Thiago Ponce de Moraes é poeta, tradutor e professor, autor de “Dobres sobre a luz” (Lumme Editor, 2016, finalista do Prêmio Jabuti).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De uns três meses para cá, inicio meus dias meditando. Nada muito extenso: algo como 15/20 minutos de prática. Ancoro-me em mim – o que me ajuda a estabelecer uma relação de abertura com os outros; mesmo com o radicalmente outro.
Nos dias em que não dou aula pela manhã, após meditar faço alguma atividade física (tenho praticado Muay thai, por exemplo, entre outras atividades). Os tempos atuais exigem corpo e mente sãos para a manutenção da alegria – tão fundamental contra o fascismo e contra a barbárie; contra a dormência que o cotidiano nos impõe a todos.
Essa é a minha rotina matinal – que não envolve uma rotina de escrita formal. Após tudo isso, começo a trabalhar. Sempre ouço música enquanto trabalho – Bach embalou minha tese de doutorado, por exemplo. O assim chamado trabalho, por sua vez, é sempre muito difuso, incluindo afazeres acadêmicos (preparação de aulas, correção de atividades), cumprimento de burocracias institucionais as mais variadas, resposta a e-mails, tradução de poesia, leitura de livros que chegam, entre outras coisas mais ou menos esporádicas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho uma hora preferida ou em que trabalhe melhor.
Na verdade, para mim quase tudo que faço é trabalho – ou se constitui no que virá a ser meu trabalho: que, em última análise, é o trabalho do e no poema. Conversar com alunos, orientar pesquisas, ler um livro, me corresponder com poetas daqui e de outras partes, fazer uma trilha, olhar para o mar ou perceber como os pássaros passeiam os céus ao longo do dia etc.: tudo isso constitui, para mim, o que entendo por trabalho. Atenção e escuta plenas.
O que não quer dizer, por outro lado, que eu trabalhe muito, embora esteja sempre trabalhando. Quanto às atividades mais conexas à concepção tradicional de trabalho, dou aula nos três turnos em dias variados. Quando estou com alguma tradução por fazer, costumo trabalhar durante o dia prioritariamente. De toda forma, o horário não se apresenta como alguma coisa relevante nessa dinâmica.
Não tenho ritual de preparação para a escrita senão o estar atento às coisas do mundo, à passagem do dia, à respiração. Estar presente. Como em Celan, ainda: ferido de realidade e em busca de realidade. De algum modo já forjando nesse estar presentea potência de presença que o próprio poema apresenta, a potência de presença que o poema faz irromper – intempestivamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo de maneira bastante dispersa. Meus livros de poemas vão se espaçando cada vez mais temporalmente, dando notícia da minha lentidão: 2006, 2010, 2016 – e eu não tenho ainda perspectiva de publicar um quarto livro, embora o esteja escrevendo já há alguns anos (outros projetos menores, no entanto, plaquetes, pequenas seleções, saem de modo um pouco mais regular, mas não tanto, como forma de encadear esse espaçamento).
Passo longuíssimos períodos sem escrever um verso sequer. No começo era uma espécie de preocupação essa demora (que, por muitas vezes já há algum tempo, é mesmo um deliberado adiamento) da escrita. Depois, apesar da morosidade, entendi que era assim que seria. Me interessa desaprender a mão que escreveu os últimos poemas antes de começar um novo ciclo.
Nunca me obrigo a escrever, aliás. De alguma forma, o que pede para ser escrita é a própria escrita. Não tenho meta, nem projeto qualquer público, nem, ainda, vislumbro uma recepção x ou ydo trabalho. Isso não quer dizer que eu ignore essas dimensões de interação com um livro de poemas (ou com a escrita em geral) – apenas quer dizer que isso não me condiciona a nada. Em outras palavras, sinto-me bastante livre para escrever conforme o tempo do poema me exija, assim como conforme a forma do poema me exija nesse tempo.
Às vezes, por outro lado, depois de um longo período afastado da escrita, acontece de eu escrever um ciclo inteiro de poemas em poucos dias. Foi o caso dos 22 poemas escritos em diálogo com fotografias da Francesca Woodman, ainda não publicados. Chama-se, a propósito, Espacelamentos. Me parece que algo vai amadurecendo nesse tempo de silêncio – que busco cultivar mais e mais.
