Vanessa Brunt é escritora, autora de “Depois Daquilo”, “Ir Também é Ficar” e “Não Precisa Ser Assim”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em um mundo ideal, poderia dizer que acordo pelo menos 1h antes do necessário (por ter respeitado o meu horário de sono no dia anterior), desperto com calma, ouço música, medito, faço atividade física, tomo um café da manhã reforçado e coloco tudo isso em prática sem a urgência de pôr o celular na cara desde cedo. Esta é a minha meta e imagino que seja a de tantos outros, mas, na prática, sabemos que a correria da vida tenta nos tirar das poesias e que devemos travar batalhas eternas para não deixar de enxergá-las. Sabemos que este novo e frenético século acaba sugando nossas energias e as brechas possíveis para seguir algo tão bem listado e regrado – na maior parte dos casos.
Trabalho em uma agência, em jornais e com as minhas redes sociais, então tenho horários para cumprir e a correria é iniciada desde quando afasto os cílios pela primeira vez no dia. Mas mesmo em finais de semana ou em férias, tento focar em acordar com aquela meta em mente. Tento não acordar já escrevendo sem parar ou fazendo qualquer coisa sem inspirar um bom ar (afinal: como fazer algo sem puxar para dentro a inspiração?).
Quando preciso escrever algo, paro tudo e escrevo, mas quando sei que preciso pausar, quando sei que preciso de um respiro ou de um momento a ser respeitado, tento escrever em tópicos. Ideias que surgem pela manhã geralmente são escritas assim: fragmentadas, meio soltas no meu bloco de notas.
Então, não tenho uma rotina específica nesse sentido (ainda). Gostaria de ter. Até porque a rotina não abafa quem tem o olhar curioso. Ela dá suporte para quem lembra que quem vai com alma não vai com calma, vai com planejamento.
Poderia dizer que um(a) escritor(a) deve focar em (re)viver e saber bem a diferença entre relaxar e descansar, só que tal necessidade vai muito além dessa função, porque qualquer ser humano que queira uma vida mais saudável e produtiva precisa mergulhar em tais aspectos.
O descanso vem quando deitamos e olhamos para o teto, quando tiramos um cochilo, quando paramos o corpo em algum momento sem dar funções específicas a ele. Mas o relaxamento é tão quanto importante quanto – quando não mais. Ele é sobre o lazer. É sobre momentos em que estamos fazendo algo, mas estamos, simultaneamente, pausando. É sobre assistir filmes, praticar um esporte ou viver detalhes que tiram sua mente de mais ansiedades, projeções e obrigações.
Afinal, como afirmo no meu livro Não Precisa Ser Assim: No dia a dia, pausar é também estar fazendo. Fazer é também algo pausar. Aprenda quando o cansaço bater, não a desistir, mas a descansar. E se, descansado, desistir for o melhor caminho: largue aos poucos enquanto tenta diferente dessa vez, porque mais importa a direção e as possibilidades do que toda a rapidez.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já houve uma época em que trabalhava melhor nas madrugadas, porque não sentia que as outras obrigações estavam me cutucando com pressa ou que os arredores prosseguiam a me chamar de alguma maneira. Mas depois percebi que não se trata da hora e sim da nossa mente, do que fizemos com ela no resto daquele dia.
Se tenho algo borbulhando dentro de mim e ainda não coloquei para fora em palavras, é porque preciso internalizar e ler ainda mais do que estou sentindo. Então paro para conversar com quem sei que sai dos rasos junto comigo, busco ouvir as histórias de vida de outras pessoas e também contar sobre as minhas (porque ensinando e explicando se aprende, ficando se ensina, mas forçando não se fica), paro e vou ouvir músicas, assistir filmes e devorar artes nas quais posso aprofundar lições, metáforas e mais compreensões próprias sobre o que estou acumulando por dentro. Quando consigo fazer essas trocas, tudo flui com mais velocidade.
Já em relação a algum ritual, depende do tipo de escrito que estou levando para o papel. Quando escrevo frases, textos ou poesias, pego o que estou sentindo e o que está me arranhando nas entranhas e depois penso em um tema que pode servir como metáfora. Exemplo: se vou falar sobre um amor que se mostrou distorcido ou falso, penso que uma casa pode ser o tema no qual vou trabalhar isso. Então, transformo aquele amor na casa que vem em minha mente e faço as metáforas dentro daquela ‘realidade’. O teto era a esperança da relação e caiu na minha cabeça, mostrando a realidade, por exemplo.
