Verena Cavalcante é escritora, professora e revisora de textos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo o meu dia, creio, como a maioria das pessoas deste planeta. Com uma caneca enorme de café e meu corpo em repouso no sofá. Quando tínhamos canais de televisão, meu companheiro e eu assistíamos às notícias do dia. Às vezes escrevo – imagino que seja esse o ritual ao qual se refere – mas só os sonhos da noite dormida. Tenho um subconsciente riquíssimo que me proporciona sonhos muito simbólicos e cinematográficos. É preciso anotá-los. Quando me lembro deles, claro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho hora específica para escrever. Também não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita. A escrita, para mim, só funciona de maneira desconexa, imprevisível e caótica. Não tenho qualquer disciplina.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho método. Tudo depende do meu desejo. Às vezes, passo meses sem escrever uma palavra sequer. Em outros momentos, escrevo um conto de dez mil palavras em uma sentada. Geralmente, não escrevo nada. Tenho preguiça. Gosto de ficar escrevendo na cabeça, vendo as imagens que crio. Eu jamais conseguiria impor uma meta. Comigo jamais funcionaria, acho até engraçado pensar em uma coisa dessas. Parece piada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita funciona mais ou menos assim: minha cabeça é um salão enorme cheio de gaveteiros de escritório. Dentro de cada gaveteiro estão diversas pastas organizadoras. Dentro das pastas organizadoras têm fotos. Durante o dia, ao lavar a louça, ao tomar banho, ao brincar com o gato, uma dessas fotos escapa de uma dessas pastas – às vezes um conjunto delas – e se gruda nos meus olhos. Olhos de dentro. Costumam ser imagens horrendas, grotescas, porque é assim minha literatura. Eu sou meio Cassandra. Então, preciso decidir se coloco essas imagens, cheiros ou sons no papel – e me livro delas – ou se passo meses, até anos, andando com elas grudadas na minha cabeça. Geralmente, escolho a segunda opção. Sou uma masoquista.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido. Se preferir procrastinar, procrastino. Eu sou uma pessoa meio mística. Acredito que as palavras vêm quando é hora. Quando não é, fico bem quietinha. Depois elas vêm sozinhas, todas vomitadas, desesperadas. Gosto mais assim.
O medo de não corresponder às expectativas, contudo, sempre me incomoda, principalmente depois de Larva, meu livro de estreia, ter sido tão bem aceito. Fico com a sensação de que, mais dia, menos dia, vão descobrir que sou uma impostora. Vão reler e realmente enxergar o que está lá – vão perceber que não sou escritora de verdade e me humilhar publicamente por isso. Mas, geralmente, tento não pensar muito. Se publicar outro livro for o que eu desejo, faço isso, sem pensar muito no porvir.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma meia dúzia de vezes. Às vezes mais. Quando acredito estar do jeito que visualizei, envio para meu companheiro, que, além de escritor, possui a característica essencial de não poupar críticas. Ele detona, faz uma revisão pontuada por comentários, e me devolve. Depois dessa última revisão, mando para alguns amigos autores que tenham demonstrado interesse de ler anteriormente. Mas, confesso, dificilmente rearranjo alguma coisa no texto depois disso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo em qualquer lugar. Em pedaços de papel soltos por aí, em vários cadernos diferentes, na agenda do trabalho, no bloco de notas do celular, mas sempre finalizo no computador. Parece que o Word tem um ar de formalidade, seriedade e profissionalismo que minhas garatujas não têm. Gosto porque faz parecer que o negócio é importante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De onde vêm as ideias? De onde vêm todas as ideias? E, junto delas, a criatividade? Eu sei lá. Desses gaveteiros de que falei. Dos meus sonhos. De todas as coisas ruins que acontecem no mundo. Do amor e da morte. Dos pássaros que caem mortos todos os dias na minha calçada. De olhar as coisas com o olho de dentro. Da literatura, da música, da arte. Uma vez, no banho, senti um cheiro diferente e ouvi um barulho de chocalhos que me fez pensar em cobras cascavéis. Daí, veio meu segundo livro inteiro, O Berro do Bode. Veio de onde? Foi uma musa que passou e soprou no meu ouvido? Eu não sei. Eu acho que escrever é um pouco como ser possuído. Para mim, ao menos, funciona assim. Porque eu mesma sou uma pessoa meio assombrada. Mas de onde vem e como faz pra chegar não é algo que me importa. O que importa é que existe.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou foi que aprendi a respeitar minha própria voz. Descobri que não preciso ser parecida com autor(a) algum(a), que só diz respeito a mim do que vou falar, como vou narrar, e se alguém vier a gostar, ótimo. Mas que não escrevo para os outros. É tudo para mim. Fico feliz quando me leem e meus livros conversam com os leitores. Mas, lá no fundo, não me importo muito. Não sei se quero ser respeitada, reconhecida, até mesmo amada. Tais coisas me dão medo. Também acho contraproducentes com o processo de escrita. Eu escrevo desde criança. Não sei o que diria a mim mesma sobre meus primeiros textos. Talvez sugeriria ter mais cuidado com os escritos, guardar os cadernos, os rascunhos. Não rasgá-los, deletá-los, queimá-los. Talvez. Escrevi meu primeiro livro aos vinte e três anos. A essa altura, eu já estava muito certa de conteúdo e forma. Não há nada que eu mudaria naquele primeiro livro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Disso não falo. São coisas só minhas que prefiro ficar ruminando sozinha.