Me sinto bastante acolhido, de todo modo, nesta formulação de Auden: “Aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema. Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última revisão num novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita, como mencionei de certa maneira acima, é dispersivo. Assim é também com a escrita ensaística, que é outro gênero em que escrevo com ainda menor regularidade.
No caso da poesia, estou sempre anotando imagens e sonoridades aqui e ali. Às vezes um poema nasce para sustentar uma fricção específica da língua; para fixar um gesto, um instante. Raramente – para não dizer nunca – meus poemas nascem de ideias estabelecidas e estabilizadas a priori. Acredito que, pelo contrário, nasçam dos poemas as ideias.
Uma das poucas certezas que tenho é a de que a maior parte dessas notas que escrevo vai acabar se perdendo enquanto tal, mas, de algum jeito, vai comparecer na ambiência geral que rege (ou melhor: que é regida) pelo ciclo de poemas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como eu escrevo pouquíssimo, não tenho esse tipo de problema. Já tive um certo receio, especialmente logo após o lançamento do meu primeiro livro, de não vir mais a escrever (como nas palavras de Auden que citei).
Hoje em dia estou tranquilo quanto a isso, ainda que sempre que eu vá escrever qualquer coisa (como as respostas a essa entrevista, por exemplo, que tanto demorei a retornar) eu busque fazer com todo o empenho, com toda a dedicação. A escrita, mesmo quando não se trata de poesia, demanda cuidado e comprometimento. E é assim que gosto de entregar meus textos, seja um e-mail, seja um artigo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O poema começa a se gestar muito anteriormente à escrita prontamente. Até vir a ser escrito, vir a exigir que se escreva, o poema já passou por inúmeros filtros e revisões. Hoje tento escrever só aquilo que me parece necessário, daí que escrevo cada vez menos. Se for mera repetição da minha própria mão, dos meus próprios traços, não me interessa. Da mesma forma, se for mera diluição da voz de outros, sem tensionamento, descarto igualmente antes mesmo de vir a escrever.
No entanto, apesar de todo esse processo anterior à ida do poema para a página, sim, eu sempre reviso exaustivamente aquilo que escrevo. Tenho uma preocupação extrema com o ritmo do verso, de modo que a leitura distanciada me ajuda a surpreender o que pesa, para usar o vocabulário de João Cabral, não só formal e imageticamente, mas também sonoramente. Esse exercício de revisão me leva ao cúmulo de ter uma série de poemas memorizados.
Quanto à partilha prévia à publicação: costumo mostrar para alguns poetas que admiro e a quem confio a leitura. Recebo também inúmeros trabalhos de outros poetas, o que me alegra muitíssimo. Deixa ver a confiança que têm na minha leitura – e isso me honra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de escrever os poemas primeiro no papel. Mas as notas estão, muitas vezes, no Evernote (um aplicativo de celular). Então o processo já é híbrido, de certa maneira. Não tenho qualquer purismo quanto a isso, embora prefira escrever à mão a primeira versão do poema – tem a ver com a própria velocidade da escrita, que eu acredito impactar no poema. Já escrevi trechos extensos de poemas diretamente no celular também ou no computador, embora não seja minha prática mais rotineira (se é que se pode falar em “rotina” no meu caso).
No meu último livro, aliás, usei tradutores de código binário, de código morse e de Qr-code para compor alguns poemas. Usei também, para escrever um soneto que fala sobre ilegibilidade e intraduzibilidade, o Google Tradutor – com essa ferramenta fui capaz de traduzir um mesmo verso para diversas línguas obscuras que eu não conheço, lidando também com a noção da inteligibilidade em geral. Estou sempre experimentando com outras linguagens, no sentido ampliado do termo. Me interessa a interferência e o adensamento da ilegibilidade e da intraduzibilidade no poema.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Vêm da observação das coisas, dos gestos, das relações. Vêm da atenção, como disse lá no início, e da escuta atentas. Vêm das leituras, muito fortemente. Minhas maiores fontes de imagens e sonoridades são a leitura de romances, de poemas, de ensaios; mas também de telas, de paisagens, de rostos. Estou sempre escavando esses lugares.
