Tiago Germano é escritor, autor de “Demônios Domésticos”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou uma criatura em constante conflito com minha natureza preguiçosa e desorganizada, e embora nem sempre consiga estabelecer uma rotina tão regrada quanto a que julgo ser ideal, acredito na disciplina física e mental como única ferramenta capaz de me colocar nos eixos. Por isso, embora seja uma pessoa essencialmente noturna, tento acordar cedo e cumprir todas as atividades domésticas (higiene, café-da-manhã, levar o cachorro pra passear etc.) antes de começar a escrever. Claro que todo esse ritual envolve uma procrastinação bastante hipócrita de minha parte, que costumo comparar com a própria rotina do meu cão, um dachshund temperamental de nome César. É ele quem me acorda todas as manhãs exigindo o seu passeio matinal; é ele quem praticamente me puxa pela coleira ao redor do quarteirão até os lugares onde costuma atender o chamado da natureza (se é que você entende o que estou querendo dizer). É curioso. Ele sempre precisa se aliviar nos mesmos lugares, mas antes disso fica por ali, cheirando os cantos, andando em círculos, até que não consegue mais se conter e começa a cumprir seu expediente fisiológico daquela forma longa, demorada. Comigo também é assim. Eu fico rodeando o meu lugar à escrivaninha, acionando interruptores, abrindo a geladeira, rolando a timeline do Facebook e curtindo todas as postagens compulsivamente, até que uma hora toda essa ladainha fica insuportável e me ponho em definitivo a escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu tenho a impressão de que renderia melhor à noite, se não me batesse toda essa culpa católica de acordar tarde e ter a impressão de que perdi todo o dia só porque levantei com o sol a pino. Conheço pessoas que trocaram os dias pelas noites e se deram muito bem com essa barganha: conseguiram adaptar suas atividades a esse outro fuso horário e contar até com a complacência de quem convive com elas. Eu, por outro lado, nunca consegui me adequar a esse sistema. Sempre fico deprimido imaginando as pessoas produzindo enquanto eu durmo, mesmo que, enquanto elas durmam, os papéis se invertam e seja eu a estar em plena atividade. Um amigo certa vez elaborou uma teoria interessante: ele disse que um dia a camada de ozônio estará tão detonada e o sol tão quente que as pessoas serão obrigadas a virar notívagas. Talvez isso acabe com meus problemas. Talvez. Enquanto isso não acontece, eu sigo me esforçando para ser uma pessoa mais matinal, com ajuda de café e música. Atualmente meu ritual de preparação para a escrita envolve doses cavalares de café e Red Hot Chili Peppers. Talvez eu vá ferir a sensibilidade musical de alguns, mas sou absolutamente obcecado pelo Anthony Kiedis e pela energia que ele emana no palco. Todos eles, aliás.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gosto muito de uma frase do violinista Jascha Heifetz que o professor Assis Brasil, escritor e músico, costuma repetir para os seus alunos: “Se eu não pratico um dia, eu noto a diferença; dois dias, os críticos notam; três dias, o público nota”. Acredito muito na prática. Se o músico, o pintor, o bailarino e o ator ensaiam todos os dias, por que deveria ser diferente com o escritor? Tento escrever todos os dias. Tento. Isso não significa que sempre consiga ou que, quando venho a conseguir, o resultado não seja ruim – muitas vezes não passa de uma ou duas páginas de qualidade inferior, que sequer vou aproveitar como material de trabalho. Isso me irrita profundamente. Mas aí me lembro de uma outra frase, essa do escritor Amos Oz. Ele diz que escrever é como abrir uma bodega: nem sempre haverá clientes, mas sua obrigação como dono da bodega é estar com as portas abertas para quando aparecer um.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito do projeto ao qual estou me dedicando. Ou do gênero no qual escrevo. Sou mais espontâneo na crônica e no conto, e às vezes tenho a sensação que a narrativa só vai funcionar no papel se ela já vier estruturalmente pronta na minha cabeça. No romance, pelo contrário, meu método é mais cerebral e, naturalmente, bem mais demorado. Mas sobre a pesquisa, uma coisa é certa: jamais deixo que ela se torne um motivo de protelação, de adiamento do ato da escrita. Escritores têm a tendência de se apaixonar pelo tema sobre o qual estão escrevendo, de cercá-lo até o ponto de se deixar ser devorado por ele. Pesquisar exaustivamente, às vezes, pode ser que nem atuar como um banqueiro que rouba do seu próprio banco. Isso fatalmente o levará à falência. Toda pesquisa é inesgotável. Estender-se demais nela e deixar de escrever é ir cada vez mais fundo e se perder no labirinto, cair numa armadilha que você mesmo armou com suas próprias ferramentas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sou jornalista de formação. Costumam dizer que jornalistas não acreditam muito em inspiração ou em bloqueios, na medida em que trabalham com prazos muito curtos e pressões constantes. Isso é parcialmente verdade. Embora, de fato, não simpatize com a ideia de inspiração (acho que é um conceito que alimenta e é alimentado pela inércia, e que sempre pode ser substituído por uma palavra melhor como disposição, epifania, insight…), compartilho da ideia de Picasso de que, se ela existe, tem que nos encontrar trabalhando. E trabalhar é lidar com o bloqueio – porque ele, sim, existe, por todos os fatores psicológicos que a sua pergunta já levantou. Eu lido com o bloqueio tentando calar meu editor interno, essa entidade cruel e meio lírica que gosta de se aboletar no meu ombro e ficar repetindo a máxima drummondiana de que lutar com as palavras é a luta mais vã. Eu sigo lutando, rompendo a manhã. Em algum momento o papagaio se espanta com a rima e vai procurar outros poleiros.