Ticiana Werneck é jornalista e escritora, autora de “Trilhas para andar descalça” (Moinhos).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tento escrever todos os dias, mas às vezes a rotina da casa e os prazos das encomendas de matérias não permitem. Numa rotina ideal, escrevo pelo menos duas horas por dia. Em relação aos projetos acontecendo ao mesmo tempo, é curioso. Comigo sempre é assim: períodos de contemplação, leituras, muitos filmes e séries, e então um período de alta produtividade com ideias borbulhando e uma vontade de fazer acontecer irrefreável. Parece caótico, mas me entendo assim. Os projetos, muitas vezes são dicotomicamente diferentes, o que é até bom, pois consigo separar bem. Por exemplo, cheguei ao fim desse ano desemendado que foi 2020 envolvida em dois projetos: a autopublicação da minha novela Ana não sabe nadar, e a escrita da biografia da minha avó que completou 90 anos durante a pandemia. Fiquei um longo tempo ensaiando começar, e quando algo encaixou em mim, eu parti para a execução dos dois simultaneamente. Não sei, talvez o fato de ter trabalhado anos em redação tenha forjado em mim essa capacidade de dar prosseguimento, pois essa mesma simultaneidade já me aconteceu em outros momentos, e eu me sinto confortável com ela.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Até planejo, mas estou aberta aos acontecimentos inesperados que podem mudar tudo. Planejar é importante no sentido macro, de traçar o perfil do personagem e da trama, mas durante a escrita sinto que afrouxo o controle e se pintar uma ideia diferente embarco para ver onde vai dar.
Puxa, as duas, primeira e última frase, exigem elaboração. A primeira frase, eu diria, que vem depois de muita tentativa e erro, a não ser que seja algo matador, algo que tenha descido como uma iluminação divina (nada é impossível! risos). No meu caso, já tive primeiras frases de contos que me vieram inteiras e a partir delas desenrolei o restante do texto. Mas na maioria das vezes não. O começo parece fugidio. Escrevo, apago, escrevo, apago, modifico, sigo a diante, volto, mudo a ordem, e depois de muito suor encontro o começo. Tive um professor de escrita criativa, o Paulo Nogueira, que sempre dizia que o incipit, ou seja, o início, precisa “agarrar o leitor pelo colarinho”, então fico com isso em mente enquanto persigo essa primeira frase.
Em relação ao fim, sinto um prazer tremendo quando ele vem sem dor, tal uma resposta instantânea. Li que escrever começa muito antes pegar a caneta e é pura verdade. Estou sempre escrevendo dentro da minha cabeça. Quando estou envolvida num texto, penso nele dia e noite, elucubro saídas, diálogos e perfis psicológicos, fico realmente envolvida com aquilo de forma que quando sento para, de fato, escrever, tudo já está meio mastigado, e o desfecho acaba se formando como um resultado desse mergulho.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Gostaria de ser superaplicada e dizer que sim, mas na realidade não – que os professores de escrita criativa não leiam isso (risos). Sou mãe de dois filhos, uma moça de 19 anos, a Nana, e um rapaz de 14 anos, o Má, temos três bichos (a cadela Gambi Arra e os gatos Januário e Fusquinha), e por mais que meu marido divida as tarefas de casa comigo, a rotina é uma doideira.
Durante os tempos de seca, ou seja, quando jogo a isca e não vem nada, eu sigo tentando, mexendo em textos antigos, experimentando. Mas quando toco em algo que me motiva, parece cena de filme quando tudo em volta congela, sabe? Fato é que quando me envolvo a valer num texto eu crio espaço para ele, faço dar tempo.
Em relação ao ambiente para a escrita, curto estar quieta no meu canto ouvindo músicas baixinho, de preferência em qualquer língua que não seja o português (me atrapalha, engraçado né?). Tem uma playlist do Spotify, a Haruki Murakami’s vinyl collection, criada com as músicas que esse escritor japonês disse em entrevistas que gosta de ouvir enquanto trabalha. Deixo essa dica pois a playlist é muito boa. Quando essa lista está calma demais (ele gosta de clássica), vou para rock internacional dos anos 80.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
É importante continuar jogando a isca. Vai haver momentos que não virá nada e está tudo bem. Como disse, gosto de intercalar períodos de contemplação com períodos de produção, parece que me organizar assim me energiza.
Não tenho muito o perfil procrastinador, mas percebo que acabo agindo assim quando o projeto parece estar exigindo algo de mim que não sou capaz de dar. Como se eu não me sentisse suficiente. É paralisante. Respiro fundo e penso “bom, vou dar o meu melhor”. Essa postura tira o peso dos meus ombros então consigo continuar, e sendo complacente comigo mesma, sem tentar forçar nenhum caminho que eu não me sinta preparada para seguir.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
O que mais deu trabalho foi este último, a novela Ana não sabe nadar. Por estar mais confortável no mundo dos contos, me propus uma narrativa longa. Levei um ano escrevendo e reescrevendo, depois mais um ano na gaveta. Submeti o texto ao Sergio Tavares que realizou uma leitura crítica resultando em alterações certeiras, o que conferiu mais fluidez à prosa. Aprendi com seus comentários.
