Thiago Nagafuchi é doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu geralmente gosto de acordar tarde. Em conversa recente com uma professora da Unifesp que é especialista em sono, descobri que sou um potencial vespertino extremo, que são, segundo ela, pessoas que funcionam muito bem noite adentro – deal with it com o mundo que funciona das 9 às 17 –, e tem o melhor sono no período da manhã. Ou seja, eu literalmente começo o meu dia dormindo. Portanto, quando posso, deixo meu corpo ir despertando aos poucos pela manhã. Geralmente levanto da cama entre 9 e 10 horas, preparo um café da manhã que é sistematicamente reduzido a torradas com manteiga e a um copo de leite. Quando inspirado, tomo um iogurte com granola – o desjejum é a minha refeição menos preferida do dia, então, raramente tenho qualquer inspiração para inovações ou sofisticação. Passo um café (provavelmente estarei, neste momento, sendo o menos ecológico do mundo consumindo uma cápsula de café numa dessas máquinas de fazer espresso. Ou, provavelmente, deixo para tomar um coado num café perto de casa que eu adoro frequentar). E tomo um banho – saindo ou não de casa, o banho já se tornou um ritual diário de começar o dia. E visto uma roupa confortável. E, finalmente, abro o computador para começar os trabalhos. Não tem hora, não tem ordem e não tem obrigações peremptórias logo cedo.
Trabalhar fora sempre foi um fardo por conta da necessidade de ter uma manhã que se inicia cedo e que deve ser produtiva e – azar o meu ser vespertino – bem-humorada, mas, evidentemente, eu me esforço para executar esta tarefa hercúlea. Não posso dizer o contrário: a manhã é meu momento de caos e tento fazer dele o melhor possível – é o momento-berço das ideias, é o momento em que vou tentar desenhar o resto do dia, ou seja, sempre com sono, as manhãs são bons momentos de reflexão sobre a minha experiência de estar aqui no mundo com vocês. Respondendo: não tenho uma rotina matinal. Preferia dormir, mas uso esse momento para ter ideias e pensar sobre o dia e sobre a vida.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus momentos mais produtivos são os finais de tarde e as noites. São nestes momentos que eu sinto que estou no ápice da minha concentração e da minha criatividade. A escrita é como a chuva: ela tem a probabilidade de acontecer. Tem dias que meu app mental indica que existe 95% de probabilidade de escrever (bem/mal), mas não surge sequer uma palavra; tem dias que é o contrário, parece que tem areia no cérebro mas basta sentar e digitar (não necessariamente nesta ordem). Se não chove letra (ai que clichê, Thiago), eu posso passear pelas redondezas e juntar inspiração. Não sei se é um ritual, porém talvez seja o mais próximo de ritual de escrita que eu deva ter; algo que costumo fazer quando está difícil de escrever é ler. Pego alguns livros de uns autores que tenho grande estima e leio uns parágrafos ou uns capítulos vagarosamente, engolindo palavra por palavra, estudando suas estruturas textuais e absorvendo as palavras que desconheço para tentar melhorar meu vocabulário. Escrever, a meu ver, é isso: um trabalho constante de buscar inspiração e, também, um trabalho material, palpável, de usar os mecanismos disponíveis para criar os próprios textos. É fatal, quanto mais você pratica a leitura e a escrita, melhor você produz textos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu costumo escrever em períodos concentrados, procurando aproveitar ao máximo momentos criativos e produtivos. Dificilmente estabeleço metas porque elas só servem para me deixar nervoso. Evidentemente, os tais prazos finais são o que mais se aproximam de “metas” pessoais. Contudo, escrever também é um exercício e, por mais difícil que seja escrever em alguns momentos, eu tento deixar alguns registros que, na pior das hipóteses, serão deletados. Durante o meu doutorado, eu fiz alguns cursos de escrita criativa com a escritora Márcia Denser – e mesmo que o objetivo não fosse necessariamente uma escrita técnica, ela me ajudou muito a produzir o texto da minha tese. Primeiro porque as oficinas me inspiravam muito, uma vez que a maioria das aulas eram práticas, e ter que escrever sobre um tema específico com um tempo restrito e no meio de outras pessoas (todos liam os próprios textos em voz alta para os outros) é um baita exercício de escrita! Segundo porque tínhamos muitas referências de outros escritores e histórias de escritores, algo que, vá lá, humaniza o processo criativo e mostra que escrever é possível. Terceiro porque esse fluxo constante de trocas entre os colegas é essencial: às vezes achamos nosso texto o máximo ou medíocre, mas outra pessoa pode nos indicar onde ele pode ser melhorado, o que deve ser continuado e o que não, e como dar uma cara de começo-meio-fim àquele monstrinho textual.
