Vanessa Maranha é escritora, autora de Quando não somos mais.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Inicio o meu dia quase sempre na correria, pois sou notívaga e, dormindo tarde e me levantando cedo para a rotina do consultório (também sou psicóloga clínica), quase todos os dias saio em cima da hora. Assim, não sigo rotina de escrita pela manhã.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Percebo que produzo bem no caos. A escrita como um ponto de retirada estratégica, como uma forma, inclusive, de organização do caos. A vida que eu levo, cheia de compromissos, não me permitiu ainda abrir uma brecha de tempo para construir uma rotina para a escrita, como fazem os escritores profissionais. O que tenho é um compromisso com a escrita, propondo-me a manter contato com aquilo que eu estiver escrevendo, ou seja, não importa a que horas e de que forma, não me permito perder contato com o livro por mais de dois dias, senão o texto vai embora, a atmosfera criada se rarefaz ou se perde radicalmente do seu propósito, ao menos comigo é assim. E às vezes perder-se é encontrar-se, houve momentos em que isso foi bom, mas, no geral, é melhor persistir num projeto. Prefiro escrever de madrugada, sem telefone tocando, sem barulho na rua, sem elementos de distração, alguns, verdadeiros ladrões de energia. O banho já me trouxe arremates e construções interessantes, mas é no silêncio, com uma luz bem suave, indireta ou de abajur, que gosto de escrever, de preferência à mão, com caneta de ponta bem fina (que possibilite depois a escrita concreta nas entrelinhas e o enxerto ou substituição de palavras) e folha pautada. A digitação posterior torna-se já uma reescrita. De todo modo, se escrever e ler (um não existe sem o outro) me acrescenta muito, obviamente retira também. São momentos gregários subtraídos, festas às quais não vou. Escrever é também um jeito de não viver ou de viver num universo paralelo e o autor precisa encontrar a medida entre o humano e o escritor, afinal, uma persona, sob pena de ensimesmar-se autisticamente num limiar autoritário – em sendo detentor dos destinos e scripts ficcionais, começar a acreditar que a vida seja assim. Não é.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sim, quase todos os dias, nem que sejam apenas notas, registros de impressões e pensamentos que me assolam ao longo das horas. Mas prefiro escrever à noite, ou melhor, de madrugada, como já falei, sem interferência telefônica, sem os ruídos do dia, com a internet desligada. É mais um impulso. Vem quase sempre de um incômodo, tanto que nos períodos de latência, em que o texto fica preso na garganta, sem forma ainda, fico mau humorada, desconfortável. Quando estou assim, já sei que há um texto em mim a ser escrito. Agora, quanto à motivação, talvez seja mesmo a necessidade de expressão, o grande prazer de criar formas, de transgredir certos cânones, de ser crítica com mais liberdade, personagens às vezes como heterônimos mesmo, noutras não, realmente estranhos. O desafio de me superar, sempre. Há um mistério aí.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é sempre de roldão, digamos. Algo como uma angústia basal, um incômodo, uma certa inquietude muda, de fundo – já reconheço exatamente esse incômodo, único – e que só se alivia com a escrita. Eu processo as notas que vou colhendo como os dadaístas: sinestesias, movimentos, descrições de estados de espírito, constatações de momentos, tudo isso se transforma em colagens, em matizes para cenas ou capítulos. Esse movimento da pesquisa para a escrita é bastante natural, conforme vou escrevendo o romance vou me lembrando que posso sacar esta ou aquela impressão guardada em notas. Algo muito parecido com processo mnemônico, a utilização de padrões que a mente faz de conexões já conhecidas para interpretar ou reagir. Mas como geralmente as minhas anotações dizem respeito a densidades emocionais mais extensas, eu não confio somente na memória; deixo-as anotadas como se fossem uma memória externa. Afinal, escrita é isso, não? Em relação à pesquisa, estou finalizando o meu terceiro romance e, para este, tenho feito pesquisas mais sistematizadas, menos emocionais, pois embora ficcional, o livro busca alguma coerência cronológica com o factual que narra. Eu tenho feito essas pesquisas em bibliotecas e universidades fora do país, via internet e com o auxílio de amigos que visitam, no exterior, alguns dos lugares citados. O objetivo é conferir alguma verossimilhança a dados baseados no real, mantendo a licença da ficção, sempre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Costumo dizer que não procrastino com a escrita, especificamente, pois fazê-lo seria prolongar uma angústia. Vem a angústia e a escrita é o meu escape, o alívio, de modo que, em vez de arranjar distrações, faço o contrário, busco me desvencilhar de todas as pendências logo para me atirar nela. Grosso modo, é como alguém que tem dor de cabeça e quer logo tomar uma pílula para o seu alívio. A escrita tem esse papel em mim. Eu já descrevi também a minha relação com a escrita numa outra entrevista como se a literatura