Vanessa Dorneles Schinke é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina matinal, acho que as rotinas variam conforme os ciclos, mas sei que gosto de acordar cedo. Não que isso aconteça com a frequência que idealizo, mas rendo muito mais de manhã. Claramente faço atividades com maior qualidade durante a manhã e, quanto mais cedo acordo, melhor trabalho, independentemente da natureza da tarefa que eu tenha que fazer: desde a mais burocrática até a que requer maior criatividade. Claro que só falo isso porque ainda não tenho filhos. Acho que quando tiver ficarei feliz se conseguir dormir. No Brasil, ser mulher, mãe e docente é um ato de resistência.
Atualmente não tenho muita rotina, recentemente fui nomeada em uma Universidade Federal localizada em outra cidade, tive que fazer uma grande mudança e ir para um local onde tudo é novo. Estou mais interessada em me familiarizar com esses novos espaços e estabelecer uma rotina do que alterar algum hábito antigo.
Um costume que tenho há anos sobre minhas manhãs é que eu mentalizo um dia antes o que preciso fazer no dia seguinte, de forma que quando acordo já saio cumprindo as tarefas, mas sem atropelos. Prefiro acordar antes a ter que fazer minhas obrigações com pressa. Não gosto de acordar correndo e apressada. Em regra, acordo bem-disposta e não me enrolo muito com o despertador, mas também não saio correndo pela casa. Tomo café com calma, vejo como está o dia, visualizo o que irei fazer e começo.
Durante os primeiros meses do meu mestrado, na UnB, morei na casa de familiares até alugar um apartamento. Até então eu morava em Porto Alegre. Lembro que minha prima, que mora há anos em Brasília, comentava que a melhor coisa para ter disposição pelo resto do dia era acordar cedo e ir para a academia fazer um tal de spinning. Sempre achei esse hábito bem estranho e nunca soube exatamente sobre qual exercício ela falava. Um dia entrei em uma academia (que frequentei por inconstantes quatro meses) e vi uma sala escura, com luzes que lembravam uma “balada forte” e várias pessoas muito animadas em cima de bicicletas coladas no chão. O mais curioso: algumas gritavam de forma esparsa durante o exercício. Só poderia ser aquilo. Há poucos dias (dez anos depois dessa conversa com minha prima) me matriculei em uma academia, nessa cidade nova, que disponibiliza essa atividade de bicicleta pela manhã, bem cedo. Começa às 7h30. Achei bizarro, mas fiquei curiosa. Dito e feito. Fiz o tal exercício durante poucas semanas. Achei genial. A atividade, em si, é estranha (bicicleta grudada no chão, iluminação cafona e música medonha), prefiro correr pela rua, mas funciona. Realmente fiquei disposta pelo resto do dia. Minha prima é uma sábia, eu que não estava preparada para o desafio. Infelizmente, foi apenas uma experiência que durou três semanas. Achei o horário muito ineducado para atividades físicas e, desde então, voltei a fazer exercícios em horários mais realistas… depois das 18h.
Durante meu doutorado sanduíche, em Londres, costumava acordar em horário educado (a partir das 8h, antes disso acho falta de respeito), tomar um rápido café em casa e pegar um ônibus, daqueles double decker, até a biblioteca da King´s College London. Durante aqueles meses, invariavelmente descia no ônibus, comprava um café mais encorpado e ia caminhando até a biblioteca, onde ficava até o início da tarde, quando teria que sair novamente para almoçar. Essa biblioteca em que eu estudava é tombada e lindíssima, mas tem poucos lugares. Quem chegava depois das 10h tinha que ficar esperando alguém ir embora, o que costumava demorar bastante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É claro que todo acadêmico já teve virar noites sem dormir, passar dias a base de café e outros hábitos alimentares terríveis. Também já fiz isso e se precisar fazer novamente, acho que farei, mas não é comum para mim. Preciso e gosto de dormir bem (de seis a oito horas de sono) e claramente escrevo melhor pela manhã. O que facilita é que nunca tive insônia. Simplesmente decido que quero dormir, vou para o quarto e só acordo com o despertador, no outro dia. Acredito que manter uma atividade física aeróbica ajude nisso. Sempre fiz esportes. Qualquer esporte, desde corrida de rua, natação, yoga, pilates, etc. Qualquer atividade que movimente o corpo e imponha desafios físicos é válida. Pode ser uma ilusão minha, mas tenho a clara sensação de que fico menos criativa e proativa com as atividades acadêmicas quando não tenho uma atividade física paralela.
