Tim Bührer é poeta, músico e agitador cultural.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia pelo comecinho. Óbvio, eu sei.
Também sou professor de geografia – ou da síntese, como gosto de brincar – então os dias da semana acordam bem cedo. 05:45 da madrugada, para ser mais direto, estou de pé e antes de lavar o rosto ou tirar a água do joelho, coloco uma jarra com ~ 450ml de água com açúcar para ferver. Ela passará o meu cafézinho com leite matinal. É um mantra triste repetido em milhões de casas brasileiras. O problema é que a rotina transformou também os dias dos fins de semana, que também começam cedo – a não ser que as noites de sexta e sábado passem da hora. Hoje mesmo, sábado, acordei às 8:30, depois definitivamente às 9:30. A primeira hora serviu para checar e-mails e posts tristes sobre o governo Bolsonaro.
Depois do café com leite, que vem acompanhado de um misto quente aquecido num George Foreman, é hora do chamado da natureza. Daí escovo os dentes. Sempre nessa ordem. Então eu vou para o trabalho e aqui vão as primeiras aulas das longas seis da manhã toda. Na segunda-feira, o 8º ano A. Na terça, o 7º ano A. Na Quarta, o 6º B. Na quinta, o 7º sem letras. Na sexta, o 9ºA. Eles se misturam e outras salas também aparecem. São cerca de… 300 alunos, contando o cursinho nas noites de quarta. É claro que sei o nome de todos.
Se eu te disser que estudo poesia ou escrevo poemas em algum desses momentos… é mentira. Só consigo botar os fones e pensar: geotectônica, regiões, Amapá, fluxos internacionais, crescimento vegetativo, etc. A poesia só acontece nos entremeios, junto com a síntese, quando um aluno se vira e me diz: “professor, pesquisei na internet como matar uma pessoa atropelada e esconder o corpo” e eu tenho que me virar com isso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nenhum outro ritual me ajuda a escrever, a não ser ler. Respondo frases e palavras e contextos de outros autores, o que me motiva a ‘gerar motivo’ e blablabla psicodélico capaz de encher páginas. Porém esse não é o processo mais comum. Geralmente eu coloco os fones em alguma playlist reflexiva e ouço conversas no metrô. Observo janelas por aí.
O poema é diferente da prosa nesse contexto. A liberdade formal do poema possibilita um remelexo criativo que depende mais do sujeito leitor que do poeta, na minha concepção. Já na prosa, eu preciso escrever sentimentos e não ordens e descrições. O que é mais fácil. Por exemplo, como dizer que Fulano está na merda sem afirmar ‘Fulano está na merda’?
Assim:
Fulano tropeçou sozinho e ralou o joelho. Sentou com o pé já enfiado na jaca e sem querer reclamou baixinho ‘ah, caralho’. Mal se ouviu direito, passou um carrão do seu lado com ‘Chora me liga implora pelo meu amor… pede por favoooor’ tocando bem alto. Todas as tias e tios que passavam pela rua se incomodaram. Menos ele. Estava com os ouvidos tampados e talvez por isso também não tenha ouvido a garota que se aproximou oferecendo ajuda. Levantou com o joelho ardido, sacodiu a poeira física, tirou uma catota do nariz e o céu parecia mais escuro rua a dentro.