fosse uma espécie de amante com quem se deseja muito encontrar, e, quando há desejo efetivo, nos tornamos impressionantemente eficazes, sem procrastinação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Centenas de vezes. Sempre acreditando que posso melhorar aqui e ali. Sempre burilando o texto, esculpindo-o, retirando os excessos, lendo o livro em voz alta para sentir a musicalidade do texto, para trabalhar os cortes, as elipses. Sim, os meus romances foram todos submetidos à leitura de amigos antes de eu considerá-los prontos para publicação. O romance “Contagem Regressiva” eu submeti a um leitor. Como a ideia era mimetizar voz masculina, eu pedi a ele que apontasse as discrepâncias na voz, no sentido de que avaliasse se não estava soando muito “mulherzinha” para a voz que eu pretendia, se a minha perspectiva feminina não nublava o personagem. “Começa em Mar” teve um leitor e uma leitora prévios.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meu processo de criação é manuscrito. Escrevo um primeiro capítulo à mão e deixo-o descansar. Volto corrigindo à mão mesmo, editando. Depois digito. Na digitação, nova edição. E, posteriormente, mais uma. Sim, como já disse, eu edito muito. Quando comecei a escrever, não o fazia, tinha a arrogância da juventude, de pensar que a coisa vinha praticamente pronta. Não vem. É preciso esculpir o texto, dar-lhe musicalidade, retirá-lo das ideias acostumadas, infundir-lhe reflexão, beleza e estranhamento.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu gosto muito de aprender sobre tudo. Tenho um grande interesse sobre tudo o que venha do humano, não por acaso escolhi um trabalho clínico. Talvez essa epistemofilia seja, digamos, o motor da escrita que, em mim, não deixa de ser uma forma de aprender. Debruçar-me sobre um tema vem sempre de eu estar de certa forma implicada com ele e é certamente um método próprio de aprendizado. Penso que o hábito que de fato incensa a escrita é a leitura. Sou uma leitora contumaz. Quando gosto de um autor, costumo puxar o novelo e ler toda a sua obra, bem como as suas influências, para compreender como se deu aquela construção. É impensável, para mim, viver sem ler.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Quando iniciei, como contista, eu queria iniciar e finalizar o texto logo. Não o deixava decantar. Muito fixada na ideia do “punch” cortazariano, por assim dizer. Hoje penso que um texto necessita de decantação, como os taninos de um vinho necessitam de tempo para expansão de moléculas, assim é a literatura, a despeito de toda essa rapidez que nos cerca. Tempo é a matéria-prima da literatura, a meu ver. Dessa percepção veio o meu encantamento pelos romances. O fascínio do romance é que, pelo período em que você se envolve em sua produção, como autor, você se torna habitante daquele mundo que criou, palmilhando os passos daquelas personagens, a atmosfera, toda a arquitetura e os seus temas passam a fazer parte da sua vida, há uma aderência. O conto é o nado ornamental, laboratório incrível. O romance, o mergulho. Sempre me agradaram as obras que trabalham a fratura na linearidade e as disjunções. A linearidade é uma ilusão, um desejo infantil. A mente não é linear, nenhuma vida se dá em linha reta. Em termos de influências, posso reconhecer a trajetória e seus movimentos, já em perspectiva. As leituras são conjecturais, tenho momentos de grande paixão por tais ou quais autores e movimentos. “Começa em Mar”, esteticamente, por exemplo, tem um matiz kafkiano forte, Kafka tem sido um dos meus autores de cabeceira. Voltei ao realismo mágico de Gabriel García Márquez no período em que escrevia este livro, retomei Fernando Pessoa para rebuscar a sintaxe portuguesa que eu pretendia. Somos a somatória das nossas experiências, portanto, de Shakespeare, passando por Italo Calvino e Virginia Woolf, autores que nunca abandono, Marguerite Duras, Machado de Assis, Inés Pedrosa, Colson Whitehead (essa grata surpresa contemporânea a resgatar o realismo mágico) e Chimamanda, uma autora que tem me encantado também na sua sustentação discursiva, há o sopro de vários autores nesse livro. Mas, inicialmente, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, muito. Eu diria a mim mesma: faça o seu, mas permita ao tempo fazer a sua parte no trabalho.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa! Dois projetos me atraem atualmente. Eu gostaria de escrever funda e intensamente sobre a infância, mais alongadamente do que fiz com “Contagem Regressiva”, algo como botar uma luz no “escuro do mundo”, desde as coisas embrionárias aos calvários da infância. Também gostaria de escrever um livro sobre sonhos, sobre as transas e tramas do inconsciente, suas figuras, mas tudo de forma absolutamente ficcional, encontrando uma sintaxe própria aos sonhos, algo na linha do deslumbrante “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino. Eu gostaria de ler um livro sobre um período na vida interior de uma mulher na Idade Média, por exemplo; ou nos confins da China de dois mil anos atrás; ou da Índia. Talvez em Creta. Onde nasce o atavismo, isso me interessa.