Quando tenho metas e prazos para cumprir sou muito disciplinada, principalmente em trabalhos longos. Claro que precisamos nos conhecer para que essas disciplinas funcionem. No caso do doutorado, quando a qualificação foi se aproximando eu escrevia todas as tardes, após o almoço. Simplesmente sentava e escrevia por umas três ou quatro horas. Era um intensivo. Após a qualificação, passei a ir para uma biblioteca que funcionava até de noite, mas eu ficava nessa biblioteca apenas um turno, ou de manhã ou de tarde. Ninguém escreve 24h com qualidade, isso não existe. No final do mestrado também escrevi todas as tardes, durante uns dois meses. Deu tudo certo. Não tenho muita paciência com quem faz drama quando está na reta final do doutorado e precisa escrever a tese. Isso de escrever a tese é básico, todo mundo termina o doutorado e a vida segue.
Lembro que no início do mestrado eu quis estabelecer um ritual de escrita. Minhas aulas eram pela manhã, então eu pretendia escrever todas as tardes, após o almoço. Ocorre que eu tinha acabado de chegar em Brasília e ninguém tinha me avisado que a altitude do planalto central requer uma adaptação e, até que isso aconteça, normalmente dá muito sono. Dito e feito. Eu só queria dormir. Se dependesse de mim, eu dormiria até o outro dia, tranquilamente. Depois de alguns dias comecei a ficar triste porque não conseguia me disciplinar, mas com o tempo fui me adaptando e conseguindo criar algumas rotinas de escrita. Tem isso também, há uma diferença entre ritual, procrastinação e fatores externos, alheios à nossa vontade (como esse caso da altitude). O importante é perceber quando não está dando certo e conseguir tomar uma atitude para contornar o problema e refazer o planejamento original. Tem outra questão importante para eu começar a escrever: não consigo escrever com fome. Preciso comer bem antes, durante e depois.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, nem tenho metas diárias, mas já tive. Se precisar ter novamente, sei como fazer. Meu primeiro paper foi escrito no último dia do prazo. Eu ainda estava na graduação e não fazia a menor ideia do que era um “paper”. Alguém do meu círculo de amigos comentou sobre um congresso, eu entrei na página do evento e vi que havia algumas regras para enviar um texto. Olhei nas instruções e percebi que era o último dia para envio dos manuscritos. Achei um desafio e resolvi escrever. Claro que era uma temática que eu tinha certa familiaridade e, possivelmente, algo já estava maturando na minha cabeça, a ponto de eu conseguir reunir fontes e escrever um paper decente de uma hora para outra. É um caso clássico de “como não escrever um paper”, mas foi minha primeira experiência. O resultado foi surpreendente: é um dos textos mais organizados que já escrevi. Desde então, lido bem com prazos, mas não costumo escrever com muita antecedência, talvez por um antigo padrão criado por essa primeira experiência.
Às vezes fico chateada porque não consegui desenvolver tudo o que queria em algum texto. Daí vem aquele pensamento surreal de que “aaah se eu tivesse começado a escrever antes…” Claro que não é verdade, ao menos não sempre. Hoje em dia, fazemos o que dá para cumprir todas as obrigações da carreira docente. Nunca aconteceu de eu perder algum prazo ou entregar algo ruim. Talvez um pouco abaixo do que eu teria idealizado, mas certamente o possível dentro das atividades acumuladas que possuímos na vida acadêmica. Acredito que se a pessoa não fica se enrolando para começar a escrever e não procrastina, não existe padrão ideal, o texto será sempre o melhor dentro do possível. Tudo fica mais saudável se encararmos a realidade e as nossas limitações. Também não vivo para trabalhar, trabalho para viver e, casualmente, gosto do meu trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Só começo a escrever quando já tenho uma ideia amadurecida e bem clara. É quase um processo de transposição. Inclusive evito começar a fazer qualquer rascunho enquanto não tenho uma ideia clara do que quero escrever. Antes de começar a escrever faço, eventualmente, algumas anotações, mas nada organizado. São nomes, palavras-chave, uma ou outra referência que quero ler depois. O interessante é que nem sempre eu recorro a essas mesmas anotações quando começo a escrever. Talvez elas só sirvam para amadurecer a ideia, como parte do processo mesmo.
