Vanessa Teodoro Trajano é escritora e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bom, infelizmente não há nada de muito inspirador no início do meu dia, pois não o começo como escritora, mas como a Vanessa. Tomo banho, café e vou trabalhar. Não vivo da escrita, espero que isso aconteça um dia, mas por enquanto a minha rotina está mais ligada ao que devo fazer do que com o que gostaria de fazer.
Porém, se estou de férias, procuro andar sempre com um caderninho para anotar as minhas impressões daquele dia ou do ambiente. Veja bem, isso além de literário é terapêutico. Perdemos ou nunca tivemos esse hábito porque a vida moderna nos força a simplesmente existir. Quando escrevo, lembro que estou viva.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo mais a noite. Quando todas as luzes se apagam e os barulhos ficam mais contidos você me encontrará lá, acesa de corpo e alma, debruçada sobre um caderno. Recolho as emoções daquele dia com as memórias de um determinado período e só me sinto satisfeita quando aquela angústia se transforma em algo mais ou menos aprazível. Não que isso seja um ritual, é mais uma necessidade de conforto. Se não escrevo, adoeço, literalmente. Gastrite, esofagite, ansiedade generalizada. Conheço esses males de perto. Então às vezes é só uma questão de arrumar tempo pra isso, o que normalmente ocorre à noite. Ou aos finais de semana.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Enfrento nos últimos anos uma enorme abstinência. Já passei da fase de escrever todos os dias. Como diz Paulo Leminski, é muito fácil ser poeta aos 16 anos quando não se tem conta nenhuma para pagar. Quero ver é ser poeta aos 30, 40, 50 anos, aí sim veremos a poesia como sinônimo de resistência, não como mero desabafo ou dor de cotovelo. Hoje escrevo pouco, mas numa qualidade melhor. Não possuo uma meta de escrita diária, mas sim uma relacionada a cada projeto. Por exemplo, atualmente estou com três novos livros. Um em processo ainda, que se chama “3 noites com Maria Eugênia”. É de contos. O outro é uma novela intitulada “Amor e Calamidade” que se encontra “finalizada”, mas na fase de revisão seguida de hibernação. Por último, um livro de poemas com nome provisório de Supermulher, com poesia homônima e recentemente premiada pelo Prêmio Literário Livraria Asabeça & Bignardi Papéis 2019, também está com revisão pendente. A minha meta, no momento, é aperfeiçoar os últimos livros citados e finalizar o primeiro. Quando concluir tais objetivos provavelmente terei outros. E vou dando seguimento a esses projetos nos períodos que me cabem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que devo explicar isso a partir do meu romance Doralice. Ele conta a história de uma moça cujo sonho é fazer teatro, mas as complicações sociais, financeiras e até geográficas da região que ela mora torna isso impossível. Para piorar a situação, a jovem perde a mãe que deixa sua pequena herança para a igreja, fazendo com que a nossa protagonista fique a ver navios. Esse enredo me veio na cabeça após observar as pessoas que vivem no interior, sem água, luz ou contato algum com a cultura, e perceber que alguém ali poderia ter alma de artista, mas existem outras questões mais urgentes que envolvem a sobrevivência e por isso a realidade esmaga qualquer um que ouse destoar de sua sina. Tentei resumir, mas observe: aqui reuni diversas ideias e se não tivesse o devido cuidado iria me “embananar”, como se diz na minha terra. Para que tal tragédia não acontecesse, procurei me organizar. Antes de colocar o insight no papel, realizei uma pesquisa sobre sucessão testamentária, a fim de não falar nenhuma besteira como também saber a partir de que ponto poderia criar. Aprofundei-me na lei mesmo e conversei com advogados a respeito do assunto. Levantadas as informações resultantes dessa pesquisa (e outras relacionadas à vida no campo e no teatro), construí um esquema de modo que pudesse visualizar, numa única lauda, o transcorrer de toda a história. E dali ela se fez, naturalmente. Quando eu tinha dúvidas ou me perdia era só recorrer àquele mapa mental. Às vezes o enredo era encaminhado para outras nuances, mas daí eu avaliava se a mudança era melhor do que eu havia colocado antes e a partir disso decidia se alterava ou permanecia do jeito que estava.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em outros tempos, eu ia beber quando me sentia impotente. Tinha aquela ideia estúpida de que os escritores tinham que ser malditos e se afogar em álcool para serem realmente bons. Quem difundiu isso não tem o menor conhecimento da biografia dos grandes clássicos. É claro que devemos sim ter uma fase bem dark para que a gente se reconheça enquanto artista, mas acho que se ficarmos nela ad eternum faz é atrapalhar. Hoje se não consigo escrever procuro simplesmente ler e ter paciência, que a inspiração e a disposição para o trabalho virá.
