Tiago Guilherme Pinheiro é escritor, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, coeditor da revista Meteöro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para responder a essa pergunta, parece-me importante levar em conta o quadro no qual ela aparece formulada, e que pode injustamente passar despercebido. Normalmente, uma questão como essa não exige muito mais do entrevistado do que a cândida descrição do arranjo de seu universo privado, ordenação essa com a qual supostamente se projeta o exercício da escrita (ensaística, artística, filosófica, acadêmica, política ou outra qualquer). Essa curiosidade poderia ser encarada como algo amistoso, voltada a repartir os bastidores de um processo que, de resto, acabam alienados do produto final. No entanto, no contexto no qual se desenha essa série de perguntas, uma segunda demanda quase inaudível se postula, e que parece indicar que uma verdadeira troca de experiências tal como a acima descrita está vetada. Desde o início, o tom dessas perguntas – sua motivação – está absorto de preocupação e ansiedade, ambas geradas por uma situação considerada bastante desigual e generalizada em relação aos tópicos aqui debatidos. A estrutura de enquete reforça essa sensação, como se as margens para diálogo, dúvida ou réplica entre os envolvidos estivessem completamente ocupadas, oferecendo apenas pequenas brechas para algum tipo de consultoria unilateral. Esse desnivelamento está baseado no forte pressuposto – que transborda por todos os cantos, não só aqui – de que só uma escrita sólida, estável e bem-sucedida merece ser indagada, tem algo a dizer. Não se pode se não pedir a ela, por ela.
Não estou em posição nem tenho a disposição para subscrever tal pressuposto. Talvez fosse fácil entrar nesse jogo com algum despojamento, já que bastaria deixar as margens dessa enquete de lado, e sentir, por um fugaz instante, o gosto de poder ser confundido com alguém que triunfou na e sobre a cultura. Contudo, interessa-me muito mais perceber com que naturalidade uma situação feita para compartilhar espaços e experiências de escrita é interditada de antemão, ganhando rapidamente uma tonalidade assimétrica e privativa.
Não há nada na enquete que declare expressamente a virtuosidade da escrita: essa premissa está simplesmente posta, não é necessário explicitá-la. Afinal, poder-se-ia dizer, de que outra forma se justificaria uma interpelação como esta? Quando nos perguntamos sobre como alguém chega à escrita, a escrita se confunde com o sucesso, e o sucesso com escrita (mesmo quando são adicionados toques de dramaticidade, falando-se de fracasso, impossibilidade, busca perpétua, etc.). E é a naturalidade dessa fantasia cultural que deveríamos questionar quando questionamos a escrita, especialmente em um contexto – absolutamente marginal – como este em que a maioria dos habitantes deste mundo está imersa. Essa fantasia de longa data, sintomática por estar imposta de antemão, escora-se em toda uma rotina, uma filosofia de mobiliário, com o qual se dá provas e garantias da pretensa qualidade de uma produção intelectual por meio do retrato de tudo aquilo que a cerca e a ornamenta. Nesse mitema reside a carga de violência que motiva expressamente as questões aqui postas, indicadas justamente nas margens desse questionário, lá onde algo mais que a vaidade cala sobre o sofrimento.
Afinal, não é de outra coisa que essa enquete trata: do sofrimento da, pela e através da escrita. “Eu criei o ‘como eu escrevo’ pensando nas pessoas que sofrem para escrever […] Minha esperança é que o projeto ajude a fazer da literatura (e da universidade) um lugar melhor”. Diante da amplitude dessa declaração, seria mais proveitoso considerar que o “eu” apontado acima não passa de certa insistência gramatical, sem remeter a um indivíduo em particular, e menos ainda a um sujeito do discurso, mas ao lugar vazio, dêitico, que atravessa todos aqueles que se sentem sujeitados pela escrita. Desses que de algum modo se veem constantemente interpelados pela escrita no instante exato em que o acesso a ela parece absolutamente negado, interditado, como se ela não fosse nada mais que a Lei.
Por isso, para poder responder como esse “eu” escreve, ou poderia escrever, ou ainda se deveria escrever (“dever” entendido simultaneamente como possibilidade, exigência e dívida), é preciso confrontar esse mito instrumentalizado que quer fazer do acesso à linguagem uma exceção permanente maior que o próprio Estado. Esse “eu”, portanto, esconde uma multidão, um “nós” com alto potencial de coletividade desejosa por emancipação.