Há alguns anos tentei ser organizada. Comprei vários post-its, canetas coloridas e tal. Não deu certo. Eu perdia mais tempo colorindo as frases de um artigo ou escolhendo um lugar para grudar o adesivo colorido do que refletindo sobre o conteúdo do que tinha acabado de ler. Claro que também ajuda o fato de que minha memória não é visual, mas auditiva. Preciso ler para ter a imagem acústica da palavra na cabeça. Depois disso, no máximo dobro a folha do artigo ou do livro para conseguir localizar determinado trecho na hora de escrever. Tem o esquema do título também. Escrevo qualquer coisa como título e começo. Depois altero o título inicial (que normalmente é horroroso, só serve para iniciar o texto mesmo). Também não fico horas olhando para a tela do computador: se ficar mais de três minutos sem saber como começar prefiro levantar, dar uma volta e tentar novamente depois. Normalmente essas travas iniciais não ocorrem porque só começo a escrever quando o texto está caindo de maduro.
Também costumo escolher um lugar específico para escrever cada texto e costumo permanecer nele até concluí-lo. Isso é meio inconsciente, mas já percebi que faço isso. Acho esse costume meio estranho, mas é verdade. Uma poltrona, o canto do sofá, uma cadeira no escritório, etc. Cada um tem a sua vez.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tem que fazer. É isso. Nunca acreditei no mito da genialidade, da pessoa que fica olhando para o céu e pensando nas estrelas e, de uma hora para outra, escreve dois best sellers. Não caio nessa. A diferença é que tem gente que vende esse mito e gente que compra (na verdade, nem sei se ainda compram…). No meu caso, para escrever rápido e sem procrastinação, a ideia já deve estar amadurecendo há bastante tempo na cabeça, não é um raio sobrenatural que cai. O que existe é disciplina e foco. Dependendo do projeto, bastam dois dias de dedicação integral. Em projetos mais longos a coisa muda um pouco, mas também requer disciplina em algum momento. Também acho que existe um pouco de exagero nessa história de procrastinar, desconfio que algumas pessoas usem isso para puxar assunto e se sentirem inseridas na academia, como se fosse um mínimo-comum das rodas de conversa, mas acho isso desnecessário.
Essa história de o doutorado durar quatro anos é meio estranha. É praticamente uma vida. Lembro que tive muitos ciclos dentro do doutorado, de tão longo que é. Não costumo fazer projetos muito longos, mas admito que estou com projetos recentes de dois anos e estou conseguindo administrar bem. Acho que o grande problema dos projetos longos é conseguir manter o ritmo e a qualidade das atividades. Requer uma linearidade, o que realmente não é muito fácil, mas é um bom desafio. Não sei se manterei essa prática de projetos com mais de um ano, mas tem sido um bom aprendizado.