Posso dar dicas? Acho que sim.
Dica 1: leia muito, faça exercícios de escrita e compartilhe seus textos com quem estiver aberto a lê-los e te ajudar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Isso é um labirinto. Nunca sabemos se já tomamos nota suficiente e quando parar de ler a teoria e coletar dados e começar a escrever a bendita tese. Quanto mais lemos e anotamos, maior fica o labirinto e mais difícil fica de sair dele. Infelizmente, o que mais temos de concreto no doutorado é o período que devemos terminá-lo: temos quatro anos para desenhar uma pesquisa, aplicá-la, pegar os resultados e escrever sobre todo este processo. É um pouco cruel, mas não sei quais seriam as soluções. Como vem mostrando algumas pesquisas e vem falando a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, a saúde mental dos pós-graduandos não anda muito bem. São tantos fatores que influenciam! Desde um orientador omisso ou cruel, passando pelos valores das bolsas e falta de perspectiva, até acontecimentos pessoais imprevistos que podem abalar as estruturas de qualquer um – eu perdi minha mãe na semana da minha defesa de doutorado, não sei nem como descrever em palavras o quanto foi difícil.
É preciso ponderar um pouco. Algumas pesquisas, com maior controle dos resultados, como em algumas áreas das Exatas e das Ciências Biológicas, podem se encaixar muito bem no período estipulado de um doutoramento. Algumas pesquisas, talvez aquelas das Ciências Humanas, que dependem de variáveis mais complexas, como os seres humanos, podem ser complicadas de fazer num período de campo de um ou dois anos. É preciso avaliar muito bem o projeto junto ao orientador para que ele resulte em algo tangível dentro do tempo fatalmente estipulado. Portanto, é muito importante que o tempo seja usado a seu favor. Use-o para arredondar o projeto, para o campo e um tempo para, efetivamente, escrever sobre a pesquisa. Siga conselhos do tipo “não deixe para escrever na última hora”, que é um clichê repetido aos quatro cantos e que alguns orientadores gostariam de transformar em faixas e placas e distribuir pelos campi, tenha em mente que escrever é um trabalho árduo que leva muito tempo e dedicação.
No meu doutorado, em que meu campo foi o digital (redes sociais, fóruns na internet, etc), eu tive impulso de ficar em “campo” o tempo todo até o momento final, muito fácil porque bastava ter um celular em mãos conectado à internet. Não faça isso, estabeleça um momento para terminar seu campo, deixe pelo menos o período de um ano para a escrita.
Dica 2: reserve pelo menos um ano do doutorado para a escrita da tese.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sendo bem sincero, não lido muito bem, fico ansioso, mas se encontrar alguém que genuinamente gosta destes momentos, me avise. O bloqueio criativo, o tal do writer’s block, é algo bastante real e é tema de muitos textos, filmes e música. Não é por menos: é impossível ser produtivo o tempo todo, ser criativo sempre que necessário e, pior de tudo, corresponder às próprias expectativas e às expectativas dos outros que são como um fantasma debaixo da cama prestes a agarrar nossa perna. Quando a coisa parava de vez, eu ia ler um livro, passear ou fazer programas sociais. Depois rolava uma culpa, mas, spoiler, você vai conviver com ela o tempo todo: o tal do “devia ter ficado em casa escrevendo”. Talvez devia mesmo, talvez ia ser tempo perdido e ia só aumentar a ansiedade – não tem como saber, portanto, sempre que puder, anule esta culpa. Como? Estabeleça momentos em que você pode fazer o que quiser, dê pequenos prêmios para si mesmo: escrevi uma página hoje? Então vou ao cinema ou vou fazer uma maratona de série. É difícil, mas é importante tentar viver com mais leveza e aproveitar os momentos (lá vem mais clichê) porque depois essas coisas passam e, sim, vão fazer falta! Pergunte para qualquer um sobre o vácuo que vem depois da defesa.
