Thiago Krause é professor de História do Brasil Colonial na Unirio.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante semana, eu geralmente acordo às 5:10, desço com os cachorros, vou na academia das 6:00 às 7:15, tomo banho, café da manhã e respondo e-mails. Depois começo a trabalhar – o que nem sempre envolve escrever, como veremos abaixo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não é exatamente um ritual, mas gosto de ler vários jornais antes de começar a escrever, embora nem sempre seja possível. Eu não tenho um horário preferido: a verdade é que depende muito mais da disponibilidade de tempo e dos prazos. Eu acabo sempre organizando o tempo de escrita em torno das outras obrigações profissionais e domésticas mais urgentes, ainda que essa não seja a estratégia mais recomendável. Tendo a escrever em horário comercial durante a semana, a não ser que esteja com prazos apertados, pois nessas circunstâncias às vezes tenho que ir até de madrugada, embora não o faça com tanta frequência como quando estava cursando doutorado ou estudando para concursos. No fim de semana, porém, é frequente que eu trabalhe o dia inteiro, inclusive para acompanhar minha esposa, que tem trabalhado muito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu prefiro concentrar esforços, talvez porque escrever seja algo sofrido para mim. Então já passei meses sem redigir uma linha por estar fazendo pesquisa ou, quando trabalhava em três universidades e ministrava sete disciplinas diferentes, por estar dando aulas demais. Também não tenho metas: não sou organizado o suficiente e nem tenho tanta força de vontade. Assim, o que acaba por determinar o quanto escrevo são os compromissos que assumi (e dos quais geralmente acabo por me arrepender), porque detesto perder prazos – embora isso aconteça, e com bastante frequência. Em consequência, é muito mais difícil para mim terminar um projeto se não houver uma data estabelecida por outra pessoa: por isso não tenho submetido artigos para periódicos acadêmicos nos últimos anos, pois sempre vou postergando para as próximas férias. Espero que nessas eu consiga, porém!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu prefiro fazer todo o processo de pesquisa antes: transcrição de fontes manuscritas, fichamento de fontes publicadas, construção de bases de dados, elaboração de tabelas e gráficos, etc… Só depois parto para a escrita, até como um estratagema para adiar ao máximo o contato com a aterrorizadora página em branco no processador de texto. Nem sempre, porém, isso é possível, especialmente quando não tenho muita clareza sobre aonde quero chegar. Nesses casos, me forço a começar e ver o que surge – geralmente é muito ruim, mas depois eu mudo, pois se esperarmos algo bom logo de cara nunca sairemos do lugar. No final das contas, como dizia Michel de Certeau em “A Operação Historiográfica”, a escrita é parte integrante do processo de pesquisa, pois nos força a organizar nossas ideias e a colocar novas questões. Então, por mais que eu ache que terminei de pesquisar, sempre acabo voltando aos dados para tentar responder a novas indagações.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim, esses são três problemas separados. Comecemos pelo mais importante, o medo. Eu tenho uma relação paradoxal com a minha produção acadêmica: sou arrogante e acredito profundamente na minha capacidade intelectual, mas ao mesmo tempo tenho um medo constante de que todos (principalmente eu mesmo) descubram que sou uma fraude. É a síndrome de impostor que afeta (quase) todo mundo, e imagino que nunca vá passar, então já me conformei com ela: faço o meu melhor e espero que seja o suficiente.
Em segundo lugar, a ansiedade de trabalhar com o longo prazo: eu tendo a pensar em metas menores. Na minha principal empreitada de longa duração até aqui, a tese de doutorado, eu focava nos capítulos e escrevia um por vez, porque é algo muito mais manejável do que a tese como um todo. A minha dificuldade com projetos longos desde que defendi, há mais de quatro anos, é a ausência de um prazo que me force a começar e terminar: por isso, ainda não consegui transformar a tese em livro, ainda que vários capítulos dela tenham sido publicados em periódicos e livros e eu continue trabalhando no material. Agora começarei dois projetos concomitantes de média duração (cerca de dois anos) e utilizarei a mesma estratégia da tese: definir prazos para terminar capítulos, de modo a cumprir a deadline final, que será determinada pelo contrato com a editora em um caso e pela colaboração com um coautor em outro. Acho que é a única forma de não ficar desesperado, ou melhor, de me manter em um nível de desespero que me force a trabalhar em vez de me paralisar.