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tento não revisar enquanto escrevo, embora quase sempre desobedeça essa regra que me impus para evitar uma mania que apelidei de “gagueira de pensamento”. Tem um personagem em “A Peste”, do Camus, que é conhecido na cidade por estar escrevendo um romance. Toda vez que alguém pergunta a quantas anda o romance, ele diz que continua empacado na primeira frase, cada vez mudando uma palavra, um pronome, atormentado com o ritmo, a musicalidade, quando para todo o resto do mundo todas as versões das frases que ele escreveu parecem dar no mesmo, não faria a mínima diferença no final das contas. Eu sou esse personagem. Ou o Valéry, que confessou que não conseguiria escrever um romance porque não seria capaz de escrever uma frase banal como “Madame, como vai a senhora?” O banal me atormenta muito. Eu tenho que repetir muitas vezes uma mesma frase para me convencer de que ela deveria realmente estar ali no lugar de outra. Então tento revisar o mínimo possível, como falei, sobretudo no dia seguinte, e sobretudo se gostei do que escrevi no dia anterior. A entrevista já está virando um punhado de citações imprecisas, mas acho que era o Moacyr Scliar quem se perguntava como era que ele podia se achar um gênio à noite e um completo fracassado no outro dia, quando se punha a ler o que escrevia. Eu sou assim. Eu tento revisar apenas quando chego ao final de um trabalho. Aí sim me permito um pouco de perfeccionismo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu tomo notas à mão. Tento escrever diretamente no computador por praticidade. Tenho vinte cadernos do meu primeiro romance, porém, e umas tantas versões digitais em arquivos de texto, todas com denominações confusas e conflituosas entre si como “vale esta”, “agora sim”, “essa vai”, de modo que nunca sei qual é qual nem qual é a versão definitiva e acabo sempre me atrapalhando quando tenho que consultá-las, na selva densa que virou a minha área de trabalho do Windows. A tecnologia me auxilia bastante no processo de pesquisa, porém. Mantenho uma aba do Google sempre aberta. Gosto de consultar dicionários e mapas e sites de conteúdo tão estúpido que mal me sinto à vontade de comentar aqui.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Exatamente. Muitas delas vêm desses sites. As pessoas não entendem para quem são feitos esses sites de notícias bizarras, por exemplo. Esses sites são feitos para gente como eu. Já é um clichê argumentar que a realidade há muito superou a ficção. Uma atenta observação do cotidiano torna o ofício de inventar quase que dispensável. Isso aprendi com a crônica. O escritório da crônica é o banco de praça. Das praças reais, antes, e das virtuais também, agora. O dilema de todo escritor era entre a mesa e a janela do quarto. Hoje é entre a janela do Word e a janela do Facebook. Não há ficção maior que a realidade, ainda que no âmbito virtual. A realidade é tão ficcional que às vezes parece até mentira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Eu comecei a escrever pela poesia e era, claro, um péssimo poeta. Eu tinha amor pelas palavras, tanto que chegava a colecioná-las, elaborar listas aleatórias e escrever em função da ordem dessas listas. Me deixava levar por aliterações, assonâncias, eu adorava palavras proparoxítonas. Toda palavra proparoxítona tem um ar de superioridade, então eu enchia o texto de palavras proparoxítonas e pouco importava que não fizesse sentido algum, fazia para mim. Minha primeira redação me levou à diretoria porque a professora achava que, pelo vocabulário, não tinha sido eu quem a escreveu. A grande verdade é que nem ela nem eu nem ninguém entendíamos absolutamente nada do que estava escrito ali. Ainda hoje se você pegar alguns de meus textos vai ver no final algumas dessas listas de palavras, com sinônimos ou rimas ou locuções relacionadas a alguma outra palavra que eu já usei no texto. Me dá pena dessas listas, às vezes acho que elas mereceriam um apêndice só para elas. O que mudou no meu processo de escrita foi justamente essa noção de economia, que veio de uma poupança de palavras que às vezes me recuso a mexer. Não é muito incomum que esse amor às palavras, muitas vezes muito mais associado à forma que ao conteúdo delas, soe ao leitor como um preciosismo ou um deboche. A crônica me ensinou a ser mais simples, muito embora às vezes eu teime, razão pela qual invariavelmente vai saltar aos olhos numa crônica minha uma palavra como “lânguida” junto com um “muxoxo”. Você vai ler e achar que ela não devia estar ali, mas logo vai reler e entender que ela sempre esteve justamente no lugar em que sempre deveria estar. Gosto de provocar esses tropeços, e se pudesse voltar no tempo antes da escrita de qualquer coisa eu me daria uma rasteira – que provavelmente seria a única forma de chamar minha própria atenção – e diria: escreva. E escreva. E escreva.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho em mente vários livros que gostaria de escrever, e espero ter tempo – e saúde – para escrever todos eles. Se for verdade que escrevemos justamente porque queremos ler um livro que não existe em nossa biblioteca, são esses os livros que gostaria de ler. Mas desconfio que isso seja mais um capricho ou uma vaidade nossa. Há mais livros no mundo do que vida para lê-los. Certa vez fiquei chocado quando ouvi o Ronaldo Correia de Brito dizer que, se lhe fosse dado escolher entre apenas ler ou apenas escrever, ele não hesitaria em escolher passar todo o resto da vida lendo. Como um escritor tão profícuo era capaz de dar esse tipo de resposta? Só depois de escrever o meu primeiro livro foi que entendi que o grande prazer do escritor é a leitura. Como diz o Javier Marías existem vários motivos para não escrever e só um para escrever: viver instalado nos livros, o único lugar suportável para um escritor. Escrevemos muito mais por amor à leitura que à escrita. Os livros que quero ler já existem. E não há existência mais vasta que a literatura.