A breve advertência que abre o site expõe algo que dificilmente uma escrita “bem-sucedida” (ou com pretensões de sê-la, nos termos postos neste cenário) está disposta a admitir: que o espaço (simbólico, enunciativo, institucional) prometido para ou pelas letras está longe de ser algo bom ou justo, apesar de prometer isso o tempo todo, como se a justiça fosse uma mera questão de acesso. Pelo contrário: graças ao prestígio que as cercam como lugar almejado (que se exige almejar), de quase monopólio para a concessão de certo tipo de dignidade cultural (confundida com o próprio poder), as letras foram e são causa de diversas modalidades de sofrimento individual, social, cultural, histórico, psicológico e físico. Se isso é verdade para a América Latina, e mesmo para todo o mundo (pós-)colonial, no Brasil certamente essa torção ganha requintes específicos de crueldade em sua absoluta banalidade.
Não se deve subestimar a eficácia simbólica da fantasia que envolve uma “rotina de escrita” em terras e tempos como o nosso. Fantasia propagandeada por imagens de indivíduos que, tendo ou fingindo ter recursos para tanto, mostram-se como proprietários de seu tempo e espaço, aplicando ambos sobre uma folha de papel que, por isso mesmo, parece embebida em imenso valor agregado, antes mesmo de sequer termos notícias do que ali se formula. Dessa maneira é que se vende a vitória pela escrita: como algo já assinalado, antes mesmo do primeiro traço atingir a página, graças ao testemunho dos bens materiais que envolvem esse domínio técnico. Não uma potência, um processo, mas uma propriedade daquele que escreve.
Essa forma de garantia do que está escrito antes da escrita pode bem ser associada àquele mote do escritor argentino Osvaldo Lamborghini: “primeiro publicar, depois escrever”. E, no entanto, tais gestos não poderiam ser mais antagônicos. No contexto da Ditadura Militar, a frase de Lamborghini apontava para uma estratégia de coragem e resistência – a escrita não era viável nem pública, a não ser como rumor. Esse murmúrio instigava os interessados a procurarem constantemente por lugares e senhas que os levassem a livros impublicados – textos esses que poderiam inclusive custar a vida de quem os tivesse consigo. Claro que a obra com que se acabava em mãos dificilmente era a solicitada (já que ela talvez sequer existisse ou fosse passível de existir). Por outro lado, essa estratégia permitia a recuperação de um senso de guerrilha da palavra, mesmo que dispersa e anônima. Permitia, inclusive, imaginar que a resistência à violência estatal era muito maior que a soma matemática de seus membros – não poderia haver, quem sabe, batalhões de artistas undergrounds escondidos em algum lugar produzindo textos terrivelmente combativos e desafiadores como El fiord (ou Operación Masacre, El frasquito, Los dueños de la tierra, La vida es un tango, Violín y otras cuestiones, The Buenos Aires Affair, Nanina, etc.)? Muitos desses textos surgiram no formato de bootlegs originários, xérox sem matriz, e por muitíssimo tempo circularam desse modo, firmando uma ética e uma estética muito particulares.
(Obviamente essa estratégia de confrontação corre para muito além da Argentina, da literatura e do suporte livresco. Poderíamos encontrar exemplos desses modelos subterrâneos em diversos cenários em diversos tempos, inclusive no Brasil).
A inversão contemporânea dessa premissa, ao contrário, é bastante trivial: publica-se tudo, antecipa-se tudo, impõe-se cordialmente uma imagem do que é a vida intelectual – que quer abarcar para si simultaneamente tanto o sério quanto o cool, tanto subversivo quanto o canônico, o liberal e o normativo, e até mesmo o escombro e o triunfo –, para assim circunscrever um território em torno da escrita e da literatura, um bem merecido domínio no qual se superou, se não todo o sofrimento, ao menos todo o sofrimento tido como indigno. Isso tem menos a ver com táticas de inserção e mobilização do que com a reprodução da antiga ficção de que escrever é uma atividade de casta, daqueles que possuem condições e segurança para tanto.
Nesse sentido, o que dizer dos repetitivos relatos e imagens que circulam no Facebook e afins, retratando um escritório espaçoso forrado de “materiais de trabalho” cuidadosamente editados como se fossem easter eggs (esse nome pascal para propaganda que assombra e desaloja a forma do filme, buscando a cumplicidade dos envolvidos na cifra da citação)? Uma cenário que substitui o studio por um stage. Desse ponto de vista, pouco importa o quão à esquerda ou à direita a composição desses quadros se posiciona: entre um e outro a diferença é de público-alvo, do algoritmo visado, não de políticas da escritura.
Essa encenação de um hábito não é muito diferente dos dispositivos de objetificação das mulheres nos anúncios de cerveja ou da transformação da natureza em idílio bucólico nos comerciais de carro. Na verdade, esses três gêneros de captura de imagens são profundamente aparentados, mais do que sonha a vã publicidade: o domínio feliz do lugar da escrita, junto com as idealizações da mulher e da natureza que servem como autorização da exploração violentíssima de cada uma delas, encontra-se no centro nervoso da devastação colonial que demarca este continente e o resto do planeta. Tudo passa pela terra.