Por último, a procrastinação. Para mim, esse é um problema menor, porque em geral significa lidar com outras obrigações profissionais como preparar aulas ou corrigir provas, ou então ler jornal e tuitar. Sei que não consigo trabalhar de forma ininterrupta, e acho até que são essas paradas que mantém são para continuar trabalhando.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu releio meus textos diversas vezes e a cada vez faço mudanças, ainda que em geral pequenas: sempre há problemas a corrigir, uma frase que poderia ficar mais clara, um argumento que poderia ser melhor desenvolvido, uma construção que poderia ficar menos desajeitada, um dado que poderia ser melhor explorado, uma repetição que poderia ser eliminada… Eu até acho que deveria ser mais radical na revisão, reestruturando completamente o texto, mas raramente o faço, geralmente por falta de tempo. A revisão é, na verdade, concomitante à escrita, pois ao iniciar e terminar o dia de trabalho gosto de reler tudo o que escrevi até então, para garantir que o texto esteja coeso. Como eu disse acima, escrever é uma etapa da pesquisa, a qual é parte da produção de conhecimento. Como esta é sempre um processo em curso e incompleto, o mesmo acontece com a pesquisa e a escrita. Consequentemente, eu não entrego um texto quando ele está pronto, mas sim quando o tempo disponível acabou, ainda que eu saiba que ele poderia – e deveria! – ser muito melhor. Há, porém, um ditado acadêmico anglo-saxônico que vale para toda escrita acadêmica: “Uma boa tese de doutorado é uma tese terminada. Uma excelente tese é uma tese publicada. Uma tese perfeita não é nada disso” (isto é, nem terminada nem publicada).
Ao mesmo tempo, a produção de conhecimento é um processo social e não individual. Por isso, a opinião de outras pessoas é essencial para mim. Desde o ensino médio, meu pai era meu primeiro leitor (e revisor, coitado), e assim continuou até o mestrado – e mesmo depois, ainda que hoje eu raramente peça, porque tenho pena dele. Em seguida, minha esposa também passou a ser minha primeira leitora, por mais que ela ache meus textos muito chatos. Além dos orientadores, sempre pedi para amigos e colegas lerem minha produção. O grupo de pesquisa do meu orientador foi importante como espaço de discussão dos meus textos, assim como são hoje meus colegas na universidade. Parcialmente, quero que leiam o que escrevo porque sou inseguro: busco validação, desejo que me digam que o texto está bom, posso entregá-lo e não passarei vergonha. Mais importante, porém, é que outros olhares são essenciais para apontar problemas que não conseguimos ver, trazer leituras que não fizemos ou já esquecemos, apontar argumentos falhos porque não os desenvolvemos o suficiente, etc. Por isso, gosto de ter o máximo de leitores antes de finalizar um trabalho, embora nem sempre isso seja possível por causa dos prazos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Desde pequeno minha letra sempre foi horrível, de modo que evito ao máximo escrever à mão, porque eu mesmo tenho dificuldade de decifrar meus garranchos. Meus alunos sempre têm que vir me perguntar o que escrevi em suas provas e/ou trabalhos. Ainda mais importante, o computador torna mais fácil o processo de revisão, pois facilita trocar seções de lugar, deletar trechos, corrigir erros e acrescentar reflexões.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei se tenho Ideias com I maiúsculo: em verdade, eu diria que sou o contrário de original e nunca tive um pensamento inovador na vida. É duro admitir, mas já me conformei com isso, mesmo porque a originalidade não é muito necessária para o sucesso no mundo acadêmico. Como há muito se diz, o trabalho de pesquisa é 99% transpiração e só 1% inspiração – e se transpirar bastante, dá pra sobreviver sem o tal 1%, mesmo que você jamais vá ser um dos grandes na sua área. Grande parte do trabalho intelectual institucionalizado e rotinizado produzido nas universidades não passa de aprofundamento empírico do que já se sabe ou desconfia, levar ideias já existentes às suas últimas conclusões e conectar reflexões de subcampos e áreas diferentes. Foram esses os caminhos que segui em minha trajetória, com resultados razoáveis. Se não sou nem serei um revolucionário que quebra paradigmas, creio que contribuo um pouquinho para o avanço a passos de tartaruga do conhecimento.
