Tony Monti é doutor em Literatura Brasileira pela USP, autor de livros adultos e infantis.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo tarde. É o que se repete.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumo escrever logo que acordo. Tenho mais energia mental e foco neste momento. Tenho a impressão de que, conforme o dia anda, as ideias vão ficando menos precisas.
Desde que a gente é criança nos falam que o ser humano é um animal racional. A princípio é uma afirmação neutra, uma informação quase científica sobre nós. Mas costuma haver uma ênfase no racional. Muitas vezes a gente esquece de que é animal também. Gosto de me lembrar que a animalidade e a racionalidade não são, de fato, independentes. São integradas. Nesse sentido, me parece que nossa animalidade gosta de disciplina, de repetição. E que a racionalidade brota melhor num corpo disciplinado.
Tudo isso para dizer uma espécie de contrário do que anuncio. Não tenho um ritual específico. Tenho alguns hábitos. Escrever costuma ser logo que acordo. Antes de escrever, procuro me livrar de alguma pendência da vida que me incomode. Se há tempo, gosto de pensar durante um dia, ou durante alguns dias, no texto que escreverei depois. Vou anotando. O texto vai se formando em mim. Aí escrevo.
Mas não é sempre igual, não.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tendo a achar que o ideal quando escrevo ficção é escrever pouco, todos os dias. Mas eventualmente passo semanas sem escrever nada (embora não passe muito tempo sem anotar alguma coisa). Normalmente, escrever pouco significa concentrar uma energia grande em trazer uma novidade para o texto, em procurar algo que tire o texto da normalidade. Depois de escrito este impulso inicial, o processo de revisão vai procurar, por tentativa e erro, uma forma precisa para o texto.
Vale dizer que escrever e revisar se confundem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se há um prazo, tento, depois das primeiras anotações, começar a escrever. Há quem ache que escrever é expressar algo que se pensa internamente. Para mim, a ideia e a forma que ela toma quando escrita são indissociáveis. A escrita e a revisão são parte da produção da própria ideia. O que havia antes era outra coisa. Por isso, é importante enfrentar logo as dificuldades com a organização das palavras no papel. Quando se escreve, organizar algo não é arrumar as coisas já existentes segundo algum modelo ou padrão. As ideias não existem antes de serem texto. Ou são bem outras, de outra ordem. No texto é que elas se realizam.
É preciso também não ter pressa. A literatura tem um ritmo dela, que talvez não seja o ritmo dos estímulos infinitos da tecnologia e das cidades. É preciso baixar a ansiedade para escrever (e ler) literatura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando publiquei meus primeiros textos, sofria bastante com a exposição. Com o tempo, encontrei uma medida emocional. É importante que a gente aceite a nossa falibilidade. Mas isso não é específico da escrita. É da vida. A gente não pode evitar algo fobicamente e dar ao fracasso uma dimensão maior do que ele tem.
Se eu estivesse falando sobre medicina, eu acrescentaria que devemos concentrar esforços em aumentar a saúde e não em evitar as doenças. Não é um jogo de palavras. Eu tento honestamente escrever bons textos. E tento aprender tanto com o que dá certo quanto com o que dá errado. Mas procuro me vincular emocionalmente ao que dá certo. Me parece, além de mais eficiente, mais saudável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso muito meus textos. Muito. É preciso repetir. Eu reviso muito meus textos. Muito. A revisão é fundamental no ajuste fino da escrita.
Tenho um pequeno grupo de amigos escritores. Nos reunimos há mais de dez anos para ler e comentar nossos textos. Um de nós envia um texto para os demais. Todos leem e fazem anotações individualmente. Depois nos reunimos para discutir. É um processo muito rico. Quase tudo o que eu escrevi (todos os meus livros publicados, meu mestrado, meu doutorado) foi comentado e revisado por eles.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase sempre escrevo direto no computador. Antes, tomo notas no papel ou no celular.
Mas gosto também, eventualmente, de escrever com caneta e papel. Escrevi alguns contos assim. E a primeira versão do meu mestrado foi feita com papel e caneta.
No mestrado experimentei algo interessante relacionado à tecnologia. Meu objeto de estudo era um livro de cerca de 170 páginas. Eu o digitei inteiro no computador. Trabalho de copista. Por diversos motivos, o processo me foi interessante. Com o livro já digitado, passei então a inserir comentários meus sobre o texto no arquivo .doc. Faria isso novamente. Talvez o faça.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que minhas ideias vêm da tentativa de me manter intenso e atento na vida. Tem uma dimensão mágica nisso, em brotar algo novo onde não existia nada. Em última análise, é mágica.
Por ser mágico, em alguma medida, criar não é resultado de um processo planejado e não pode ser assim entendido.
Por outro lado, e também por ser mágico, o conceito de criação é desnecessário. Prefiro pensar em disciplina e trabalho. O resultado da disciplina e do trabalho é o que algumas pessoas vão entender como criatividade, como arte ou como mágica. Não tem inspiração, nem 10%, nem 1%. É zero. Inspiração é o nome impreciso para o resultado do trabalho. Mas há um mistério adimensional em algum lugar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Não tem atalho. É preciso estudar, ler, errar, cuidar do corpo, das emoções. Escrever, para mim, é o resultado intenso e preciso do modo como caminham meu corpo, minha mente e minhas emoções.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever mais. Das horas trabalhadas nascerá algo.
E queria ler algo bom sobre esses últimos anos da esfera pública brasileira. Me refiro ao atual poder executivo federal e suas ramificações. Estes não são políticos que têm atitudes pouco ortodoxas em nome de uma ideologia. Não ha ideologia. É um grupo de ladrões que se refugia na política. Só isso.
Pode ser um livro, mas pode ser um levante popular também. Melhor que seja o levante. É preciso entender a literatura de uma maneira maior que apenas a estética. Sei que desaponto alguém, a coisa mais incrível e impensável que o ser humano inventou não é a arte, é a política.