Vanessa Vascouto é autora do desromance Água Fria e Areia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A rotina dos dias mudou muito de meses pra cá. Antes era abrir os olhos e me reconhecer, reconhecer a casa, o que acordo sentindo, meu microuniverso. Devagarinho pra achar a inquietude do dia, daquele dia, a que me tiraria da cama rumo à sabe Deus o quê.
Agora vem a função de abrir os olhos e precisar reconhecer o mundo, macrouniverso. Toca o alarme do celular e é como um tiro de largada que me leva às notícias, mensagens, às redes virtuais. Rápido, rápido, rápido. Perco muito tempo nisso. A inquietude agora grita da janela pra lá. Começo os dias fora de mim e a manhã virou a luta pra voltar. Penso agora, enquanto escrevo isso, que talvez a saída seja, momentaneamente, ir. Voltar quando puder. Preciso organizar melhor essa ideia.
Então tomo banho quando o tempo não corre à frente dessa disritmia. Tomo café – o instantâneo porque o de pó me gasta o estômago. Duas fatias de pão com manteiga, às vezes requeijão. Levo Pantufa, a cachorra, pra passear. Encontro vizinhos a quem abraço e com quem converso sobre grandes nadas, os melhores nadas das manhãs. Gosto das pessoas do meu quadrilátero, de quase todas.
Depois volto à casa. Quando tenho um freela, saio. Pego o ônibus, chego.
Quando não, caço um assunto pra escrever até começar o almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que é sempre quando coloco a bunda na cadeira, os olhos na tela, o celular longe e forço a cabeça e as mãos a trabalharem. Isso não tem horário específico. Noto que é mais difícil que aconteça à noite, mas às vezes rola. Noto que é mais fácil à tarde, mas nem sempre rola. Não é uma regra, mas, no geral, sou mais do dia.
Quanto aos rituais, nenhum. Às vezes fecho os olhos em silêncio pra desintoxicar a mente, achar novas brechas, imagens. De vez em quando funciona, mas sempre acabo achando que, pra mim, a prática é a melhor preparação. No fim, me preparo para escrever escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta diária. Diluo a escrita pra fazer cumprir uma macro-meta: produzir algo que faça sentido a longo prazo. Mas sim, escrevo todos os dias. Quase tudo jogo na gaveta na esperança de um dia voltar a ver. Água Fria e Areia, por exemplo, surgiu de materiais inacabados, acumulados, poesias e contos somados.
Um aspecto importante é que tenho no jornalismo e na redação publicitária, meus trabalhos diários, a possibilidade permanente de exercitar a palavra. Então mesmo que não escreva por mim ou para mim, escrevo para os outros ou pelos outros. Do ponto de vista criativo, tem o seu valor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou uma autora tão experiente. Tenho um romance e alguns contos publicados, um infanto-juvenil em processo, duas peças de teatro.
Água Fria e Areia surgiu de textos guardados que, coincidentemente, tempos depois, percebi que giravam em torno do mesmo tema. Então organizei, entendi como poderia costurar uma narrativa e iniciei a pesquisa ao mesmo tempo que escrevi – de novo, a prática como preparação. Nos processos que estabeleci até agora, anotação, pesquisa, escrita e edição funcionaram meio juntas no caos, uma coisa se sobrepondo à outra. Talvez com mais tempo de prática isso se organize. Talvez não.
Nas peças de teatro o processo é igual, com o acréscimo de um caráter mais experimental que faz com que tudo leve mais tempo. Devo considerar a voz alta, o espaço, o tempo, ritmo, recursos cênicos, os ensaios. Sento, pesquiso, anoto, escrevo, experimento, edito. No caminho, jogo muita coisa fora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas, lido lendo, descobrindo recursos em outros autores, novas formas, ideias, pensamentos. Leio como quem escreve: fruindo, mas também caçando estratégias. Isso faz com que eu repense o meu texto e necessariamente me jogue de volta a ele.
A procrastinação eu respeito. Se existe algo que me afasta do texto, preciso entender o que é. Uma vez entendido, ou avanço ou engaveto pra retomar em outro tempo.
Quanto ao medo de não corresponder à expectativa… Existe, sempre vai existir. Olho pra ele, o reconheço. É uma companhia silente sentada à mesa. Tento mantê-la calada. Relembro-a de que a intenção é – sempre foi – contar uma história, sem pressão. E seguimos juntas.
Sobre trabalhar em projetos longos, gosto. Prefiro até. Não é isso que me gera ansiedade. O tempo de maturação das ideias, das formas de narrar, da estrutura… É importante. Nesse sentido, me saber com prazos elásticos é um conforto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas, tantas quanto possível. Talvez nunca sinta que um texto está finalmente pronto. Preciso melhorar isso. Só termino um trabalho quando outro – outra ideia, outra história, outro projeto – começa a querer tomar espaço. Aí é hora de encerrar o anterior. Sobre mostrar os trabalhos antes de publicá-los, sim: para todos os textos que escrevi até agora tive leitores. Gosto de compartilhar o processo pra não me sentir tão só. Mostrar o texto faz parte disso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tudo no computador. Às vezes nos blocos de nota do celular. Como escrevo editando, preciso de agilidade na organização e reorganização das ideias. Computador é bom por isso. Control C control V control Z.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tento andar atenta, leio muito, vejo arte. Isso desperta gatilhos.
A memória é outro laboratório. Lembro de algo que me marcou e que sempre me volta à lembrança. Anoto. Minhas sensações diante das coisas. Me estudar. Estudar as pessoas. Às vezes alguém me diz algo despretensiosamente. Anoto. Ouço uma conversa interessante no ônibus. Anoto. Leio algo bom. Anoto. Comportamentos. O ser humano, sempre o ser humano.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A dramaturgia mudou drasticamente a minha forma de escrever. Estar num núcleo de dramaturgia, como o SESI-British Council, abre uma janela imensa em termos de recursos narrativos que não se restringem só ao palco, mas que podem ganhar eco no papel. Ainda estudo como transpor a barreira dos estilos.
A mim mesma, diria, sempre pedirei: calma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Algo entre a dança, a literatura e o teatro. Tenho uma queda pela performance, mas não gostaria de voltar ao ofício da atriz que já não sou faz anos. Escrever e dirigir uma performance, talvez? Preciso pensar melhor isso.
Em 2015 iniciei um projeto de intervenção artística no transporte público de SP. Chamei de “Para de digitar e olha pra mim”. É algo com o qual ainda não me resolvi.