meio disso tudo, acabei escrevendo um livro de criança que deve sair até o final do ano que vem, e no começo do ano passado veio a inspiração para “Amores Ruins”, meu primeiro livro que nasce puramente como literatura.
Sinto uma tranquilidade melhor hoje em dia em relação às muitas ideias que tenho na minha cabeça e o tempo que tenho para escrevê-las. Sei que talvez algumas acabem morrendo como ideias porque meu processo de criação é lento. Aprendi que nem tudo vai virar livro, roteiro ou filme. Assim como não vou conseguir ler todos os livros que eu gostaria de ler em uma vida. Assim, escrever virou um processo mais tranquilo. Se eu pudesse dizer algo para mim lá atrás, seria: “Relaxe, não temos todo o tempo do mundo. E está tudo bem”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um longa que se chama “O Retorno de Saturno”, que é o projeto ao qual eu pretendo me dedicar no campo da escrita. O primeiro esboço da personagem junto com o começo do filme veio para mim em 2010 enquanto eu dirigia o carro para a Universidade Positivo, onde eu dava aulas de cinema na época. Eram quarenta minutos dirigindo da minha casa até lá, uma música do Carpenters tocou no rádio e de repente me veio a cena e o texto inteiro na cabeça junto com a personagem. Música me inspira muito desde sempre e está sempre presente em tudo que faço. Cheguei na sala dos professores e um amigo meu me emprestou uma caneta e um papel para eu poder escrever a ideia. De lá pra cá tenho muita pesquisa feita e 52 páginas escritas sobre os personagens principais. Algumas cenas do roteiro esboçadas e dois contos desse meu novo livro que são em cima de personagens desse filme. Parece natural para mim que esse é o projeto que eu tenho que escrever agora. Tenho mais alguns projetos para tocar, mas como diretora de cena.
Que livro eu gostaria de ler e ele ainda não existe? Não sei. Não consegui ler nem metade do que existe e gostaria de já ter lido até agora. Vou ficar devendo essa resposta.