Vanessa Passos é escritora, doutoranda em Literatura e autora de “A mulher mais amada do mundo”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia bem cedo enquanto todo mundo está dormindo. Eu me habituei a acordar de madrugada por vários motivos: pela rotina puxada de trabalho, pela filha pequena (agora grande, rs), porque sou uma pessoa diurna. Gosto de acordar cedo, às 3 da manhã. Nesse horário, minha cabeça ainda não está povoada de trabalhos e compromissos, ela está leve e livre, então posso estar inteira para escrever, para a literatura me possuir, esse bicho selvagem. Mas não escrevo apenas neste horário, escrevo também sempre que dá. Estou sempre roubando tempo para escrever, porque os compromissos são muitos: o Doutorado em Literatura, as consultorias literárias, o acompanhamento dos alunos e alunas de escrita do Curso 321escreva, a produção de conteúdo para o Pintura das Palavras, as leituras críticas. E, neste horário, há um maior espaço para a Vanessa escritora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã é sempre o meu melhor horário. Mas o fundamental mesmo, para mim, é ter uma rotina de escrita, e quando falo em rotina de escrita falo de manter uma convivência de perto com minha história, meus personagens, como num caso amoroso, como fala Rainer Maria Rilke. Não é necessário escrever e escrever muito todos os dias, mas o movimento de escrever, pesquisar, germinar a ideia na cabeça também faz parte disso. O meu ritual está muito ligado a duas atividades fundamentais para o desenvolvimento de uma escritora: ler e escrever. Sempre antes de escrever, pego um livro e leio um conto, um capítulo de romance, uma poesia. A leitura abre o meu campo criativo e me desliga do mundo real e pragmático. A leitura funciona como um portal que se abre diante de mim para o universo da criatividade. Depois disso, começo a escrever, sempre à mão. Sou uma pessoa muito sensorial e poder escrever e rabiscar o papel me dá um prazer que não consigo explicar. Já escrevi no computador, mas eu sempre ficava muito ansiosa olhando o número de palavras e caracteres, sem falar que eu caía na tentação de me distrair com as possibilidades de abas, tenho tendência a me dispersar. Quando escrevo à mão, estou só eu, o papel, a caneta e as vozes na minha cabeça – dos personagens, rs.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo (ou reviso) todos os dias. Nem sempre foi assim. Mas, na minha trajetória enquanto escritora, percebi que quanto mais eu demorava para escrever e tinha espaços longos de tempo sem o contato com a caneta e o papel, mais eu me distanciava das histórias que eu queria contar. O livro Cartas a um jovem poeta, que indico a todo mundo que deseja escrever, me ajudou a perceber que a escrita é como um relacionamento amoroso, é preciso alimentar todos os dias. Sim, então, estou sempre escrevendo. Não tenho necessariamente uma meta diária, mas, se estou dedicada a um projeto de livro e, se for romance, gosto de sempre que sento para escrever, escrever um capítulo – isso me ajuda a controlar minha ansiedade e ter uma sensação de começo, meio e fim, quase como se fosse um conto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Já foi difícil. Eu procrastinava muito por causa do meu perfeccionismo. O estudo com afinco de Escrita Criativa me ajudou a perceber que, “Não tenho dúvida de que chegará o dia em que você será mais inteligente, ou mais bem informado ou mais habilidoso do que é agora, mas nunca estará mais pronto para começar a escrever do que neste exato instante”, palavras de Stephen Koch. Então, eu começo sempre “Pra Ontem” (meu lema e nome da minha Newsletter, em que envio meus textos literários). Vou escrevendo e pesquisando, porque existem coisas sobre nossa história que só descobrimos quando colocamos o texto à prova e à medida que escrevemos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou uma pessoa muito ansiosa. Deu para perceber, porque antes mesmo de você perguntar eu já havia falado sobre ansiedade nas perguntas anteriores. Lido com o que eu chamo de vilões da escrita (perfeccionismo, autocrítica, comparação, medo da crítica do outro, procrastinação, etc), em primeiro lugar, com um autoconhecimento grande sobre quem sou. A Vanessa escritora é antes de tudo a Vanessa, essa mulher ansiosa, atarefada, cheia de projetos, que tem pressa e muitas outras faces de mim mesma. Então, crio estratégias para trabalhar cada uma dessa dificuldades que eu conheço tão bem. Por exemplo, para lidar com o perfeccionismo, adotei o lema “feito é melhor do que o perfeito não feito”, então, escrevo minha primeira versão cheia de erros e imperfeições, sabendo que, no momento da revisão, é que um texto