Em relação ao medo de não corresponder às expectativas ou a ansiedade de trabalhar em projetos longos não me lembro de ter me ocorrido. Considero-me confiante, só publico aquilo que vai agradar o leitor, no meu julgo, é claro. Nem tudo que escrevo vem a público. Tenho mais de trezentos poemas escritos, mas devo colocar em livro no máximo uns quarenta. Sou muito crítica comigo mesma. E trabalhar em projetos longos para mim é sempre um desafio além de um grande prazer. Uma forma de ter algo para fazer nas férias. Por exemplo, a novela “Amor e Calamidade” escrevi em janeiro. Carregava a vontade de escrevê-la há mais de um ano, mas realmente não tinha tempo para isso, dava aula os três turnos, às vezes os sete dias da semana. Quando enfim me livrei das obrigações a obra nasceu. Para isso, desinstalei facebook, whatsapp e instagram. Fiquei isolada do mundo. Em duas semanas “Amor e Calamidade” estava lá, prontinha para uma nova etapa, que era a de revisão e reescritura, e estou nela desde então.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não dá pra contar, mas são muitas e muitas vezes. Eu também tenho uma coisa de deixá-los hibernando. Literalmente esqueço que eles existem. Quando vou mexer neles de novo digo: nossa, isso está horrível! E vou mudando. Aí deixo hibernar de novo. Depois leio três, quatro, dez vezes seguidas. Quando abuso mando para a revisão externa. Mas não mostro para ninguém. Toda vez que fazia isso me arrependia. Antigamente, eu publicava os meus textos no blog, depois compilava para colocar em livro. É diferente de você solicitar a opinião de alguém individualmente. Às vezes você acha que o texto está foda, mas essa pessoa diz que não está – e até explica por que. Então prefiro não proceder dessa maneira e confiar na minha intuição.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo a mão. Não sou desse tempo, definitivamente. Paguei uma amiga para digitar o meu romance. Não gosto de passar horas na frente do computador nem com o celular na mão. Mas se você me der um caderno, viro a noite. E pra ser bem franca só tenho redes sociais para divulgar o meu trabalho. Por mim, eu vivia num sítio lendo oito horas por dia, como fazia Hilda Hilst.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tento ir sempre ao teatro, frequentar exposições e assistir a bons filmes. Tem pessoas que também parecem exalar conhecimento, né? Procuro me manter conectada com elas, pois excitam a minha criatividade. Além disso, a leitura está sempre presente na minha rotina. Leio os mais variados gêneros, menos a crítica literária – só quando sou obrigada. Rilke sempre diz que se os críticos não são artistas eles nunca entenderão o que dizemos nesse grande não dito que é a literatura, por isso não devemos ligar tanto assim para o que eles decretam. Claro que reconheço a importância da pesquisa acadêmica – eu sou pesquisadora também – mas sei que ela tem uma finalidade totalmente oposta daqueles que desejam imergir no vão da palavra. Por esse motivo, a cada cinquenta romances leio uma crítica. De preferência se vier de um ficcionista ou poeta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
De fato, amadureci, não retrocedi. Já havia uma força narrativa motivada pela leitura de grandes clássicos da literatura, mas também excesso de adjetivos e construções desnecessárias. Porém, eu os deixaria lá. Esses “erros” e “equívocos” fazem parte da minha história, da minha linguagem, do meu processo narrativo. A única coisa que faria era tomar mais cuidado com a revisão, porque não enxergo os meus erros de português e por isso é necessário pagar uma pessoa realmente responsável para realizar essa missão. Já me decepcionei muito com esses profissionais. Atualmente, trabalho com revisão textual num órgão público e sei o quanto é difícil tal função. Que “deixar passar” é a coisa mais fácil que existe, principalmente se você sofre de leitura automática como eu. Porém, habituei-me a ler e reler um documento tantas vezes que não faria o contrário se me dessem uma obra para revisar. A revisão, na verdade, é a melhor amiga do escritor. Ela pode te difamar ou te colocar no céu. Por isso a escolha do revisor deve ser pautada em sua competência e na confiança tida por ele.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever para o teatro e um roteiro para o cinema. Desejo transformar “Ela não é mulher pra casar” num curta ou longa metragem e me aventurar em outras linguagens. Estou providenciando isso. Em breve, quem sabe, eu não seja a nova dramaturga e roteirista de que falam por aí?
Eu gostaria de ler uma perspectiva diferente a respeito do amor, algo nunca visto. O amor como fardo ou completa rendição. O falso incondicional. A matéria bruta da memória e o quanto ela pode ser fantasiosa. Foi essa a minha intenção ao escrever “Amor e Calamidade”. Será se consegui? Veremos.