Dica 3: não encare a escrita como um fardo; tente fazer as obrigações com leveza.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu vou revisar meus textos infinitamente até entregá-los. E eles jamais vão me parecer prontos; chega um momento que eu vou dizer para mim mesmo “cansei, vou entregar assim mesmo” e vai assim mesmo. Eu sempre tento compartilhar o que eu escrevo com outras pessoas porque, como eu disse numa das respostas, é um momento importante de troca e, no final das contas, nenhum texto longo é escrito sozinho. Confie em alguém que vai ter saco para ler teus textos sempre que você sentir que estão prontos.
Entretanto, vou contar um segredo: um texto jamais está pronto. Ele é só um resultado possível dentre inúmeras possibilidades.
Dica 4: apare os pelos do nariz do seu texto, esconda a sujeira para debaixo do tapete e abra a porta para que ele receba as visitas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso todos os recursos que estão ao meu alcance; sejam analógicos, como cadernos, bloquinhos, lápis e canetas; sejam digitais, aplicativos de anotações e de fotos no celular, softwares de edição de textos, dicionários digitais de vocabulário e sinônimos, e por aí vai. Consigo facilmente navegar por esses recursos; mas ainda tenho uma queda por anotações e cadernos – acho que não vão sair de moda nas próximas temporadas. Contudo, eu vou criando uma cornucópia de arquivos digitais e cadernos que me deixam muito confuso. Tenho uma dezena de cadernos e de arquivos em Word e eu nunca sei onde está aquela danada anotação que eu preciso: tenho que abrir um por um. #martírio
Dica 5: organize todo seu material digital e/ou analógico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu tento ler muito. Sempre vou atrás de novos escritores e sempre navego muito por diferentes estilos textuais: procuro ler poesia, ficção, textos acadêmicos e começar vários livros ao mesmo tempo. Se não tiver obrigação, não leio algo que eu não gosto, se um livro me desagrada nas primeiras páginas eu largo sem dó – uma vez li que é próximo de trezentos a média de livros que a gente lê numa vida, então não tem razão gastar um dos nossos trezentos com algo que não nos move. Tem texto acadêmico que dá vontade de jogar no liquidificador e depois jogar tudo pela janela, mas fazer o quê, se tiver de ler, tem que ler. Eu tive a sorte de ter escolhido um tema no doutorado que fazia muito sentido para mim, então quase tudo que eu li criou algum significado e foi útil depois para a construção da tese.
Dica 6: faça o que faz sentido para você e te move de alguma maneira.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Acho que minha escrita está ficando cada vez mais lapidada e sinto que tenho cada vez mais facilidade de escrever e transformar meu pensamento em algo que faça sentido para mim e para os outros. Para minha pessoa escritora da tese, daria a seguinte dica:
Dica 7: continue. O tempo talvez melhore sua escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Escrever um romance. Eu já comecei, na verdade. Porém, não sei se quero continuar ou começar algo do zero. Escrever é um ato violento e egoísta, muita gente quer escrever porque quer receber elogios e afagos e amor. E fazer parte do seleto grupo de gente que pode dizer “eu escrevi um livro”. E, sério, tudo bem. Se quiser escrever um texto para deixar na gaveta do esquecimento, nem perca tempo.
Agora, escrever também é um ato de violência contra si mesmo. É abrir as próprias vísceras, pegá-las todas na mão e exibir aos outros: veja, este sou eu. Portanto escrever ser tão difícil, não é à toa. A destruição, contudo, abre possibilidade para novas formas de experimentar a realidade e, então, escrever também é um ato terapêutico; ao mesmo tempo violento, é um ato de amor.
Última dica: escreva.