Vássia Silveira é jornalista e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O dia é quem me começa. Ou seja, preciso de demandas externas para me organizar, do contrário, fico à deriva. Quando estou sem algum compromisso, acordo tarde e minha única regra é a xícara de café, seguida pela observação das coisas (in)existentes e a leitura de notícias em sites da grande imprensa e do jornalismo independente. Mas confesso que há períodos nos quais, para manter minha sanidade, abro mão dessa leitura. E me concentro mais em ouvir o canto dos pássaros, o assobio do vento ou o ronco dos motores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Até funciono durante o dia, mas gosto mesmo é da noite, da madrugada. É quando sinto minha mente realmente desperta. Sou do tipo que vara tranquilamente uma madrugada trabalhando. Mas não tenho nenhum ritual, a não ser o de encarar o branco da tela e de notar, nos momentos de criação, a bagunça tomando conta da minha mesa de trabalho e do chão ao redor: imagens, anotações e livros espalhados, cinzeiro abarrotado e xícaras de café, chá ou taça de vinho, dependendo do texto e de minhas demandas internas. Isso sem falar na tela do computador, que fica com dezenas de janelas abertas, por tempo indeterminado. Às vezes parece meio assustador, mas para mim sempre funcionou. Mesmo quando minhas filhas eram crianças, e precisavam que eu estivesse de pé cedo da manhã.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
De maneira geral, acho que escrevo mais em períodos concentrados. E apesar de não ter meta de escrita diária, sou boa cumpridora de prazos (uma herança das redações de jornais). Então, se preciso escrever determinado conteúdo em um prazo apertado, escrevo. Mesmo que para isso eu acabe ficando sem dormir. Agora, claro, isso funciona com textos jornalísticos ou acadêmicos, e também com a crônica. Não posso dizer o mesmo da poesia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é completamente caótico. Porque meu texto começa a ser construído mentalmente e, dependendo do gênero (acadêmico, literário, jornalístico), pode levar meses até ganhar materialidade. Bom, é verdade que as pessoas não conseguem ainda lê-lo, mas ele está lá, na minha cabeça, sendo rascunhado e alterado diariamente. E não “desligo” nem quando estou dormindo, pois costumo sonhar com a estrutura textual e acordar no meio da noite com uma ou outra ideia. No mestrado, por exemplo, eu tinha dezenas de anotações, vários livros e capítulos lidos e sublinhados, mas o texto de defesa da tradução que fiz a poemas doDiario de Djelfa, de Max Aub, só ganhou forma na tela do computador na reta final dos prazos para a qualificação e, depois, para a defesa. Felizmente, minha orientadora confiava em mim!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para a procrastinação não tenho remédio, até porque não a vejo como um problema. Eu procrastino sempre, tenho o hábito de deixar a materialidade do texto para os últimos momentos do segundo tempo. Acho que me acostumei com a adrenalina do deadlinede fechamento de jornal e acabei fazendo disso, um método. Agora, para o restante – o receio de não corresponder às expectativas e a ansiedade –, um bom vinho, acompanhado de boa música ou de um bom livro, costuma resolver.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso de textos acadêmicos, não sei se tenho algum que eu considere realmente pronto. Porque quando resolvo reler, passado um bom tempo, algo que já publiquei, costumo encontrar coisas que escreveria diferente. Isso também acontece com alguns de meus textos literários. O que talvez explique mudanças que fiz em poemas do Febre Terçã(Selo Off Flip), quando saiu a primeira reimpressão do livro. Ou em crônicas reunidas no Branca nuvem em céu escuro(Editora Penalux). Então acho que se trata mais de uma questão de tempo: quanto tempo este texto pede? Quanto tempo eu tenho ou darei a ele? Respondida as perguntas, releio, reviso, corto, reescrevo até o último minuto. Agora esta não é uma regra sem exceção, pois há poemas que nascem prontos. Não consigo mexer em nenhuma vírgula. E sim, tenho por hábito mostrar meus textos, ou pelo menos aqueles que pretendo publicar, para um grupo pequeno de primeiros leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minhas filhas dizem que trato meu computador como um filho. Antes eu achava que era exagero delas, hoje desconfio que tenham razão, pois a única coisa que ainda consigo escrever à mão é poesia. E isso quando o poema me assalta longe da tela. Então o computador é, para mim, uma ferramenta de trabalho imprescindível. Mas era assim também com as antigas máquinas de escrever (ganhei a minha primeira antes dos 15 anos). Ainda assim, não me considero uma pessoa muito ligada à tecnologia, apenas faço uso de alguns instrumentos dela. Não tenho muita paciência, por exemplo, para lidar com as redes sociais e acho um absurdo trocar meu smartphone (que para mim está novinho) só porque ele deixou de suportar alguns aplicativos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Grande parte de meus textos ficcionais surge de imagens: às vezes uma fotografia, uma pintura, um grafite, alguma cena que vi e ficou registrada na memória. Sou também muito ligada às miudezas do cotidiano, gosto de observar e ouvir as pessoas nas ruas, o concreto das cidades, a natureza. E acho absolutamente fundamental ter um espaço de solidão. Mas não vejo isso como uma estratégia ou um conjunto de hábitos para me manter criativa. São apenas minhas predileções.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em projetos que envolvem a pesquisa e a redação jornalística, acho que mudou a relação de respeito com o meu próprio tempo. Então hoje é mais comum, antes de aceitar um trabalho, eu avaliar se ele vale minhas noites não dormidas. No caso da literatura, acho que perdi a ingenuidade. Estou cada vez mais consciente da importância do tempo de maturação do texto e também do desapego.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Talvez o grande projeto não começado seja o de viver só para a literatura. É uma aposta muito alta para uma mãe solteira, de duas filhas. No mais, tenho projetos engavetados, a maioria aguardando um pouco de quietude na vida. Quanto ao livro, confesso que não sei te dizer. Mas creio que poderia apontar vários que, por não ter lido, ainda são inexistentes para mim. Ou mesmo alguns que tenho o hábito de reler e, a cada releitura, é um novo livro, algo até então inexistente – é o caso, por exemplo, de Grande Sertão: Veredas ou de o Livro do Desassossego.