Vana Medeiros é dramaturga, roteirista e professora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não me dou muito bem com rotinas muito rígidas, mas tento seguir uma estrutura que possa organizar meus dias, já que são muitas as demandas para dar conta. Além de dramaturga e roteirista, sou professora e diretora de teatro, e estas funções vão se acumulando a ponto de eu me perder de vista dentro de tantos papeis, então a organização é essencial. Começo sempre respondendo às mensagens e e-mails pendentes e organizando a agenda do dia, bem como colocando as demandas em uma ordem de prioridade, elegendo aquelas que precisam ser cumpridas essencialmente até o fim do período e aquelas que serão olhadas caso sobre tempo, mas que não têm uma data de validade tão precisa assim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho muito melhor entre tarde e noite. De manhã, se eu pudesse, inclusive, não trabalharia. Mas, em tempos de muitas demandas, raramente consigo. Quando vou escrever, não tenho muitos rituais, mas geralmente releio parte do que tenho daquele projeto até então, para ir entrando no clima da ideia, me ambientando. De vez em quando também uso de uma estratégia que tem me acompanhado há tempos, que é a de criar playlists individuais para projetos diferentes – uma para cada peça, filme, etc. Ouço as músicas sempre que vou trabalhar naquela obra, e isso com o tempo me ajuda na imersão necessária naquele universo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Mas vou aos poucos tateando o projeto, as ideias em torno dele, as sensações que ele me traz, e especialmente o que eu quero com isso. Sempre digo que já tem peça, filme, livro demais no mundo, ninguém precisa de mais um. Então, se vou me meter nessa tarefa ingrata de escrever mais alguma coisa, que seja de coração aberto e porque eu realmente acredito que seja necessário. Leio muito, vou me acostumando àquele universo, me apaixonando pela ideia, construindo dentro de mim uma ansiedade positiva que me coloca de repente em um estado de escrita meio compulsiva, e aí em poucos dias eu trabalho muitas horas, produzo muito. Meu companheiro, Lucas Verzola, também é escritor, então muito dessas preliminares dramatúrgicas é fruto das conversas que temos sobre os nossos trabalhos e também sobre o que produzimos juntos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu me obrigo a começar, despretensiosamente. Tenho pra mim que uma obra escrita já é de cara melhor do que aquela que nunca se realizou, então a primeira coisa é meter mesmo as caras. Quando sinto que estou enrolando demais na pesquisa, olho de frente o medo que está se formando dentro de mim e começo a escrever qualquer coisa. Bem provavelmente nem vou usar isso. Mas o importante é começar a produzir material, para que nessa produção as materialidades acabem se formando e eu tenha com o que trabalhar mais adiante. É só se colocando em movimento que algo começa a girar, e a escrita começa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando escrevo roteiros de longa-metragem, a ansiedade é quase insuportável. É muito tempo trabalhando em um projeto só, múltiplos desafios e tratamentos. E eu gosto de trabalhar em campos diversos, de poder transitar entre linguagens e projetos diferentes. Mas é algo que venho trabalhando com algum sucesso, e ajuda saber que não estou sozinha. Todo criador hoje em dia lida com as ansiedades causadas pelo processo de criação. Uma das minhas estratégias para isso tem sido deixar o projeto descansar por um tempo, entre etapas, quando é possível e os prazos não estão muito apertados. Isso ajuda o texto a respirar, mas também me ajuda a não ceder à urgência de encerrar processos antes do tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Lucas, meu companheiro, é meu primeiro leitor, e eu sou a dele. Discutimos muito tudo o que criamos antes de levarmos o projeto adiante. Mas tento encontrar um equilíbrio quanto a isso que também não me faça escrava do processo de revisão. Uma hora todo texto precisa ser entregue, e nada nunca está pronto. Então desapego e entendo que cada projeto é um retrato possível da artista que eu era naquele momento. E faço um esforço para não voltar inúmeras vezes ao texto e mudar tudo mais uma vez.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo no computador, não consigo mais escrever à mão. Não artisticamente. Mudo muitas coisas de lugar, tenho um processo de edição frenético demais para funcionar de outra maneira. Uso a escrita à mão para textos mais pessoais e aleatórios, quase em um processo para desacelerar a mente. Mas, quando estou trabalhando em um novo projeto, não volto ao papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não acredito que as ideias originais existam, mas que pessoas criativas são pessoas com referência. Leio muito, vejo muitos filmes, assisto a muitas peças. E as ideias surgem de inquietações que a intersecção entre estas obras e minhas experiências pessoais e políticas despertam em mim. Penso muito sobre como captar as forças que regem o mundo hoje, quais são as tensões que alimentam os conflitos contemporâneos, e tento produzir dramaturgia a partir disso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Além do óbvio aprimoramento da técnica, do qual não se escapa caso haja insistência, acredito que minha voz se tornou mais segura e honesta. Como toda mulher que escreve, luto todos os dias com este processo perene que é minha própria emancipação, e isto se reflete em como eu escrevi, e em como eu escrevo. Tento não me enterrar dentro de mim, e as tentativas subsequentes trazem resultados. Mas a vigilância é constante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O arquivo de ideias para próximos projetos está cheio, mas isso não significa que um dia elas realmente vão se tornar alguma coisa. Tenho trabalhado muito em narrativas com protagonistas femininas, em uma pesquisa para tentar escavar os níveis de representação distorcida que o patriarcado internalizou em todas nós. Sobre o livro que eu gostaria de ler, tenho prestado muita atenção nas representações de mulheres gordas no cinema e na literatura, e ela é quase nula. Gostaria de ler livros em que mulheres gordas sejam colocadas diante de questões complexas que não estejam relacionadas aos seus corpos.