Gosto do meu conto Neruda, cujo início veio de uma frase que pesquei em uma fila. “Nunca gostei do som da minha voz”, ouvi, e minha mente já começou ali mesmo, em pé na fila, a traçar um desenrolar. Outro conto, “Fábrica de Mães”, também gosto, pois me propus a contar uma história sob o ponto de vista de uma menina de dez anos, lidando com a perda da mãe. Acho o resultado tocante.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Envolvida com meu trabalho de jornalista de matérias de gestão, por muitos anos cobri eventos de Recursos Humanos, entrevistei coaches e especialistas em carreira e uma palavra sempre pululava: propósito (o mercado corporativo é cheio dessas palavras da moda, eu sei). Durante algum tempo me questionei sobre qual seria o meu propósito. Além de escrever matérias jornalísticas, atuo como ghostwriter de livros técnicos e tenho o projeto “Eu escrevo sua história”, no qual sou contratada para contar trajetórias de vida ou de empresas. Também escrevo ficção. Considerando tudo, após alguns anos elaborando isso internamente, acredito que cheguei ao meu propósito que é “Tocar o outro com a minha escrita”.
Sendo assim, gosto de pensar que a pessoa que irá me ler terá um momento prazeroso. Quase como se eu desejasse levar uma brisa fresca para o seu dia.
Tenho uma leitora ideal: eu mesma. Escrevo o que eu gostaria de ler, o que me emociona de alguma forma. Assim, são temas e formas de contar que dialogam com o que me move.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Quando um texto está maduro, costumo enviar para minha mãe, que é uma leitora voraz de ficção. Ela aponta melhorias e dúvidas que podem surgir. Gostaria muito de ter esse intercâmbio com outros escritores ou leitores, até tentei uma vez, mas não rolou. Por isso, investi em uma leitura crítica, no caso a do Sergio Tavares para me dar esse termômetro. Outra coisa interessante, no caso da novela Ana não sabe nadar, foi que eu publiquei em ebook antes de imprimir. Assim, recebi comentários de amigos e leitores que me animaram a seguir adiante então resolvi, em formato autopublicação, imprimir e vender a obra.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Bom, alimento esse desejo desde meus 11 anos, quando dedilhei uma máquina de escrever nos fundos do escritório em que meu avô trabalhava. A partir dali, criei jornais com notícias inventadas, comecei a escrever poemas e contos. Tornei-me jornalista, mas sempre flertei com a ficção.
Só que a vida estava em alta rotação para mim. Tive minha primeira filha aos 24 anos enquanto me formava na faculdade e recebia uma proposta de emprego estável. Não havia espaço para tentativas, eu precisava me agarrar às certezas.
À medida que minha rotina foi se tornando mais organizada, com os filhos mais crescidos e um cronograma de trabalhos em homeoffice, o desejo de escrever ficção se tornou mais forte em mim. Procurei oficinas de criação literária e a troca com alunos e professores foram me mostrando caminhos. Também passei a intensificar minha participação em eventos literários, clubes de leitura e palestras. Assisto vídeos de entrevistas com escritores e podcasts de forma quase diária, o que me fazem um bem danado.
Agora, uma frase dita pela escritora Martha Batalha para o canal Bondelê, em especial, dividiu meu mar: “Encontre o que é só seu e que te faz especial. Que essa essência guie seu trabalho”.
Na ânsia de fazer algo extraordinário, acabamos não fazendo coisa alguma. Quando penso nessa frase, me volto para meu lugar, e recobro tranquilidade para escrever aquilo que apenas eu poderia escrever, baseado em quem sou. Pode ser a mais simples das ideias, ela se torna extraordinária se soubermos temperar com a nossa forma de enxergar a vida.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
A escritora Socorro Acioli disse em uma oficina de escrita que “O escritor entrega ao mundo seu olhar peculiar”. Bem em linha com o que acabei de dizer sobre a frase de Martha Batalha. É nisso que acredito. E é isso que persigo todos os dias com minha escrita, esse olhar peculiar. Será que eu já encontrei? Gosto de pensar que estou perto, que há unidade no que produzi até agora.
Além das escritoras já citadas, sou fã de Gabriel Garcia Marquez e Mario Vargas Llosa, autores que leio com olhar de escritor e a cada vez me surpreendo com a genialidade inesgotável presente nas camadas e camadas de seus personagens.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Nesse sentido, o último ano foi bem profícuo. O isolamento social me fez mergulhar em 65 livros. Para meu perfil no Instagram, eu indiquei os dez que eu mais curti, entre eles o premiado Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, O Seminarista, de Rubem Fonseca, e Ricardo e Vânia, de Chico Felitti. Cito ainda entre os contemporâneos, O Peso do Pássaro Morto, de Aline Bei, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, a Cabeça do Santo, de Socorro Acioli e Tudo pode ser roubado, de Giovana Madalosso.
Entre os livros que marcaram minha vida estão Cem anos de solidão, do Gabo; Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa; Meio sol amarelo, de Chimamanda Adichie; Casa dos Espíritos, de Isabel Allende… puxa são tantos. Mais um, especialmente delicioso para quem escreve: A louca da casa, de Rosa Montero.