Tiago D. Oliveira é professor, poeta e escritor, autor de “Distraído” (Pinaúna), “Debaixo do vazio” (Córrego) e “Contações” (Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo lá pelas 6h com as minhas filhas pedindo desenho animado. Dou o café da manhã delas e tento beber um bem quente. Leio as notícias pelo celular e começo a organizar mentalmente o meu dia. Isso até o tempo que durar alguns episódios infantis na televisão, depois disso me transformo em capitão pirata, juiz de concurso de dança, canto, imitação, construímos prédios com lego na tentativa de tocar no teto da sala e depois derrubamos tudo. Catamos. As horas das manhãs são para mim uma prática árdua para que não seja repetida a brincadeira do dia anterior, estou sempre pensando em uma maneira de reinventar o riso, as besteiras que falo, os desenhos que pintamos nas folhas de A4. Às 10h ponho na mesinha azul os pratinhos coloridos com pão passado na manteiga, mas sem borda, e suco de uva, que em muitas vezes chamamos de aguinha, leitinho ou fórmula para poderes mágicos. A minha rotina matinal é um desafio que se transforma todo ano, eu e a minha esposa dividimo-nos em uma alegria que derruba diariamente a linha tênue entre a literatura e a realidade. As tardes são de uma rotina menos lúdica e afetuosa, mas necessárias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela noite escuto mais claramente os pensamentos que durante o dia motivam-me a fazer várias anotações. A configuração dos dias provou-me que ter tempo seria uma riqueza, uma sorte, então sobrou a noite. Eu que já gostava de ficar acordado até tarde, agora tentava driblar o sono para as leituras e escrita. Quando as minhas filhas nasceram entendi verdadeiramente o que significava ficar acordado, ter sono e um monte de outras novidades, aproveitei bastante as noites em claro velando o sono delas, acompanhando a febre ou qualquer outro momento que passaria logo, para fazer leituras. Os poemas são grande parte da minha fé, eles me fizeram muito bem e ainda me ajudam muito nesses momentos. O meu ritual tem a ver com algum ponto inicial, preciso dessa conexão para começar, seja uma leitura, uma curiosidade, uma paixão torrencial por saveiros ou observadores de pássaros, qualquer ponto que consiga despertar esse olhar de inauguração, ao menos em mim. Há alguns anos escrevi uma pequena novela poética, Dia de mar, ainda inédita, que nasceu exatamente sobre um volante no engarrafamento. Passava todos os dias por um ponto da cidade que até hoje engarrafa muito e a sua travessia dura mais ou menos uma hora e pouquinho. Sentia-me sufocado com tantas obrigações e ainda passava noites em claro para estudar ou ninar a minha filha mais velha, que acordava para tomar mamadeira ou simplesmente chorar um pouco antes de voltar a dormir. Então, o título do livro surgiu em minha frente como uma resposta. Precisava de um dia de mar em Arembepe, como já estava acostumado, mas que já não acontecia com tanta frequência como antes. Esse dia trouxe outros tantos de volta em meu sentimento de acolhimento enquanto escrevia. Um dia que me ensinou que melhor seria se estivéssemos todos juntos, que a gente se acostuma com o cansaço e que tudo se transforma. Que é possível escrever dentro dessa realidade e se sentir melhor com isso. A minha preparação para a escrita passou a ser a própria escrita, a própria escrita dos dias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, fico entre a leitura e a escrita. Quando estou dentro de algum projeto ou escrevendo para algum pedido ou revista, trabalho em cima do tempo, o que se resume praticamente em escrever no último dia. Funciono melhor assim. Gosto de escrever depois de muito tempo parado, há um gás maior que parece renovador na maneira de observar o que se esconde. Gosto dessa quebra e do retorno, não escrevo em períodos concentrados, o limite do meu corpo determina que levante da cadeira, que respire na janela, que escute uma música ou que dirija pela noite. Os meus dias são inevitavelmente atravessados por uma natureza imensa de acontecimentos, a minha escrita não poderia ser diferente, o escritor vem atravessado por intermitências inúmeras que são responsáveis pelo próprio ato da escrita e sem essa realidade não conseguiria a motivação para viverescrever. Tenho uma meta diária de simplesmente ter contato com a leitura ou com a escrita, obrigo-me minimamente a isso, mesmo quando