Não acho que o que esteja em jogo na escrita de um poema é a criatividade, então não penso muito sobre isso. Em poesia, gosto de ler trabalhos que desafiam o gênero, que experimentam com a linguagem, que lidam de forma particular com o verso. No fim das contas: que não tomam como dada e já estabelecida a forma do poema.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meus poemas eram mais elípticos, mais curtos e mais herméticos, creio. Passei a trabalhar a elipse, a extensão do poema e o hermetismo de uma outra forma com o passar do tempo, distendendo mais esses índices, esgarçando o corte, a síntese, o fechamento.
Muitas temáticas permanecem, muitas palavras. A vontade de experimentação com a linguagem, a exploração visual da página, o ritmo, a investigação de uma sintaxe inusual etc. são coisas que permaneceram no horizonte de pesquisa poética, mesmo que sob intervenções distintas ao longo do tempo.
Não diria nada, na verdade, pois à época me disseram o que eu tinha que ouvir. Tive muita sorte – muita sorte mesmo; além de alguma ousadia, no auge dos meus 20 anos – por ter contado com leituras precisas e generosas de poetas que vêm influenciando a maneira de se pensar poesia no Brasil desde que começaram a produzir suas obras. O mais interessante é que são poetas muito diferentes entre si, com trabalhos muito singulares.
Leonardo Fróes, com quem mantenho correspondência até hoje, leu vários dos meus primeiros poemas, alguns dos quais viriam a integrar o livro Imp., de 2006. Ele sempre refletia sobre o tema da voz poética, da dicção, e falava com muita delicadeza sobre isso comigo. Foi a primeira vez que pensei sobre as ideias de voze dicção, e desde então sigo explorando essas questões.
Augusto de Campos, ao ler meu primeiro livro, me escreveu o seguinte, no fechamento de uma generosa carta: “Não se aprece demais. Mas continue.”, com essas exatas palavras – e com esse exato jogo homófono que diz sobre duas coisas fundamentais: não ter-se em tão alta conta – isto é: não se levar tão a sério – e ter calma, tranquilidade. Penso que venho seguindo bem esses dois conselhos, além de ter de fato continuado.
Já Ferreira Gullar foi mais assertivo, menos condescendente com meu primeiro livro, e disse uma coisa que me fez refletir: “A impressão que tenho é que você se importa mais com as palavras do que com a emoção e, no meu modo de ver, o poema tem que tocar as pessoas. Pense nisso.”. Foi um puxão de orelha, embora ele tivesse ressalvado no início que “cada poeta tem sua maneira de enxergar a poesia”. De fato, eu me importo (e me importava, então) muito com as palavras, o que para ele devia soar como uma racionalização excessiva do poema. Sem cair na dicotomia razão/emoção, creio que eu tenha passado a adensar mais isso a que ele chamou emoçãoem sua mensagem, fazendo-a coexistir com meu apreço pela exploração radical da linguagem.
Além disso, tive a sorte de ter como leitor o refinadíssimo escritor e professor Marcus Alexandre Motta. Ele foi a pessoa que me apresentou, logo no início da graduação, poetas que me acompanham até hoje: Celan, Mallarmé, Eliot, entre tantos outros. E, com toda a gratuidade, lia semanalmente os meus novos poemas e tecia comentários críticos. Dessas conversas nasceu meu primeiro livro, foi uma fase intensa de amadurecimento da escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu não costumo fazer projetos. Na verdade, eu detesto projetos, projeções, quando se trata de escrever (até projeto de pesquisa, projeto de tese etc. eu acho uma coisa excessiva e arcaica no sentido ruim da palavra). Não consigo escrever sob encomenda, ainda que seja uma demanda minha. Especialmente para a poesia, cercear seus limites antecipadamente é algo que não faz qualquer sentido para mim. É como querer dizer algo antes do poema.
No meu caso, é sempre o conjunto de coisas que se vai escrevendo que dá notícia de que aquilo deve continuar por tal ou qual caminho. É assim que tem surgido o último trabalho: alguns poemas vão aparecendo com uma tônica, com uma linguagem, com uma série de imagens que criam uma espécie de rede – ou pelo menos de fio. Nesse sentido, quero seguir escrevendo poemas para o livro atual – Celacanto.
E, sobre a última pergunta, nunca pensei a respeito. Ainda mais tendo em vista o débito que temos todos – e que nunca será pago – com a vasta biblioteca do mundo.