A implicação mais corriqueira e profunda dessa rotina que busca nos servir de modelo ou norma é incutir a ideia de que, no fundo, há verdade e razão na aflição e na vergonha daqueles que não detém as condições prescritivas (prévia à escrita, antes mesmo da própria escrita) para o pensamento. Por um processo de sinédoques integradas, o sofrimento se torna equivalente à própria escrita, que desliza então à língua como um todo – e, por fim e portanto, encarna no próprio sujeito. “Não sei escrever, não consigo escrever” está em continuidade direta com o doloroso “não sei falar português” – forçando a internalização de um aspecto privativo do comum que logo se transforma em autonegação. A escrita aparece então como a escrita do Outro – não uma força com a qual se interage e pela qual se constitui relações, mas algo inteiramente sofrido.
O dispositivo pedagógico policial que se instaurou neste país desde o início genocida que ele reivindica para si, e que agora busca renovação pelo atual governo, alimenta-se da certeza de que a solução desse problema limita-se a uma mera questão de alfabetização. Não por acaso, a proposta de uma regressão ao A-B-C fônico no Ensino Fundamental vem acompanhada por uma brutal tentativa de destruição e de deslegitimação de todas as instituições de pesquisa e cultura espalhadas no Brasil. Para este país a privatização tem algo de tão fundamental que se enraíza até nos processos de aquisição da linguagem. Não é apenas uma política pedagógica falha, feita para fracassar (como sempre fracassou, em todas as suas variações, governo após governo), mas um esforço para submeter os povos que aqui vivem através da angústia gerada pela difusão geral da crença de que simplesmente “não sabemos” (que engloba o “não podemos saber” ou, ainda, o “não nos adianta nada saber”). Essa catequice a tal ponto foi pregada, com discurso tão doce quanto pesada era a palmatória, que para aturá-la muitos a convertem na mais apaixonada das certezas. Uma certeza sem fundo, de ordem obscurantista, militarizada e pseudocientífica – em ódio mesmo ao saber, hoje incrivelmente manifesto.
A literatura produzida no Brasil está integrada a essa história, seja como agente seja como combatente. Parte dela poderia ser recontada como uma série de revoltas contra a máquina que administra essa angústia. Em Dom Casmurro, por exemplo, a habilidade de Capitu para produzir uma forma desviante e eficaz de aprendizagem, confrontando a estrutura semicolonial que busca negar-lhe qualquer chance de dignidade, faz com que ela atraia todo o rancor do letrado Bentinho, que para destruí-la não se contenta apenas em exilá-la e desejar sua morte e a de seu filho, mas reivindica para si toda a força de lei através da pena para difamá-la, mesmo postumamente. Uma encarnação posterior desse ódio de latifundiários à educação que não lhes é própria está em São Bernardo de Graciliano Ramos. Do outro lado está o fascínio pirotécnico diante da escola em chamas em O Ateneu, mais vinculado à revolta contra um ensino de fachada, cujo objetivo é a distinção injustificada e injusta de uns poucos. Isso para não falar de toda a obra de Lima Barreto, uma declaração de guerra contra a odiosa “máquina de escrever” racista que veta a felicidade de seus feios manuscritos e que acaba levando-o à loucura.
O rol dos primeiros Modernistas parece concentrar a dramatização de todos esses embates. Pensemos no padecimento de Mario de Andrade provocado pelo ato de escrever, expresso constantemente em cartas para Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Mesmo o conjunto de suas intervenções públicas – a criação de parques para crianças, discotecas, patrimônios públicos, etc. – parecia destinada a fazer frente a esse padecimento, na tentativa de restituir espaços coletivos de contato com a linguagem. Junto, mas com outra perspectiva, Oswald de Andrade – adepto da escrita insurgente, infantil e alegre – sabe que a letra só será emancipada se nos emanciparmos dela, isto é, se ela abarcar outras coisas que não o domínio privado e a gramática de aquisição aplicada sobre um suporte determinado. Como aponta o autor do “Manifesto Antropófago”, esse processo de liberação não pode ser realizado sem um apelo ao matriarcado e ao pensamento indígena (um pensamento associado à natureza e ao sobrenatural, em que se pensa com eles). Só assim se perderia essa vergonha mortal da cultura inculcada por jesuítas. Uma leitura da literatura brasileira ao mesmo tempo aprendiz e antididática permitiria inclusive uma melhor aproximação de autoras como Pagu e outras ainda pouco reconhecidas, mas cheias de furor extemporâneo.
