Uiran Gebara da Silva é doutor em História Social e pesquisador associado em pós-douramento da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Após tomar o café da manhã, e esse primeiro café, preto, puro, é essencial, eu começo o dia estudando línguas estrangeiras, no máximo por uma hora. Mas isso só acontece se for um dia em que eu trabalho em casa, claro. Depois disso, durante as manhãs eu costumo dar uma olhada geral nos e-mails e em notícias – mídia alternativa ou estrangeira, como El Pais, BBC e The Guardian, claro, porque abomino a edição nada imparcial dos jornais da grande mídia brasileira. Isso, claro, pode se converter em um grande ritual de procrastinação se eu não tomar cuidado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que nunca tive nenhum tipo de ritual propriamente dito, mas durante um bom tempo eu não conseguia escrever sem um bule de café ao meu lado. Hoje isso não é mais tão necessário (embora o primeiro café forte do dia ainda seja obrigatório). Da mesma forma, antigamente eu trabalhava melhor à noite, mas acredito que isso tenha mudado. Atualmente, meu trabalho de escrita pode acontecer em qualquer momento do dia em que eu consiga respirar fundo e, com um mínimo de tranquilidade, sentar na frente de um caderno ou de um computador com processador de textos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em primeiro lugar, é necessário levar em consideração o tipo de textos que eu produzo. Eu sou um historiador cuja produção é sobre o Império Romano tardio. Com exceção dos dois textos mais longos que escrevi, a dissertação de mestrado, sobre a decadência social e econômica de um aristocrata da Gália e que, sendo bem honesto, é um conjunto de três textos curtos colados a um artigo mais longo – e a tese de doutorado sobre revoltas de camponeses da Gália e da África no período de desagregação da ordem imperial – este sim um texto de grande fôlego –, a maior parte do que eu escrevo são artigos acadêmicos e apresentações em congressos. São textos cujo tempo de elaboração é relativamente curto, mas que demandam muito cuidado na formatação e na elaboração de citações e referências. Tendo isso em mente, novamente minha resposta é expressão de uma mudança de hábitos e práticas. Até uns cinco anos atrás, minha escrita era bem mais concentrada em períodos de intensa atividade. Eu ficava sempre muito angustiado porque, obviamente, sempre estava com o prazo apertado. Já hoje em dia, minha escrita passou a ser rotineira. Quando estou produzindo um artigo, ou uma resenha, ou uma apresentação, eu tento escrever todos os dias, faça chuva, sol ou tempestade – o que na São Paulo de Geraldo Alckmin significa queda obrigatória da energia elétrica. Uma página por dia é a minha meta. Eu não acho que a minha produtividade aumentou com essa mudança de prática, mas sinto que a angústia pelo menos diminuiu.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
E aqui chegamos no coração da narrativa que venho construindo sobre minha escrita. Todas as mudanças na minha prática de escrita que eu mencionei anteriormente podem ser vistas como resultado da mudança no meu processo de escrita. Eu sempre fui um planejador, como a minha companheira gosta de dizer. Eu faço muitos esboços até achar a estrutura de argumentação e exposição adequada. E por causa disso, antigamente, essa necessidade do esboço virava uma estratégia de procrastinação. Além disso, antes eu sentia que precisava ler muito e cobrir cada canto da minha análise com muita preparação antes de começar a redigir meus textos. Se não estivesse seguro o suficiente de ter esquadrinhado de forma detalhada o assunto sobre o qual eu escrevia, eu travava e nenhuma palavra saía. E o primeiro lugar onde isso aparecia, claro, era nos esboços iniciais. Isso, contudo, também se materializava nas etapas posteriores da escrita, a cada capítulo, a cada subcapítulo, isto é, sempre que eu sentia não ter verificado todas as possíveis contra-argumentações ao que eu estava escrevendo. Por outro lado, essa leitura toda não aparecia necessariamente no texto final, quando ele finalmente era produzido. Pois, na realidade, essa preparação toda era também uma estratégia de procrastinação, de adiamento do início da escrita, de forma que muitas notas e esboços não terminavam na redação final, já que tinham lugar na lógica de exposição que a organizava. Eu sinto que um bom exemplo disso foram os estudos e leituras que fiz sobre arqueologia sobre as regiões rurais da Gália romana, que trouxeram informações importantíssimas para entender o contexto das revoltas rurais que eram o meu objeto imediato, mas cuja apresentação de forma detalhada não caberia na economia da argumentação do texto. Foi após a redação da tese que a minha prática de escrita mudou, e hoje em dia, associadas à escrita mais diária, tanto a preparação na forma de leituras e a profusão de esboços têm atuado mais ao meu favor do que contra. E das duas, uma: ou estou menos exigente com a lógica da estrutura inicial, ou as minhas estruturas esboçadas estão muito eficientes. Provavelmente é a primeira opção.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Antigamente café era a minha saída para o travamento, mas como já confessei, atualmente a prática de escrita diária parece ter resolvido isso. Antes de escrever o meu primeiro texto longo, a dissertação de mestrado, eu tinha bastante receio, mas já neste caso, a experiência de dividir a obra em partes e etapas menores evitou maiores problemas, embora a reta final tenha sido traumática, mas é porque estava trabalhando como professor e no último semestre eu tive um mês e meio para redigir – em pânico – as últimas 100 páginas do manuscrito final com 180. Já no doutorado, a minha preparação foi mais adequada e, mesmo tendo o escrito com períodos concentrados de escrita, a produção do texto foi muito mais tranquila.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu costumo reler e revisar umas duas vezes – se houver tempo. Muitas vezes não há, principalmente no caso das apresentações em congressos. Eu também não tenho muita vergonha de pedir a opinião a colegas. Mas novamente o problema do tempo se impõe e não é todo mundo que pode fazer isso o tempo todo. Mas não posso reclamar muito porque minha companheira e eu costumamos revisar um o texto do outro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os esboços eu costumo escrever primeiro à mão em um caderno e depois transfiro para um documento no computador. Algumas vezes, quando o esboço não está adequado retorno para o caderno. Adicionalmente, quando estou em período de escrita com um texto avançado e sempre carrego um livrinho de notas para escrever algo se não tiver acesso ao computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu leio. Leio muito. Historiografia, romances e contos (prefiro ficção), história em quadrinhos. Não acho que meus textos sejam muito criativos, mas acho que boa parte do meu impulso para a escrita vem da necessidade de criticar o que eu leio e a sociedade na qual eu vivo. Quando não consigo apoiar minha escrita nesta perspectiva crítica, meu texto sofre bastante. Eu escrevia bastante poesia até uns dez anos atrás. Nessa escrita, o que me atraía bastante, em termos de criatividade, era a possibilidade de transpor as minhas experiências de vida (críticas ou só lamuriosas) de forma sintética por meio dos jogos de linguagem. Mas a minha produção para este gênero hoje está bem próxima de zero. Acho que a culpa é do Twitter.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
“Você sabe que esse monte de arqueologia rural não vai entrar na versão final, né?”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de produzir algo sobre a obra “Saturnais” de Macróbio, tratando da dupla dimensão que o mito de Saturno ocupa na cultura tardo-romana, como fundamento mítico e como utopia historicamente representada de uma sociedade de camponeses livres e iguais. Até onde eu sei esse livro não existe.