De qualquer maneira, eu diria que um aspecto essencial para ter ideias – mesmo as com i minúsculo como as que tenho – é ler muito, e amplamente. Eu infelizmente tenho lido pouca ficção – ainda estou na metade do primeiro livro esse ano! – mas costumava devorar vários por mês quando era mais novo, e hoje leio vorazmente jornais e revistas (especialmente o que em inglês se chama de long form journalism, isto é, textos mais longos) e artigos de economistas, cientistas políticos, filósofos e sociólogos sobre os temas mais variados, além de livros sobre temas relacionados à minha área de especialização, que defino de maneira bem abrangente como História Atlântica (América, Europa e África) da Primeira Modernidade, isto é, os século XVI a XIX. O meu conselho é, então, ler o mais amplamente possível, porque é isso que abre a nossa mente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Toda tentativa de olhar pra trás arrisca cair no que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de ilusão biográfica, isto é, a imposição de uma coerência artificial a uma trajetória. Eu acho que, de início, eu tinha uma tendência muito comum a querer citar o máximo de autores para demonstrar erudição, mesmo que não fossem necessários. Acho que melhorei – ou talvez não: será que eu precisava mesmo citar o Bourdieu aqui? De qualquer forma, acho que o principal conselho que tenho vale para o meu Eu atual, pois ainda não consigo segui-lo: a escrita não precisa ser só informativa, pois também pode ser esteticamente agradável, pois envolver os leitores aumenta a eficácia do seu argumento e garante que você será mais lido. Afinal, desde a Grécia Clássica a retórica está ligada à verdade, como enfatizou o historiador italiano Carlo Ginzburg (ele mesmo filho de uma importante romancista e um dos grandes prosadores da historiografia recente). Ou, como colocou o grande historiador antifascista Marc Bloch, “Evitemos retirar de sua ciência sua parte de poesia”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São tantos… Eu tenho uma dúzia de ideias de livros, alguns que precisariam de muita pesquisa empírica, outros mais ensaísticos e exigiriam a leitura de uma bibliografia imensa, e ainda outros que seriam livros de síntese para estudantes, professores do ensino básico e grande público. Adoraria, claro, que todos fossem escritos por alguém antes, mesmo porque provavelmente nunca vou ter tempo de escrevê-los. Então vou listar três, na esperança que alguém roube as ideias (que não são, considerando quem as emite, originais):
A Escravidão no Brasil Holandês (1624-1654): a partir da extensa documentação holandesa, quase toda já digitalizada e muito mais rica do que a produzida pelos portugueses na mesma época, investigar como os neerlandeses lidaram com a escravidão, como enxergavam a relação dos luso-brasílicos com os escravizados e como o cativeiro na região de Pernambuco se diferenciava e se assemalhava à escravidão em outras áreas na mesma época, como Rio de Janeiro, Bahia, Virgínia, México, Peru e Barbados. O problema é que nesse caso eu ainda precisaria aprender holandês…
Elites, Desigualdade e Estado no Brasil (c. 1530 – presente): um ensaio focado na longa duração sobre as múltiplas formas como a política foi utilizada para reproduzir diferenças socioeconômicas, do período colonial até a Nova República, de modo a discutir temas centrais para o Brasil como desigualdade, racismo, repressão, corrupção e crescimento econômico.
O Brasil no mundo: uma história comparada e conectada – uma série em três volumes, do qual eu seria o autor do primeiro, que versaria sobre o período colonial e buscaria contrastar a experiência brasileira com a de outras regiões para refutar mitos sobre a “herança ibérica” como a origem da corrupção ou a ideia da “democracia racial” baseada numa mestiçagem excepcional. A inspiração aqui é o grande livro de Thomas Bender, A Nation Among Nations (2006).