Há outros inúmeros e heteróclitos textos nesse sentido, cada qual propondo caminhos para uma escrita sem condição, para fora de si, a despeito de que tudo que nos é ensinado: Úrsula, O menino experimental, Quarto de despejo/Casa de alvenaria, Grande sertão: veredas, “Menino a bico de pena”, vários poemas de Drummond, João Cabral ou Waly Salomão, entre tantos mais. Sem falar de outras formas de letras (como as de Rap, jongos, canções indígenas, etc.). Seria preciso lê-las e escutá-las de modo a fazer jus a suas encruzilhadas, removendo a grossa camada pedagógica com a qual se busca neutralizá-las ao longo do ensino fundamental, médio e além, ao imbuí-las com nacionalismos chinfrins, esquemas para vestibular, festas literárias vips, doutrinas de toicinho e açúcar, entre outras rotinas.
Não é coincidência que muitas dessas obras e manifestações culturais, entre tantas outras, ganharam renovado interesse recentemente, graça às pessoas que possuem ou adquiriram uma carga de engajamento (muitas vezes não declarado) que até a pouco não eram recebidas ou concebidas nas universidades, instituições de arte, editoras, etc. Pelo menos, não de forma tão manifesta. São pessoas que revoltadas contra modalidades combinadas de racismo, pobreza (urbana e rural), machismo, xenofobia, violência escolar e familiar, perseguição religiosa, homofobia, antropocentrismo, destruição ecológica, capitalismo, etc, restituem e reconfiguram variedades de saberes outros e, com eles, a possibilidade mesma do saber. Gente que, por conhecer o sofrimento causado pela escrita privativa, sem muitas vezes possuir quaisquer antecedentes literários entre familiares, busca enfrentá-la elaborando, ao seu modo, intervenções narrativas, acadêmicas, ensaísticas, musicais, verbais, têxteis, etc. O sofrimento aí deixa de ser tratado como promessa ou prova de um reconhecimento merecido de trabalho, como um atestado de domínio que faz pouco do que essa palavra – “sofrimento” – pode verdadeiramente significar. Tal angústia é tomada como aquilo que de fato é: manifestação de um trauma histórico que deve ser convertido em matéria de pensamento e combate se não quiser vê-lo perpetuado indefinidamente.
Ainda assim, essas mudanças não são encaradas como esforços de um sem-número de interessados que, felizmente, acessaram algum grau de visibilidade para suas reivindicações nos últimos anos. O que ainda se repete é a velha rotina em que toda a semana um ou outro resenhista se autodeclara responsável pelo descobrimento de alguma obra, indicando-a como a mais recente pioneira de algum assunto em voga. Há uma visível ânsia em fazer-se dono disso e daquilo também. Essa estrutura fagocitária esconde os méritos referentes à recente entrada em cena de uma variedade de novos atores indisciplinados. Nesse ponto, nosso sistema cultural atual não deve coisa alguma ao fantoche da nossa democracia, que nada tem de representativa, mas de personalismo brutal e capitalização do esforço alheio. Para o olhar que nos últimos 15 anos não se dirigiu somente para as publicações de grande circulação, os cadernos culturais de hoje estão infestados de old news diluídas, que operam como uma espécie de suborno, em que se troca a demanda por reconhecimento público por certa dose de publicidade, subscrita por alguém que ocupa uma cadeira mais confortável há mais tempo.
Certo dizer que, se o sofrimento persiste, é porque a rotina constituída continua a não aceitar que uma prática de pensamento – mesmo quando consegue se filiar a uma instituição autorizada – seja condizente com o dia a dia do transporte público que vai e vem das periferias das capitais, da ausência de bibliotecas, do aprendizado por vezes improvisado e dos saberes constituídos em meio a precariedade, das práticas culturais subalternas, da constante falta de confiança incutida programaticamente pela educação fundamental, da relação de acaso com a literatura, dos quartos de república abarrotados, do desprezo geral contra aqueles que decidem fazer do estudo ou da produção artística sua profissão, dos vizinhos que subtraem o sono, do trabalho que arrebenta os pés e paga muito mal, da comida barata e enjoada dos bandejões, do terror dos prazos que só é superado pela possibilidade de perder a bolsa, seja de Pesquisa, de Auxílio, de Residência ou do que for, ainda mais agora que procuram extingui-las todas de uma vez. Quem afinal quer ouvir sobre isso, sobre aqueles que estão ou buscam estar em movimento e não no topo? Quem quer falar desse sofrimento indigno, que nada tem de redentor, de vitória? Da perspectiva desse alheamento, o que se pensa ou grafita em um vagão de trem não pode valer o mesmo que aquilo que se assina em um escritório ou gabinete.
E, no entanto, não é outra a rotina de boa parte daqueles que hoje estão decididos a confrontar imersa e intensivamente a violência da escrita neste país. Dentre esses, uma parcela significativa conseguiu, nos últimos anos, alocar-se, ainda que aos trancos e barrancos, naquelas que são consideradas as melhores universidades neste país (que são, invariavelmente, as públicas, ou ao menos procuram ser). Instituições essas que só têm futuro, só poderão ser realmente “melhores” e “públicas” no sentido mais verdadeiro dessas palavras, por conta da entrada e da invenção de outros saberes. A universidade não é a salvação desses conhecimentos ou desses sujeitos. Trata-se muito mais do contrário. Desgraçadamente, esse mesmo movimento tem atraído grande ódio e ressentimento, visto como invasão de propriedade (onde não deveria haver nenhuma) e concessão de privilégios (quando o que se reivindica é a extinção de todos os privilégios).