Em relação à ansiedade, não é muito minha praia. Percebo que fico ansiosa quando não estou fazendo algo que eu já sei que poderia estar fazendo. Aí vem uma voz na minha cabeça dizendo “Oi Vanessa, você está tentando procrastinar ou é impressão minha?” Como não gosto dessa sensação, costumo não me enrolar muito. Fico pouco tempo com essa ansiedade porque acho muito desconfortável e insalubre. Chego a dormir mal quando começo a desconfiar que estou procrastinando algo. O melhor remédio é colocar a mão na massa. Tem a história das redes sociais também. Como não sou muito fã, chego a receber e-mails do facebook dizendo “Olá Vanessa, por onde você anda?”, mas muitos colegas de doutorado e de trabalho perdem o foco navegando durante horas nessas redes. Nunca aconteceu comigo, mas imagino que seja um problema comum hoje em dia. Acho que o processo de escrita requer uma energia muito bem direcionada, que não combina com essas distrações.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso toda vez que continuo a escrita. Sempre leio tudo desde o início. Em trabalhos mais extensos é preciso fazer um corte, conforme o texto vai crescendo. Já aconteceu de alguns textos serem publicados sem a revisão de uma terceira pessoa e não deu muito certo. Não tenho o hábito de circular meus textos, mas não me orgulho disso, estou mudando esse hábito. A formação jurídica é muito individualista, há pouco tempo os grupos de pesquisa e os trabalhos em equipe ganharam fôlego e reconhecimento. Quando fiz graduação, era impensável um artigo em coautoria. Eu nem sabia o que era coautoria. Imaginem só, que vexame, mas o fato é que na época pouquíssimos professores da faculdade de direito trabalhavam em equipe e, justamente por isso, não era necessário explicar para os alunos que estavam entrando no mundo da pesquisa como trabalhar em grupo, trocar ideias, etc. É um problema do ensino jurídico mesmo, não necessariamente do perfil do aluno que acaba de ingressar na pesquisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço tudo no computador. Atualmente estou tendo que me familiarizar com alguns programas para sistematizar dados de pesquisa e está sendo uma aventura.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
É uma boa pergunta. O que nos move, não é mesmo? Não sei ao certo. Acho importante perceber o momento de encerrar os ciclos, recarregar as baterias e começar outros. Esses momentos de pausa são importantes. Se não consigo desligar completamente em algum momento, dificilmente conseguirei criar um problema de pesquisa ou uma abordagem relevante. As trocas de experiências em congressos e eventos afins são muito ricas para mim, sempre me alimento de algum comentário nessas situações, principalmente quando partem de pessoas desconhecidas. Acho fundamental a pesquisadora sair do seu meio de convívio e ouvir relatos de pessoas que estejam em outros contextos.
Imagino que isso existe em outras áreas também, mas identifico no direito uma postura antiga de adotar temas de pesquisa por oportunismo, só porque estão na agenda pública. Já vi muito orientador pegar ideia de orientando e apresentá-la como se fosse sua nova linha de pesquisa. Sem falar nos congressos, em que as mesmas pessoas são convidadas para falar da formiga à bomba atômica. Mesmo que alguém seja especialista em “formiga”, é preciso oxigenar o debate, não é possível motivar esses novos pesquisadores com falas que se repetem há vinte anos e que partem de pessoas que não leem outros autores. É preciso dialogar hoje em dia, olhar o que é estranho, que não parte da gente. O grande desafio dos autores do direito é tentar ler mais do que escrever, para escrever melhor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Adquiri mais tranquilidade para escrever. Não que o processo seja menos intenso, mas o tempo faz com que conheçamos melhor nossos limites e nossos potenciais. Já consigo visualizar quanto tempo precisarei para colocar uma reflexão no papel e administro razoavelmente bem isso, mesmo com diversos prazos correndo paralelamente. Se pudesse voltar à escrita da minha tese, teria encaminhado a versão final para os revisores que trabalharam na minha dissertação de mestrado, é sempre bom uma revisão profissional.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Algum projeto que junte direito e política pública, mas os que conheço são muito chatos. Talvez eu esteja em busca de algo que não existe. Não sei ainda sobre qual tema, mas tenho essa vontade de deixar os resultados das nossas pesquisas mais próximos dos gestores. Acho que o país tem um problema gravíssimo de gestão, em todas as áreas.
Estou sempre aberta a novos livros, mas confesso que gosto de ler os clássicos. Clássicos mesmo, bem antigos: Dostoiévski, Homero, Ítalo Calvino, Dante Alighieri, Virginia Woolf, etc. Também fiz graduação em Letras, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, desde então, tenho uma simpatia especial pelos clássicos.