Também faço muitos jogos com palavras, as quebrando e trazendo novos significados e formas de entender a vida. Tudo isso vem dessa linha de pensar no sentimento e em metáforas ou ideias que mostram essas reflexões diferenciadas sobre eles.
Porém, quando estou escrevendo um conto ou algo com personagens mais elaborados, vou para os tópicos primeiro, sempre. Organizo o que vai acontecer, penso em toda a trama e, após, desenvolvo de fato.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É muito relativo. Tenho fases. Às vezes passo meses escrevendo bastante, principalmente quando estou elaborando uma trama longa. Tento colocar metas e quando não consigo cumprir, vou fazendo em um outro formato (escrevo em forma de poesia, coloco em versos ou anoto só as ideias e os cenários, por exemplo). Mudar formatos para finalizar ideias quando sentimos que não vamos produzir mais tão bem naquele dia é uma excelente opção.
Às vezes entro em uma época de escrever mais frases e, então, basicamente todos os dias coloco uma nova no bloco de notas. Em outros períodos, fico mais nos textos e, em outros, sinto aquela escassez. Existem essas fases em que estou apenas digerindo sentimentos, vivendo e lendo mais de mim e do mundo… e sei que uma hora aquilo vira palavra. Não forço. Bagunças sempre nos organizam quando não tentamos escondê-las.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para começar de fato, preciso saber bem as lições e reflexões primordiais nas quais quero chegar. O que pretendo passar com aquilo que estou escrevendo? Qual a conclusão que cheguei sobre esse tema? O que aprendi com isso e desejo que outras pessoas também possam parar e pensar sobre? O que sinto quando penso nisso? São perguntas assim que preciso responder para, então, realmente entender o meu tema central e elaborar as metáforas, as brincadeiras com palavras, os personagens ou o que mais for virar arte.
Um ponto que recomendo fortemente é justamente esse: pesquise já tendo um ângulo pensado, mesmo que ele mude depois. Mais importante do que para onde vamos é o que queremos deixar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando passo por bloqueios, faço o que comentei em outra resposta por aqui: devoro o que me ajuda a relaxar e a ler mais de mim e do mundo. Mergulho em outros livros, filmes, séries e bons papos reflexivos com amigos. Pesquiso novos artistas, principalmente mulheres, que podem gerar aquela empolgação maravilhosa em mim.
Tento, ainda, ter os momentos de ócio para reparar melhor as minúcias da vida enquanto misturo tudo a novas artes. Por exemplo: se vejo que tem tempo que não paro para fazer algo singelo, como olhar o pôr do sol, vou fazer isso ouvindo músicas. Alguma cor entre as nuvens, algum desenho encontrado nelas… algo vai surgindo e virando compreensão sobre o que preciso tirar do peito.
Sobre as expectativas, minha questão maior é comigo e não com os outros. Amanhã já posso achar que o que está escrito poderia estar assim ou assado, que faltou dizer tal coisa, que tal palavra poderia estar de tal jeito. Mas aí acabo simplesmente criando uma segunda ideia e a escrevendo também. Tenho tentado trabalhar assim: lembrando que o que pareceu incompleto depois pode simplesmente ser uma outra arte esperando para ser escrita.
De resto, é como afirmo: Tudo o que recebe o nosso foco está recebendo a nossa atenção e, tudo o que recebe a nossa atenção, se ampli-fica. As coisas desimportantes só vão ficar gigantes se você se apequenar nelas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando escrevo frases, poesias ou textos curtos (como crônicas), opto por respeitá-los e deixo que possam ir ao mundo sem muitas interferências, do jeito que ‘quiseram sair’ daqui. Mas quando escrevo contos, romances ou outros estilos, tento respeitar com ainda mais fervor os personagens e a mensagem que quero passar com eles. Então, releio um pouco mais, trabalho bem nos tópicos antes do desenvolvimento e conto a trama para pessoas próximas. Tento encontrar possíveis lacunas e outros detalhes que eu posso querer responder e posso não ter percebido.
O olhar viciado de quem está escrevendo sempre precisa de um revisor, então deixo as revisões mais profundas para ele(a). Ainda assim, prossigo tentando deixar tudo ao máximo na sua forma original. Prefiro acréscimos do que ajustes, mas as fórmulas sempre mudam. O mais importante é sentir que a emoção e a mensagem estão ali cumprindo o que devem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo basicamente tudo nos blocos de notas ou pelo celular, mas vez ou outra acabo escrevendo à mão para ter uma visualização mais ampla. No caso dos contos maiores, por exemplo, prefiro puxar setas, analisar o passado de cada personagem e fazer um tipo de planejamento para os tópicos de cada capítulo. Então, faço isso à mão. Afinal, quando escrevemos com ela, passamos a ter um olhar mais apurado para o que estamos fazendo, além de fixar mais.