Se pensarmos detidamente em tudo que é rotineiro neste cenário que nos cerca, a rotina não é outra coisa que o horror ou a denegação desse horror. Por isso, não sei se esse pode ser um caminho de superação do sofrimento da escrita. Não creio que haja sequer condições para testar essa hipótese.
Nessas condições, talvez seja mais interessante já não mais se perguntar sobre a rotina que compactua com uma fantasia triunfante da escrita. Melhor pensar em termos de posicionamento, da postura que se pode adotar através de uma ação discursiva que visa romper com o sofrimento. Claro que uma grande dedicação é necessária, assim como empenho e luta intensivos. Mais que isso: precisa-se de certo grau de fúria, já que essa é inerente à criação e produção de saberes emancipatórios. Afinal, não adianta esperar que a rotina se arme ao nosso favor, em prol de uma prática que visa se livrar justamente dela. É a forma dinâmica, viva, encontrada para isso – moldada plasticamente e não enrijecida, diferente dos manequins militarizados que circulam por aí – que devemos buscar. Essa postura pode ser experimentada como a configuração que articula o psíquico, o físico, o corporal e o social, no momento em que, por exemplo, tomamos um livro em mãos, sentamos para escrever, proferimos uma palestra, escutamos uma música, dançamos ou calamo-nos. Postura que também se atualiza ao ser posta à prova quando nos vemos, por exemplo, diante de uma atrocidade ou de uma manifestação contra um regime fascistoide. É a imagem performática pela qual, em alguma medida, concretizam-se nossas motivações e nossas ações através dos gestos, como se fosse à tradução orgânica de nossa visão frente ao mundo – incluindo aí suas fissuras, contradições e conflitos internos.
O processo de constituição dessa postura muitas vezes encontra suporte em pequenas linhas em torno das quais retornamos e meditamos, como se fossem mantras. Nesse ponto acredito que possamos reformular a demanda implícita na pergunta inicial, e dizer que no lugar da rotina que me é impossível, e não só a mim, busco como ato matinal me recordar porque continuo a fazer o que faço, e me perguntar o que estou disposto a fazer em confronto com aquilo que me foi imposto como dado. Essa ainda é a maneira imperfeita que arranjei para continuar: lembrando aquilo que quero escrever, que acho importante escrever, que deve ser escrito de qualquer maneira, pois essa foi a modalidade que acabei arranjando no andar da minha formação, e com a qual insisto em percorrê-la. Procuro me perguntar por aquilo que permanece esquecido ou inexplorado, que corre o risco de se perder, de permanecer submerso, atrelado como está ao peso do consentimento. Essa pergunta impõe uma dose de responsabilidade e por isso também oferece uma boa motivação. Nisso, cria-se um impulso por uma modalidade de justiça com a qual não estamos acostumados, na qual não está ausente felicidade, muito especial e específica, porque não é a recusa pura do sofrimento (que só o perpetua), nem uma exigência por condições ou condenação, mas uma compreensão de seu funcionamento tendo em vista sua desarticulação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Se a primeira resposta girou em torno de um problema de espaço, a segunda dever se concentrar no tempo. Muitas das reflexões feitas acima valem igualmente para essa dimensão da existência – com o porém de que a violência que comentávamos é maior e mais severa quando aplicada em termos temporais. Recobrar tempo é algo mais difícil. E se podemos trabalhar para arranjar uma fresta entre espaços, não há espaço que nos faça recuperar o tempo gasto num trabalho que nos é alheio, alienado.
Cabe, no entanto, lembrar aqueles proletários e proletárias, camponeses e camponesas, que, durante os períodos que precederam a revolução francesa ou a russa, varavam noites inteiras, escrevendo e imprimindo panfletos, revistas, poemas e romances. De onde vinha aquela força para se manterem em pé, após horas e horas de trabalhos como carvoeiros, tecelões, metalúrgicos, etc. sob condições hoje impensáveis? Exemplos assim podem ser encontrados em diversos contextos de resistência, em todo tipo de sistemas de comunicação clandestinos.
Ainda que, no meu caso particular, sinto-me melhor escrevendo logo pela manhã, como se a primeira nota do dia regesse todo o ritmo da jornada, é verdade que certas coisas só podem ser pensadas ao longo da madrugada insone, quando o raciocínio quase se apaga pelo cansaço, quando luta para avançar um pouco mais…
A verdade é que se escreve quando se pode e não quando se quer. O segredo é tentar fazer com que a oportunidade se confunda com o desejo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Dado o que eu falei, manter uma meta diária acaba sendo uma faca de dois gumes: pode tanto impelir a escrita a seguir adiante como paralisá-la, já que muitas vezes é impossível cumprir uma taxa fixa, causando frustração e tortura.
