Vânia Melo é professora, escritora, filha de Oxum e mestranda no programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da UFBA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no ensino médio da educação básica, em duas escolas de Salvador. Durante a semana, pela manhã, estou entre uma escola e outra enegrecendo as ementas dos cursos que leciono. Gosto de observar o modo como as pessoas e as coisas passam por mim e eu por elas e em quais ritmos tudo acontece; muitas entre essas observações e vivências acabam sendo matéria para escrita imediata ou anotações para um futuro texto. Tudo que passa por mim e todas as coisas e pessoas pelas quais passo, invariavelmente, são/serão aprendizados e novas escritas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ultimamente, tenho trabalhado na escrita da dissertação que defenderei em breve, em mais dois projetos de livro, isso sem contar com as leituras e preparações diárias para sala de aula. A escrita, geralmente, decide em que momento ela quer se fazer presente; quase sempre eu sigo o ritmo dela. Não tenho preparação pra o que, muitas vezes, não sei quando virá; talvez isso de “não ter preparação” seja também um modo paciente de aguardar; uma forma tranquila e quase ritualística de compreensão de que a escrita tem seus tempos e suas formas de se mostrar. Por outro lado, há um trabalho incessante, o diálogo com as pessoas e tudo o que aprendo com elas, tem as pesquisas e as leituras frequentes que me dão muito material para a escrita que acaba por não demorar tanto a chegar. Assim, alterno leituras, escritas e aprendizados que me aparecem com uma frequência feliz.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas preestabelecidas, não sigo um manual ou tenho dias certos para escrita. Ela vem e eu a recebo de formas variadas. Quase sempre, dói demais escrever, mas escrevo pra que a vida doa menos, para que as felicidades sejam mais frequentes, para que eu entenda melhor o mundo, para que eu me entenda melhor; e, nesse ritmo, vou cuidando das feridas, sanando as dores, cadenciando meus movimentos com os tempos. Já tive épocas (muito específicas e agora distantes no tempo) de passar semanas sem escrever, e num momento, um acontecimento, descoberta seja de dor ou não, vem a inspiração atrelada às informações e conhecimentos que, de algum modo, se converteram em ideia e daí, a escrita… muitos textos vêm de uma só vez. Hoje, já não fico mais tanto tempo sem escrever, talvez, no máximo, uns dias, poucos, e logo vem a escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho uma prática padrão, mas tudo o que escrevo gira em torno de ancestralidade, axé, orixás, do feminino negro, do que sinto, do que vivo e vejo, de todas as questões que me chegam sobre assuntos que são parte de mim e da história de meu povo. As informações, as pessoas, as vivências e as lições para cada texto me chegam, às vezes, junto com o poema, com o capítulo, ou o que quer que seja a escrita daquele momento; outras vezes, durante o ensaio, me vem o poema, durante o poema, me vem o capítulo da dissertação, ou seja, é durante a vida que vem, a vida e seus desdobramentos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas da escrita são, pra mim, momentos de ajuste das velas pra que se continue a navegar em outros momentos, em mais possibilidades. Assisto a filmes, converso com pessoas, vou a lugares, leio, leio, leio, leio, vivo. Tudo isso é escrita futura. Quando não estou escrevendo, a vida continua em mim, às vésperas de um texto novo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nem sempre faço muitas revisões, mas quando ocorre, sempre acho que posso escrever outro texto, um texto novo. (risos) Porque, das experiências que tive com muitas revisões, acabei escrevendo outros textos! Acabam surgindo das rasuras, novas ideias. Mostro a algumas pessoas antes de publicar, poucas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante muito tempo, escrevia num caderninho e depois eu digitava, era sempre assim. Já há alguns anos, muitas vezes, digito direto mesmo sem passar pelo caderninho de anotações; mas veja bem, tenho comigo, além do bloco de notas no celular, caderninhos e canetas sempre por perto, gosto de olhar o poema escrito no papel enfeitando a superfície de uma identidade única promovida pela dança das letras, a desistência dessa ou daquela palavra, o rabisco, as rasuras … essas marcas são encantadoras pra mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias podem surgir de tudo, em qualquer coisa ou pessoa. O que me inspira a escrita é o que adoro, o que faz parte de mim e o que me atrai. Escrevo também sobre o que me causa revolta. Tudo o que me provoca amor ou indignação pode ser matéria para a escrita. A criatividade ou a frequência de ideias que me assaltam acredito que seja movida pela vida que levo e por tudo o que me atinge. O que vejo, leio, vivo… tudo isso me preenche e em algum momento deságuo tudo, escrevo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que já escrevi muitas coisas que não escreveria de novo, que muitas coisas poderiam ser melhoradas, mas também consigo entender que aquela era uma Vânia menos amadurecida, que não viu, leu ou viveu o que hoje eu tenho em mim, e ainda me falta tanto a aprender! Penso que todas as lições que minhas mais velhas me ensinaram, todas as ideias que as leituras de deram, todas as coisas maravilhosas que as observações, as vivências e lições da ancestralidade me proporcionaram e ainda me trarão são fundamentais nesse processo de amadurecimento da minha escrita, da minha vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei bem. Tudo muito novo pra mim, estou sempre aprendendo. Mas sei que quero ler muito e tudo o que eu puder, pois em tudo o que se lê há um aprendizado. Quero ver mais autoras e autores negros ocupando um mundo inteiro das melhores possibilidades, quero ter a oportunidade de ler o máximo que eu puder, vivenciar as experiências mais bonitas e continuar escrevendo, porque a escrita é esse continuar com pausas diversas, mas sem fim.