é realmente aperfeiçoado e toma forma. Para lidar com minha procrastinação, em geral, eu estou sempre engajada a um projeto de livro, seja um livro de contos, seja um romance, assim, eu me dedico a ele até o final, exigindo de mim uma rotina para alimentar diariamente meu objetivo e semear minha escrita. Também gosto de colocar como motivação um concurso literário, um edital ou algo que me leve a terminar dentro de um prazo para me manter focada, eu tenho tendência a me desfocar, então lido com meu processo de escrita lidando com quem a Vanessa é, com suas qualidades e defeitos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Considero esse um dos pontos de maior maturidade da minha trajetória literária. No início, há muitos anos atrás, eu escrevia e não me preocupava tanto em revisar, jogava no papel e pronto. Com o tempo e o estudo frequente de Escrita Criativa, descobri que um texto só foi realmente escrito quando foi reescrito. Hoje, reviso várias e várias vezes, incansavelmente. Tenho leitores betas e costumo contratar um serviço de leitura crítica no processo final, porque não importa se eu também sou professora de escrita, nós não podemos ser escritores e críticos da própria obra. É preciso que o que escrevemos seja submetido ao olhar do outro. Com o meu romance Pedido quase uma prece, ainda inédito, estou na quarta revisão. Após terminar de escrever, enviei o romance para sete leitores betas. Além disso, eu tive o feedback de escritoras e escritores importantes, amigos queridos: Giovana Madalosso, Marcelino Freire, Paulo Scott e Carola Saavedra. Mas não fiquei satisfeita (rs). Contratei o serviço de leitura crítica do Paulo Scott para fazer a leitura minuciosa e os apontamentos sobre o livro. Sou uma pessoa apressada, e o olhar atento a esse processo de revisão me ajuda a trabalhar com o vagar que a literatura precisa. Mas, lembrando, não podemos confundir trabalho minucioso com procrastinação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia é boa, mas, em geral, gosto de explorá-la melhor na etapa da divulgação do livro, conexão com leitores e produção de conteúdo sobre escrita. Escrevo à mão. Sinto prazer de ver minha letra garranchada preenchendo o papel na busca de registrar e acompanhar o fluxo de ideias. Gosto de cortar frases, puxar setas e fazer asteriscos enquanto escrevo. Escrever à mão me ajudou também a ser menos prolixa, a escrever textos mais curtos, mais cirúrgicos. Às vezes, eu corto antes mesmo de escrever, rs. Menos é mais na literatura. E uma única substituição de palavra pode fazer toda a diferença no ritmo da frase. Leio e releio o texto em voz alta sempre, várias vezes. Enceno a fala dos personagens e me pergunto: eles realmente falariam isso ou agiriam assim?
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm da vida, da condição humana, da capacidade de observar as pessoas, os gestos, os detalhes e de escavar a memória, como fala uma das minhas escritoras preferidas, a Lygia Bojunga. E também da leitura, de muita leitura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu deixei de ser prolixa, aprendendo a amar o processo de revisão de um texto, de um livro. Eu me divirto cortando, trocando palavras, pensando em novas formas de dizer, testando, experimentando sempre. Eu teria lido Rilke antes e responderia a mim mesma que sim, sim, eu morreria se deixasse de escrever e que, por mais corrida e turbulenta que seja a minha vida, eu vou continuar escrevendo, até depois do fim.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou me dedicando no momento a dois projetos. Dois romances. O pedido quase uma prece e o Boa noite, Clarice (título ainda provisório). O primeiro romance já está na quarta revisão. Conta a história de uma geração de mulheres: avó, mãe e filha. Trabalha com temas tabus, como: a rejeição da maternidade, a religiosidade, o fanatismo, o ceticismo, a violência contra a mulher. É um livro que fala sobre identidade, sobre o encontrar-se em si mesma, sobre o difícil processo de empatia pelo outro e, claro, o desejo de escrever histórias. Minhas personagens estão sempre querendo escrever, assim como eu, essa é uma das minhas obsessões. O segundo romance ainda está em construção, mas trata da história de uma mulher que sofre de depressão, que deseja (e planeja) a própria morte, mas que vai ter um encontro inusitado com a vida e com as outras mulheres que circundam sua vida. Tenho obsessão também por personagens femininas e o meu projeto literário envolve contar suas histórias, assim como fiz no meu livro de contos A mulher mais amada do mundo, que narra a histórias das mais diversas personagens femininas e que trabalha com questões de gênero, raça e classe.