Construir bem o passado de cada personagem, inclusive, é basilar. Isso pode ou não vir à tona na obra, mas sem dúvidas eles vão ficar mais completos, complexos, surpreendentes e reais caso anote suas bagagens, manias, trejeitos… e nada melhor do que rabiscar, rasurar e basicamente desenhar enquanto escreve para entender. O que pode simplesmente ser apagado deixa, em certas instâncias, de ser real.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minha inspiração nasce do que já vivi, do que vivo, do que releio dentro de mim até entender de mais maneiras, do que me indigna sobre os relacionamentos humanos, do que capto sobre as vivências de pessoas próximas (e que finalizo conectando com as minhas próprias, como sempre acabamos por fazer) e de tudo o que acaba queimando na minha garganta.
Meu foco é em ressignificar. Sejam termos, sentimentos, palavras, ideias ou comportamentos que foram naturalizados socialmente. Tento enxergar outras formas com que as coisas poderiam ocorrer, outras saídas, outros caminhos e, principalmente, o que estamos fazendo que causa mais becos, feridas e escuridões. Afinal, cada luz é um pedaço de caminho que o escuro ajuda a encontrar.
Já sobre os hábitos para me manter mais criativa, tenho alguns e contei todos nesse vídeo lá do meu IGTV.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aos 16 anos, quando comecei a publicar meus livros, os meus escritos tinham uma conduta bastante rebuscada. Era natural para mim. As brincadeiras com palavras eram mais sutis e os termos se afastavam do meu linguajar cotidiano. Demorou um pouco para que eu realmente captasse a minha escrita como é hoje, com a identidade que tenho, com os jogos de palavras e de metáforas que faço. Acho que a minha escrita se tornou mais atual, mais contemporânea, mais palpável e ainda mais real (não que não fosse honesta antes).
Mas, ainda assim, tudo sempre foi muito respeitoso ao que eu queria passar e ao que estava sentindo. Hoje, mesclo esses estilos em um só. E sei que amanhã posso descobrir outros vários e querer brincar com mais mesclagens. Acho que não é apenas sobre amadurecimento, mas também sobre permitir que cada etapa pudesse ser iniciada sem tantos pudores. É mais importante o foco em lembrar que podemos começar já, porque nunca estaremos prontos como queremos, do que o foco em se manter ocupado e nunca produtivo.
Depois da quebra, juntar os cacos não reconstrói porte algum, mas abre espaço para o novo, deixa seguro para andar e limpa até as sujeiras que estavam ao lado e nunca antes foram percebidas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois projetos dos sonhos que já comecei a realizar, mas que não estão com prazos ou metas certeiras. O primeiro é o meu imenso desejo de ampliar o conto Ir Também é Ficar e fazer dele um romance distópico, apesar de amá-lo como veio ao mundo. Além disso, adoraria vê-lo em um projeto audiovisual (como uma minissérie) e seria maravilhoso escrever o roteiro.
A trama se passa em 2040, quando não existem mais casamentos, a ideia de ser filho de alguém ou quaisquer percepções de família. A jovem Felícia precisa mais uma vez se mudar de casa, assim como todos: que são obrigados a fazer as malas de ano em ano. Curiosa sobre como as coisas eram, essa moça pode acabar se perguntando também sobre como tudo ainda pode ser.
E, voltando aos projetos, o segundo é o livro O Sussurro de Cecília, que comecei a escrever aos 15 anos. Sempre volto a ele, reescrevo, escrevo um pouco mais e engaveto novamente. É um filho que está esperando a hora certa de nascer. Ele mistura distopia e fantasia.
Quanto ao que eu gostaria de ler, mas ainda não existe: pego essas ideias e transformo em próximos livros, porque o que eu gostaria de ter, começo revolucionando em mim e por mim. Mas ainda neste ano descobri um livro que se tornou o meu favorito e que, enquanto lia, pensei: “Queria ter escrito. Genial. Era o que estava faltando”. Acho que livros bons são esses, que nem sabemos que precisamos tanto até que eles nos devoram e nos fazem ressignificar mil mundos e ideias. O título da obra é: É Assim Que Acaba, de Colleen Hoover.