O processo de escrita pode ter várias facetas: anotações soltas, planejamentos, alguma psicografia errante, tentativas de agregar esses fragmentos, trabalho com grandes blocos, análise do que ficará de fora (no meu caso, sempre escrevo mais do que cabe em um único texto), exaustão e finalização. Creio que a concentração de tempo vai aumentando de acordo com a passagem do tempo, como se o texto fosse constituído pela sedimentação daquilo que resta desses diversos processos, mais do que pela sua superação. Nos últimos passos de um texto, nem nos sonhos eu paro de escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A separação entre preparação e escrita, como duas etapas separadas, é frequentemente um engano. Quando mais se tem certeza de todo o conteúdo, mais rápido surge a insatisfação e o desinteresse, ao menos para mim. Isso porque o que sei não me interessa ou me parece redundante. Escrevo porque quero encontrar outra coisa, não reforçar idéias postas (que provavelmente estão mais bem colocadas em outro lugar). Uma boa ideia não aceita limites, ela pertence sempre a um futuro obscuro. O que temos são presságios desse além de nós. O trabalho intelectual sempre tem algo de sobrenatural.
Por isso, muito do que escrevi parte da premissa de interrogar valores ou fatos acidentais que foram marcantes ao logo do meu percurso como leitor. São perguntas simples: Em que medida a defesa irrestrita da literatura pode se converter em violência e injustiça? Como a natureza múltipla da poesia depõe contra a monocultura de uma forma de vida humana hegemônica e predatória? Qual o papel que o fascínio pelo paranormal (que me acompanha desde criança) cumpre na história das imagens e do pensamento? No fundo, todas essas questões se referem ao limite do literário, do outro da literatura. Creio que essa é a coisa que não me sai da cabeça, que perturba e move meu pensamento.
Evidentemente, uma dose de humor e auto-ironia é necessária para a concretização desses projetos. Isso não acontece por faltar com respeito ao problema, ao contrário. É preciso alguma ingratidão às peças fundamentais de nossa formação se quisermos encarar certos problemas de frente, levando-os às últimas conseqüências.
Por isso, o processo nunca é linear: não se parte de notas para textos maiores e completos, da teoria para a prática, da rememoração para a criação. Tudo é quebrado constantemente, reescrito e realinhado para que o processo siga em direção a questões mais difíceis, e mesmo ao irrespondível, isto é, para aquilo que de fato interessa.
Admito que, no geral, minha versão pessoal desse processo é um tanto custosa e lenta. Sobram fragmentos e tudo isso gera uma paixão que não quer deixar o texto ir embora. No fim, todo o percurso termina com uma lição de desapego.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há dois grandes tipos de bloqueio. O primeiro refere-se a uma barreira de pensamento, algo que impede o avanço. Incluo aí a procrastinação. A pior maneira de lidar com isso é simplesmente parar, desviar desse território, considerando-o proibido. Na verdade, desse limite saem as melhores descobertas, passagens e intuições que o trabalho do pensamento pode fornecer. Se não for possível atravessar um muro em um primeiro momento, pode-se pensá-lo, rodeá-lo, descrevê-lo, torcê-lo, grafitá-lo, e, quem sabe, enganá-lo, fazê-lo recuar um centímetro que for. Essas travas têm a mesma consistência de todo o restante do processo do pensamento, e, portanto, podem ser moldadas e atravessadas por ele.
Isso não significa que são fáceis de romper. Isso tem a ver com o segundo tipo de bloqueio. Melhor seria dizer: uma segunda camada. Temos a tendência de acreditar que toda a dificuldade é uma deficiência de caráter, de limitação inerente à nossa existência individual. Como se fosse uma coisa de ordem moral. No fundo, vivemos numa máquina alimentada pelo dispositivo da vergonha. Também por isso a antropofagia estava certa ao valorizar o índio: aquele que não teme a nudez não tem porque temer a escrita.
Essa tendência de vestir uma camisa de força é a marca de um processo social muito antigo, e está longe de ser um problema individual. Deveríamos encarar o temor à escrita como um largo problema histórico, que é revivido individualmente em nossa formação escolar e pessoal. A opressão e a violência de nossos sistemas de produção e de nossas formas de vida se projetam nas mais simples das tarefas. Não é curioso que Marx descreva a sua visão de sociedade justa como aquela em que o homem poderá de fato dedicar-se as atividades de criar, criticar, plantar e pastorar? O primeiro passo então seria assumir que raramente estamos de fato fazendo aquilo que fazemos nas circunstâncias que nos são exigidas. No cerne de nossa estrutura social está uma procrastinação muito mais enraizada do que aquela associada ao adiamento das demandas de reprodução febril e desmiolada. Fazer dessa desfeita algo mais, outra coisa, certamente indica um avanço.
