Tomaz Amorim Izabel é poeta, tradutor e escritor, autor de Plástico pluma (Urutau).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina. Costumo ir dormir muito tarde, então também acordo tarde. Adoro dormir. Costumo ter tarefas e obrigações, então organizo o meu dia em torno delas. Às vezes trabalho muito, às vezes trabalho pouco, depende da demanda e da minha disposição.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com certeza de noite. Sinto que eu acordo muito devagar e (neste sentido sou parecido com minha sobrinha de cinco anos) vou acelerando, ficando mais desperto, mais esperto até o momento imediatamente antes de dormir. De noite as ideias fluem, as conexões se fazem mais rápido. Sobre a escrita, depende do tipo. A escrita acadêmica precisa ser mais disciplinada, tem prazo e tudo o mais, então exige mesmo uma forçação, de se sentar, organizar o dia em torno disso (horas de comer, local apropriado, etc.). Uma coisa que me ajuda é trabalhar em um lugar que tem horário de funcionamento, como uma biblioteca. Assim, você precisa se organizar para chegar em um horário razoável em que vá conseguir trabalhar. Mas assim que o lugar fecha você também fica liberado, não precisa ficar naquela angústia procrastinadora que às vezes acontece em casa, quando você trabalha pouco, mas fica o tempo inteiro angustiado porque deveria estar trabalhando. Se a biblioteca fechou, fechou, e se pouco foi feito, no outro dia é só correr um pouco mais.
Já para poesia, literatura, tradução – o ritmo é completamente outro. Embora a escrita literária seja trabalho, há um elemento que os antigos chamavam de inspiração, toda a história das musas e tal. Claro que ninguém baixa dos céus um romance ou um poema, mas tem uma verdade, pelo menos para mim, de que a poesia é um tipo de transcrição. É uma transcrição de si, mas é uma transcrição. E para poder transcrever bem, é preciso estar em um modo apropriado para isso, um tipo de concentração solta que quem escreve conhece bem. Olhos e bocas abertas esperando e pegando aos poucos os sussurros. Um poeta amigo meu, o André Nogueira, tem uma imagem interessante, que ele usa para falar de processos religiosos, mas que acho que também vale para a literatura. É como uma transmissão, uma antena. Nós precisamos estar afinados nessa sincronia fina para poder entender e traduzir as coisas que precisamos escrever. É isso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Com o trabalho acadêmico (eu estava terminando meu doutorado), precisava escrever todos os dias. Com a literatura, não. Escrevo quando posso, quando encontro aquele modo, quando preciso. Mas claro que é bom às vezes se forçar, como em um desafio auto-imposto ou como um jogo. A escrita, como toda atividade técnica, depende da prática. Passar muito tempo sem escrever, esperando a inspiração última, é receita para dar errado. Mesmo não escrevendo nada, mas indo naquele lugar, esperando, é preciso essa constância, nem que seja no desejo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A parte das notas, acho que é mais para a escrita acadêmica. Eu costumo escrever a partir das notas. Faço uma coleção de citações ou de passagens que eu comento. Normalmente não tenho o projeto do texto de antemão. São os encontros com outros textos e ideias pontuais que vão desenhando aos poucos o mapa do texto. Claro que, depois, tem que vir uma voz de cima, mais organizadora, estruturando os pontos e encontrando um percurso para o texto. Mas eu costumo me guiar durante a maior parte a partir desses encontros com outros autores. Tem uma ideia de texto em algum lugar, mas ela vai se revelando a partir das peças encontradas, como se fosse mesmo um quebra-cabeça.