não consigo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A minha escrita começa na escolha das leituras. Leio e deixo que algo paire em minha cabeça, uma palavra, verso, frase, imagem, imaginação. Preciso desse ponto inicial que geralmente acontece de uma forma muito natural, pois leio o que gosto e escrevo nesse caminho. Faço muitas anotações e durante esse processo, que dura o tempo que durar, já começo a perceber uma unidade ou um caminho de início de escrita. Agora mesmo estou escrevendo uma novela juvenil baseada nos meninos que ficaram presos na caverna na Tailândia. Tudo começou com uma imensa curiosidade, então comprei alguns livros sobre o fato e li tudo que consegui reunir em jornais mundiais na internet. Gostei muito dos livros, pois abordaram de uma forma jornalística e isso me proporcionou um olhar mais organizado sobre a ordem de como tudo aconteceu e principalmente sobre os bastidores de toda a operação de resgate. As notas que fiz ajudaram-me a compor a estrutura da narrativa que pretendia escrever. Os diálogos surgiram depois que conheci mais sobre cada garoto e suas famílias. Depois desse trabalho de pesquisa comecei a escrever, mas a todo momento de travamento retorno para as declarações dos familiares em minhas anotações e a narrativa continua a ser escrita novamente. A pesquisa é um passo fundamental para quem escreve, é a transpiração antes ou depois da inspiração. Depois dela o escrever/continuar acontece muito facilmente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas e os momento de bloqueio são naturais para qualquer pessoa, pois até fora do papel e da caneta nós temos situações em que paramos e precisamos voltar logo ou depois de um tempo. Com os anos fui percebendo que a melhor alternativa é parar e respeitar esse impasse. Com os anos entendi que retornar para um ponto é abrir-se para outras perspectivas, é pensar movido por outras formas de influência. Quando estou diante de algo que me trava e fico sem saber o que fazer, recorro a quem já viveu mais do que para buscar respostas, minha mãe, meu pai ou alguém que tenha um abraço amigo e um olhar de vidas dentro das palavras. Na literatura tive a sorte de fazer alguns bons amigos que já caminharam mais do que eu e conhecem os caminhos da escrita dentro dos seus pés descalços. Aprendi também que um bom livro pode ser um ótimo amigo para qualquer momento difícil que possamos passar. Além disso, há álbuns de Bethânia, Gil, Caetano, Chico Buarque, Cartola, Mariza ou Cesária Évora que são de uma imensidão maravilhosa. Venho percebendo que o medo e a procrastinação são faces de uma moeda lançada ao ar, prefiro guardá-la no bolso até mesmo quando observo depois da queda o lado que foi sorteado. O único medo que não me larga é o de não ter tentado. Os projetos longos são ainda um sonho. Nos próximos anos pretendo começar um romance e acredito que esse demorará para chegar ao fim devido ao tempo dedicado para as leituras e anotações que pretendo fazer, quero entrar nesse caminho quando finalizar alguns ciclos que estou vivendo. Lido com as travas, medos e procrastinações da mesma forma que atravesso os obstáculos nestas minhas primaveras, acreditando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão vem se tornando uma prática cada vez mais repetitiva. Os poemas possuem uma dinâmica própria de revisão, o que já faço com maior tranquilidade e familiaridade. A escrita das narrativas necessita de uma dedicação mais cansativa e esse passo é que requer muito suor e paciência. Tenho a sensação de que o texto pronto não existe, cada escrito é uma tentativa de se entender no mundo e consequentemente, também, de entender o mundo sobre nós. A revisão é um refinamento necessários para os dias, a cada passo ou texto melhora-se mais. Escrevo e a primeira pessoa que conhece os meus textos é a minha esposa, que também é professora e estuda literatura, ela faz a leitura e critica sem reservas, gosto disso. O seu olhar é também parte desse meu processo de busca pelo texto minimamente passível a uma exposição maior e despreocupada. A verdade é que quanto mais o tempo passa, mais vamos ficando criteriosos e exigentes com nossas produções, uma herança boa que ganhamos com os cabelos brancos. A publicação é realmente uma última etapa que nem sempre acontece, há textos que nascem, dão frutos que nem sempre são visíveis e morrem em alguma gaveta ou pasta no