Sejamos, portanto, desavergonhados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o máximo que posso, até que o impulso de jogar tudo fora e refazer do zero comece a me tentar. Aí é hora de partir para outros problemas.
Como diz Blanchot, a única pessoa que está impedida de se tornar o leitor de um texto é o seu autor. Nunca há distância suficiente para se fazer uma revisão. O que o autor faz ou é reescrita e continuações ou então autocensura. Por isso dependo de meus amigos e, especialmente, da minha esposa, que têm paciência para ler o que escrevo. E também do tempo, que destrona qualquer um do posto de dono da escrita.
Tento conviver com a ideia de que arestas são inevitáveis, e me consolar com a lembrança de que o único que conhece as verdadeiras faltas do texto – aquilo que não consegui formular – sou eu mesmo. Aquilo que não está lá não faz falta para mais ninguém.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Durante metade do meu percurso acadêmico, do curso de graduação até o fim do doutorado, não tive um computador pessoal. Escrevia tudo em pequenos papelotes, depois em páginas de A4 encadernadas ou grampeadas. Por fim, redigia nas horrorosas máquinas disponíveis pela universidade. Imprimia, relia, fazia várias anotações à mão, depois passava a limpo.
Foi assim que aprendi a me mover entre suportes. Ainda hoje interrompo a escrita no computador porque a tirania linear do Word não serve para resolução de certos imbróglios. É preciso ter em mente isso. Naturalizamos os meios, subestimamos seu magnetismo, e esquecemos como isso pode afetar ou impedir uma perspectiva transversal daquilo com que estamos trabalhamos naquele momento. Nenhum texto que vale a pena, a despeito do que dizem aqueles que são campeões em tudo, segue em linha reta. Já o sabia Álvaro de Campos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O mais correto seria perguntar como as idéias chegam a mim, ou a qualquer pessoa. E isso é sempre um mistério.
As boas ideias, para mim, parecem orbitar aquele ponto em se concentra tudo que é insolúvel, tenso, conflituoso. Entender os aspectos daquilo que resiste, que insiste, que luta para sobreviver, mas também lidar e combater aquilo que é inaceitável, perverso e destrutivo. Isso inclui os vários tipos de sofrimentos nos quais está embebida a linguagem com a qual convivemos. Eis o que anima os estudos das humanidades.
Às vezes, algo surge a partir de uma exigência estapafúrdia, que não possui uma base clara. Por algum motivo, parece-me interessante aproximar duas obras que nada parecem ter em comum, de tempos, lugares e contextos absolutamente diferentes. Ou trabalhar sobre uma premissa impossível, um material considerado desprezível, um conceito estranho ou algo que é considerado fora da dignidade do pensamento. Muitos livros que admiro estão baseados em um gesto de troça da paranóia que persegue o contraditório, das denúncias daquilo que se encontra fora do escopo da disciplina, ou, simplesmente, da sentença “você não pode dizer isso”. Quando alguém, seja nas artes, seja na pesquisa, diz algo como “algo assim não pode ser formulado”, “não faz sentido”, etc., já não estamos mais no campo da criação, do desafio, e sim da proteção, da conservação, da colonização, da mediocridade.
Escrever com objetivo de chegar a uma validação, no sentido raso, terminante, não tem muito proveito. Sempre se apaga mais do que se cria com essas pacificações, que muitas vezes se disfarçam sob o manto do rigor, da seriedade e da fidelidade. Não se resolve nada transformando problemas sociais, estéticos e éticos em fórmulas para as quais a solução acreditar-se ser evidente. Se assim fosse, viveríamos em uma utopia só por sermos capazes de imaginá-la.
Esse posicionamento, como numa redução matemática (ainda que de maneira muito menos elegante que essa), apega-se disfarçadamente a uma fórmula do tipo “isso é igual a isso”. Na área de artes e cultura, essa equação é uma espécie de condenação (como também o é na matemática: os grandes avanços modernos dessa área surgem quando o reino do símbolo de “igual” cai ou quando se percebe que sua tautologia é, na verdade, uma espécie de monstruosidade). A igualdade nunca pode ser a planificação genérica entre dois “isso”.
Não sei se somente os hábitos podem garantir boas idéias. Já a errância, a peregrinação, parecem-me vitais: ler, observar, ouvir, parar (o mais subestimado dos atos), buscar o que não se conhece, não subestimar nada, não querer garantias, não embarcar em exigências alheias, não se subordinar, manter-se corajoso, arriscar a leitura de livros desconhecidos, enfim, esforçar-se continuamente para manter a independência intelectual.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mim mesmo diria para acertar uma ou outra vírgula, escolher títulos menos espalhafatosos e reduzir o número de adjetivos e de orações coordenadas.