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minha única preocupação – que já é também fruto de um privilégio enorme – é com minha saúde. Essa angústia toda existe, sempre existirá, às vezes maior, às vezes menor, dependendo das próprias forças e da conjuntura social. O estado calamitoso das coisas no Brasil, a falta de perspectiva de melhora em médio-longo prazo, o desemprego, a concorrência, a própria saúde mental dos amigos, tudo isso piora aquela capacidade de se sintonizar para conseguir transcrever o que precisa ser escrito. Mas a nossa tarefa principal, como pessoas e escritores, é cuidar da gente mesmo. Ninguém escreve doente, isso é coisa de filme, de biógrafo deslumbrado. A doença pode servir de motor para a escrita, como para Kafka ou Clarice, mas a doença que paralisa, que vai nos diminuindo aos poucos, essa não tem relação nenhuma com a literatura, ela é sua adversária. Então nossa tarefa, como gente e como escritor, é, antes de tudo, nos cuidar, para poder, no momento certo, passadas as maiores dificuldades, produzir uma literatura saudável, mesmo que ela tematize e imite a doença. Lembrar que não há nenhum texto mais importante do que a saúde, a alegria de estar com amigos, tomar um sol. Antes interromper um trabalho, desistir, para ficar bem, e continuar vivo, do que se consumir. É uma pequena vida mortal na Terra que tem a literatura entre uma das coisas importantes, uma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, mas sou muito limitado nisso. Já conheço o texto bastante na segunda leitura, então na terceira já não consigo revisar bem. Só se for semanas depois. Costumo, sim, mostrar para amigos, sempre que eles têm paciência para ler. Mas também não aguento ficar com um texto parado, sem colocar em público, muito tempo. Sinto que ele tem um timing, e é melhor publicá-lo dentro dele, do que guardar para revistar. Pode ser que depois ele já não faça mais sentido.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Cresci já no computador. Escrevo no teclado e no celular. Raríssimas vezes escrevo à mão. Mas minha preferência é mesmo pelos teclados. A agilidade, os copiar/colar já fazem parte da minha maneira de pensar o texto no momento da escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que elas vêm daquele modo de atenção de que eu falei antes. É preciso estar, sempre que possível, neste modo de atenção distraída para as coisas do mundo. É fundamental saber filtrar, se bloquear dos estímulos agressivos do mundo, da propaganda, etc., mas sem se embrutecer. Acho que o senso de humor ajuda. Lá onde o absurdo cotidiano aparece, aquelas situações em que a pessoa não sabe se se assusta ou não, aí me parece o momento da gargalhada. Esses curtos-circuitos, a literatura se interessa por isso. Então andar pelo mundo atento para esses pequeninos acontecimentos é já uma maneira de ir colhendo ideias. Acho que para se manter criativo é importante se manter saudável, acho que são sinônimos. Se conhecer, saber se manter em funcionamento, ser generoso consigo mesmo, tudo isso em contato com as dores do mundo, sem passar pano, essa é a tarefa de se manter saudável. Sem isso a escrita é impossível.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Como estou nas últimas semanas de escrita da tese, só o que eu tenho a me dizer é: “força, falta pouco, você fez o que podia e isso já é bastante coisa”. Sobre a escrita literária, acho que o que mudou foi que algo que eu sempre busquei, uma voz própria, talvez esteja aparecendo mais claramente. Permitir que essa voz apareça, sabotar a auto-sabotagem, é um processo interminável, da vida toda. Que pode, no fim, gerar um único poema bom em toda a carreira. Mas o objetivo não é justo esse? Já não é uma glória, um privilégio, um milagre escrever um único bom poema? Dirigir toda a escrita para isso, ir se afinando até o momento em que ele talvez apareça. E se não, preparar o caminho para que a poeta do futuro, a que está sempre chegando, mas que depende de nós prepararmos o caminho para ela, possa escrevê-lo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A escrita de um romance é um clássico, mas acho que é isso. Ter a resistência para escrever um trabalho longo assim. Mas estou muito feliz agora, aproveito para fazer um jabá. Meu primeiro livro de poesia sai também neste fim de mês (junto com o fim do doutorado, que mês!). É o Pássaro pluma, que sai pela editora Urutau e tem lançamento na FLIP. Oportunidade de, justamente, trocar essas ideias e essas dicas de escrita com outros escritores. O livro que eu gostaria de ler é um livro tecnoxamânico, de algum ciborgue meio onça, meio inteligência artificial. Um livro de histórias infantis ou uns cantares ao modo de Salomão escrito por um personagem assim.