computador, sem a publicação. Quando ela acontece é uma felicidade, o sinal de que o texto sobreviveu a todas as etapas importantes para que seja levado a sério e siga para outra fase longa e também difícil, a busca pelo seu leitor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrever é uma necessidade, a tecnologia vem para facilitar o trabalho. Quase sempre, quando escrevo poesia, utilizo os caderninhos ou blocos que separo para essas escritas, tenho uma caixa imensa cheia deles, são uma tara, com a poesia preciso quase que tocar com os meus dedos as palavras. Ao escrever narrativas utilizo o computador, o ritmo é diferente e com o auxílio do teclado consigo uma combinação de liberdade e aproveitamento do fluxo de pensamento que é motivadora. Os períodos vêm e vão sendo organizados em sequência para que em um segundo momento consiga estruturar, dar um alinhamento dentro do projeto do livro, retirar, acrescentar. O computador ajuda-me para que chegue atentamente ao local que meus pensamentos direcionam quando planejo as linhas do livro, é um facilitador também por ser de tranquila locomoção, posso levar o trabalho para qualquer parte e fazer de qualquer momento um contributo para a construção da minha literatura. Os rascunhos, na poesia, acontecem no papel, até que o texto esteja adequado, e no computador quando é prosa, pois escrevo e lá mesmo já vou reescrevendo ou editando posteriormente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio muito e gosto também de conversar, colher. Se uma frase em um filme ou letra de música me despertam interesse, conservo aquele primeiro momento e invisto nele em algum caderno. Tenho alguns cadernos cheios de momentos como esse, um minuto imenso que se desdobra em horas, dias, semanas, meses. Gosto de olhar as pessoas nas ruas e imaginar versos para elas, frases, estórias fantásticas ou desfechos esquisitos. Penso a todo momento na chance de sair da caixa e luto diariamente para não me esquecer disso. Procuro cultivar hábitos saudáveis na escolha de meus hábitos saudáveis, mesmo que isso só faça sentido para mim. Gosto de ouvir poesias, o tom, a respiração, os silêncios. De vez em vez também obrigo-me a zerar e reiniciar tudo, como se tivesse a chance de começar de novo, faço isso quando permito-me esquecer um pouco do mundo: uma janela para a chuva na mata, no mar, uma tarde sem fazer nada ou dias sem leituras, sem filmes, sem conversas, sem espelhos. A criatividade é uma força ainda sem domínio, há apenas o facear desse desejo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou e ainda vai continuar a mudar é a minha maneira de relacionar-me com o mundo, a forma como ele afeta-me ou como sirvo também de contributo para a sua transformação. A literatura é uma permissão de entendimento e crescimento que a espiritualidade concebeu para que caminhássemos. Aos que se aventuram por essa direção são reservadas as alegrias da compreensão, da aceitação, mas principalmente da luta. O meu processo de escrita mudou porque eu mudei também, o amadurecimento nos anos faz com que os estudos sejam somados aos experimentos vividos e assim a produção literária ganha muito mais com tudo isso. Aos primeiros textos dedico a sua importância como parte do caminho, sem eles não teria chegado até aqui. E continuo nessa meta, pois sem as limitações que possuo hoje e o seguir para superá-las, não haveria chance de um futuro próximo em constante crescimento, progressão. Um olhar cada vez mais calmo sobre o que passou e os olhos abertos para o tempo ordeiro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever romances, o que as escolhas feitas ainda não me permitiram girar a roleta para que chegue a hora ideal para isso. Não me arrependo, sou feliz com elas. Nos próximos anos finalizo alguns ciclos e chego a esse objetivo. Além disso, quero escrever poesia para sempre, esse é o meu projeto principal na literatura, conhecer cada vez melhor o meu tempo, a vida ao redor e tecer uma rede de afetos com versos e livros pelos anos. Todos os livros que leio, em determinado momento, quis muito ler, pois a cada dia a fila das leituras aumenta consideravelmente com os livros que adquirimos e com os que desejamos adquirir. Em algum momento do ano aquele livro chega e a leitura é sempre esperada e estimada. Começo o que posso terminar e leio o que me motiva para viver, assim equilibro a física e a metafísica dos meus dias.