Isso pode ser entendido como tambémprolixidão, mas eu trabalho melhor durante a noite e gosto de mudar rapidamente de assunto. Não que essa frase tenha conexão, nem que aquela palavra exista.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando dá tempo – o que não acontece sempre. Sem metas de escritas. Não quero colocar uma meta, porque quando atingi-la, posso dobrá-la.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No poema o processo é mais direto – sou eu e a fonte. Eu e um et púrpura, eu e um amor, eu e minha família, eu tentando entender a sociedade, eu, eu, eu… no fim é um processo centrado numa figura egocêntrica de gêmeos com ascendente em gêmeos. Ah. Na prosa, tento evitar verbos de pensamento, descrições integrais e pasteurização. Tento. Saio da pesquisa com sede, entro na escrita com pressa, me frustro e tento no dia seguinte a partir do mesmo ponto. No romance que estou escrevendo, li uma tese e vi dois documentários sobre o Rock Rural e a importância do Sá & Guarabyra, escrevi umas 35 folhas depois disso. Agora estou sem tempo de novo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Antes as travas me doíam porque eu tinha, literalmente, muito tempo para pensar nisso. Hoje elas são tão episódicas quanto os estímulos e os frenesis de inspiração. Algumas vezes escrevo um poema, salvo como ‘rascunho’ ou guardo a folha, mas sei que aquilo ficou uma merda. Esse é o momento que venço a procrastinação e digo ‘pelo menos tentei’ como uma forma de dormir melhor. Nos projetos em que participei, tentei identificar o que queriam de mim, o que eu podia oferecer e em quanto tempo: prazos curtos rendem lapidação de texto, mil frases iguais escritas de formas diferentes e seleções das melhores feitas em voz alta, preferência pelo não esperado e pela crítica; já prazos mais longos rendem reflexão e possível procrastinação capaz de me atrapalhar. Desisti de ter ansiedade para tentar viver melhor. Ela retorna de vez em quando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio pelo menos umas cinco vezes antes de publicar no seasickpoetry.tumblr.com, umas oito antes de ir para o Facebook e mil vezes antes de mandar para alguma revista, editora ou site. É o tempo de identificar erros, repetições e problemas no andamento. Gosto de ler em voz alta para a mãe, à Ju, para a Maria, para o Andrews e para a Atena. Os olhares dizem mais que as afirmações e respostas. Se desviam durante a leitura e a depender da direção, sei que devo apertar, afrouxar, martelar ou cortar partes.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No momento minha relação é de total dependência. Como escrevo no metrô, no ônibus, de pé no corredor da escola entre um intervalo e outro, tem se tornado cada vez mais raro o contato entre a caneta e papel. Antes parecia não ter graça trazer o poema primeiro para o ambiente tecnológico, hoje parece normal. Deve ser um misto de inclusão digital com outra coisa. Sei lá. Acho que acostumei. Mas isso não me impede de andar com um pequeno caderninho por aí, ele serve também para distrair meu olhar quando alguma pessoa que não consigo ouvir… fala.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm da leitura constante, da sala de aula, dos corredores, de conversas do metrô, dos saraus. Vem também da dor e da reflexão: sobre família, velhos amigos, sobre sociedade, sobre o trabalho – este último principalmente – e assim eu entendo que me manter criativo significa continuar vivendo e tentando encontrar formas de dizer o que penso, ou de ouvir melhor. Ah, também tem a noite.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu detesto olhar meus textos e poemas antigos, sinto vontade de reescrever tudo, de deitar no asfalto, de ficar em silêncio. Não sei se ~ melhorei ~ mas sei que aprendi muito. Saí das rimas, voltei, saí do verso curto, voltei, saí da brisa incessante lisérgica surrealista, voltei, saí e voltei demais. Graças a Deus abandonei a pseudo escrevedorissebukowskiana de quem tem apenas 20 e tantos anos e tomou um ou dois foras e agora vive se acabando em garrafas mais idílicas que etílicas. Não fetichizo mais. O que ficou foi a influência de cultura pop, o ar adolescente, a ausência de vírgulas para representar a ansiedade e a fala constante de quem não consegue segurar a cabeça e a boca e os lábios e a língua. Eu diria ao velho Tim: crie vergonha na cara, mas cometa quase todos os mesmos erros e poemas. Só evite os piores. Não fique repetindo essa frase de pistoleiro solitário e deserto de solidão, é horrível. Você vai saber quando parar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever sobre Itapeva, minha cidade natal, na perspectiva mista entre arte, geografia, antropologia e misticismo: trazer à vida um tratado sobre como é viver em Itapeva, sair de lá, sentir saudades e ódio, sentir vontade, sentir-se. Quero capturar o sentimento que emerge dos vãos da cidade, do seu cheiro, da sua noite e dos seus habitantes – assim, quero por fim entender e me fazer entender sobre a história da cobra gigante, sobre as encruzilhadas periféricas e de formação, seu urbanismo, seu passado rodeando as mesmas praças. Quero saber como a passagem de tropeiros, que imprimiu o signo da circulação por ali, se conecta com o passado indígena. Quero saber o motivo que encantou Debret e sua pintura da Faxina. Quero ler o Capital Volume IV, o Harry Potter 8, o Senhor dos Anéis 4, o Necronomicon, e/ou a autobiografia do Alexandre Frota.