Mas a verdade é que pediria mais conselhos do que os daria. É uma tolice pensar que a experiência só traz aperfeiçoamentos. Temos a tendência de esquecer muitas boas coisas, especialmente o sentimento de indignação.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Muitos dos textos que gostaria de ler eu, de algum modo, já li. Posso dizer que gostaria de lê-los no formato de livro de modo que outras pessoas pudessem aproveitá-los. São textos que infelizmente não circulam da maneira que merecem. É incrível que muitas traduções de Denise Salles, Noé Silva e Gabriela Soares (os três do russo), de Daniel Dago (holandês), de Eduardo Veras (francês), de Luci Ramos Mendes e Marcelo Paiva de Souza (do polonês), de Mauricio Mendonça Cardozo (do alemão), e de Clarisse Lyra (espanhol), que privilegiam obras excelentes e fora da curva permaneçam inéditas na forma de livro. Em algum momento acredito que ensaios que tive a oportunidade de ler, na totalidade ou parcialmente, em pdf ou páginas do Word, de Eduardo Sterzi, Eduardo Jorge, Marcos Natali e Alexandre Nodari, entre outros, encontrarão o caminho das prateleiras. Já os novos poemários de meus companheiros Fabiano Calixto, Natália Agra e Rodrigo Lobo já estão encaminhados por iniciativa própria, pela editora que dirigem, a Corsário-Satã, o que é uma alegria, sem dúvida. Além disso, poderia citar uma imensidão de romances e contos de países lusófonos que insistimos em ignorar, ou mesmo obras de nosso repertório local que permanecem sem uma edição decente, acessível ou simplesmente disponível.
Esses são exemplos tirados do meu limitado repertório. Certamente há muitas outras coisas interessantes por aí, esperando uma oportunidade.
Nosso mercado editorial por vezes soa como a televisão: uma programação reduzida, copiada de outros países, que busca garantir o sucesso comprando apenas aquilo que já foi testado com audiências estrangeiras. A isso acompanham as reprises dos cânones em novas roupagens e alguns programas de telemarketing e pregação religiosa. Com os anos, é impossível não sentir certo tédio. As resenhas caminham nessa mesma rotina: são ventriloquismos de opiniões de jornais norte-americanos, ingleses, franceses ou argentinos, além de veicular mágoas e embargos. Arrisca-se muito pouco a dar visibilidade a escritores de outras séries, nacionais e estrangeiras, que não tenham passado por um sem número de mediações alheias. Não se leva em consideração como bons autores às vezes encontram ecos em alguns lugares e não em outros (às vezes, em sua própria língua); que o mérito de um editor ou um crítico é ajudar a criar bibliotecas e, junto com elas, participar da produção de uma dimensão pública, coletiva. Por conta disso, os únicos dois tempos literários que parecem existir neste país são o do cânone mais básico e o dos convidados da festa literária deste ano. Há décadas as prateleiras das livrarias são tão reféns das historiografias consagradas quanto do Nobel, Booker Prize, Jabuti ou o que for. Bizarramente, algumas importantes obras nacionais só são acessíveis hoje graças à força imperativa que as listas de alguns vestibulares têm para o mercado editorial. Se não fosse por isso, permaneceriam sob a censura do tempo e restrita a alguns valentes arqueólogos das letras.
Evidentemente, há alguns esforços em outras direções também, principalmente de médias e pequenas editoras, compromissadas como estão pelos seus projetos. É triste ver como algumas delas, quando começam a ganhar alguma notoriedade, logo têm seu catálogo raptado.
A má consciência de editoras e livrarias de grande e médio porte aparece quando essas buscam adotar a aparência de bastiões culturais, principalmente em tempos de crise financeira – um discurso emitido na voz do velho marqueteiro de livros, que não entende por que esse bando de leitores degradados é tão pouco agradecido a tudo o que ele fez. Isso é visível também no esforço de certas empresas de grande visibilidade para entrar em feiras de livros independentes, procurando vestir uma fantasia que evidentemente não lhes cabe mais.
Por fim, os livros que eu gostaria de escrever são aqueles que, aos poucos, venho escrevendo. Talvez fosse preciso dizer quais livros eu gostaria de parar de escrever, que compõem já um catálogo semi-imaginário: Literatura sob rasura, Ecologias da poesia, Pedagogia da fúria, A paranormalidade das imagens e uma pequena enciclopédia focada em um tipo muito específico de cinema. Mas é melhor não fazer mais promessas. Só espero que logo uma ou outra dessas produções ganhe uma forma mais ou menos acabada para que possa seguir para alguma zona mais estranha, mais peculiar, cheia de forças em conflito.