Thereza Christina Rocque da Motta é poeta, tradutora e editora da Ibis Libris.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo entre 7h e 9h, às vezes, mais tarde, dependendo da hora que fui dormir na véspera e do meu cansaço acumulado. Sento para responder emails e pendências que ficaram do dia anterior, que em geral se estendem pelo dia todo. Começo por vezes a fazer revisões, ou monto orçamentos para livros a serem editados, e dou andamento a finalizações de editorações de livros novos. Minha escrita não se encaixa nesses horários. Eu escrevo paralelamente a tudo o que faço. É mais forte do que eu. Sempre interrompe o que estou fazendo para poder ser escrito. Posso escrever a qualquer hora, dentro ou fora de casa, à mão, no computador, ou no celular, em cadernetas, blocos, folhas de papel, até em guardanapos. Mas, como editora, atendo primeiro ao trabalho editorial e o meu autoral acontece, ou pode acontecer durante o dia, tarde ou noite, ou não. Há tempos não tenho escrito, mas tenho cinco livros inéditos e uma tradução pronta para serem publicados. Acabei de lançar um livro infantil que esperou 20 anos para ser lançado por falta de ilustrações. Finalmente, chegou a vez de ele sair. Lancei A Fada das Pedrinhasem 16 de fevereiro de 2019. Quando estou escrevendo um livro meu, todo o tempo livre é dedicado a ele, ou o livro cria espaço e tempo para ser escrito. Em geral, trabalho sem sentir que estou trabalhando. Posso ficar horas escrevendo ou revisando que não me canso. Só paro quando eu termino.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite ou de madrugada. Não há ritual. Eu tenho que estar inspirada, ou com alguma ideia me perseguindo há algum tempo. Há livros que brotam, ou surgem do nada. Sou tomada pelas ideias pelo tempo que for necessário para escrevê-lo, horas, dias, semanas, meses ou anos. Cada livro tem uma história diferente. Um processo diferente, uma dedicação diferente. Já fiz um livro inteiro (com 22 poemas) em três horas e meia. Há outros que levei dois ou três anos para concluir. Já escrevi três livros paralelamente. Começaram em momentos diferentes e terminaram ao mesmo tempo, na mesma semana. Escrevi As liras de Marília(2013) em dois meses, mas levei nove meses do início da escrita até a publicação. Ele tinha um tempo para ser feito e um momento certo para ser terminado. Quando estou escrevendo um livro, escrevo os poemas em sequência, vários num mesmo dia, ou em dias seguidos, até terminá-lo. Pode levar mais ou menos tempo, mas ultimamente, podem ser semanas ou meses. O mais puro amor de Abelardo e Heloísafoi escrito em menos de 15 dias. Muitas vezes ler algum livro faz com que eu escreva, mas pode ser uma música, uma conversa, uma frase dita ao acaso, um filme. Capitufoi escrito por causa de uma frase dita por Domício Proença Filho, que também publicou um livro em defesa de Capitu. Escrevi-o em poucas semanas, o meu primeiro livro em prosa. Outras vezes, me disciplino para escrever toda semana (as Lições de sábado) e faço isso há anos, desde 2011. Publiquei dois livros com esses textos e o terceiro já está pronto. Nem sempre me inspiro ou tenho tempo para escrever sistematicamente nos últimos anos, mas já houve época em que eu escrevia todos os dias. Meu livro Albasurgiu dos poemails que escrevi entre 2000 e 2001 e enviava para um grupo de amigos por email. Quando eu deixava de escrever, alguém reclamava por não ter recebido ainda seu “poema diário”, ou me dizia que tinha uma pasta para guardar todos os meus poemas, até que me exigiram que lançasse um livro com os meus poemails. Foi o que fiz em 10 de julho de 2001, no meu aniversário de 44 anos. Foi o 3º livro da minha editora, Ibis Libris. Cada livro tem uma motivação diferente. Escrevi A vida dos livrospara explicar o processo editorial. Já está no Vol. 2. Tenho livros inéditos. Mas nem sempre tenho tempo ou dinheiro para publicá-los. Por isso ainda estão esperando. Durante uma tradução que fiz de um livro sobre a Grécia Antiga, escrevi poemas sobre os gregos, lindos. Já escrevi a pedido de um amigo uma peça de teatro que tivesse dois homens em cena. Saiu “Heféstion e Alexandre”, que publiquei numa antologia de inéditos. Já publiquei mais de 25 livros meus, já perdi a conta. Escrever é um hábito. Eu fiquei 13 anos sem publicar, mas não sem escrever. Escrevi menos, mas fui escrevendo e guardando. Quando voltei a publicar, passei a lançar um livro a cada três anos, depois um livro por ano, depois três a cada ano, em 2018, publiquei quatro. Tenho que ter cuidado para não lançar livros demais. Os amigos não “aguentam”. Um livro infantil veio quebrar a regra da poesia. É um conto de fadas. Ah, bom…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já escrevi todos os dias, esparsamente, ou em períodos determinados, quando estava trabalhando determinados livros. Eu trabalho com temas. Escolho um tema e escrevo sobre ele. Quando começava a escrever poemas novos, só conseguia continuar se tivesse escolhido um título para o livro, aí eu sabia sobre o que estava escrevendo. Esses são os poemas avulsos. Mas há os livros temáticos, quando eu escolho um assunto, pesquiso tudo sobre ele, e começo a escrever, ou começo a escrever e pesquiso para poder continuar a escrever. Entre os poemas avulsos (mas sob um título em comum) estão (desde meu primeiro livro) “Joio & trigo”, “Areal”, “Sabbath” e “Alba”. Não tenho uma meta de escrita diária, mas cumpro uma meta de número de poemas por livro. Cada livro tem que ter no mínimo 22 poemas, ou 44, no máximo. Eu não admito que alguém não consiga ler um livro meu inteiro. Estou falando dos leigos. Dos que não têm hábito de ler poesia. Para conseguir que leiam tudo, o livro não pode ser longo. O máximo de leitura que um leigo aguenta são 44 textos. Menos vai parecer pouco, mais, ele não vai conseguir ler tudo. Então quem tem o hábito de ler consegue ler meu livro de poesia várias vezes, o que é uma alegria, e aquele que não tem o hábito de leitura consegue ler pelo menos uma vez o livro inteiro. Eu quero que qualquer um consiga ler meus livros inteiros, por isso eles têm 22 ou 44 poemas. Por que 22 ou 44? Porque esses são números mágicos, números mestres, eu invoco a energia desses números para dentro do livro. Nunca falha. Uma bobagem querer publicar um livro, por exemplo, com 200 poemas. “Tudo que escrevi na vida”, como alguns principiantes fazem. Quem vai ler? Um livro para ser lido tem que ser bom e curto. Assim vão querer comprar o próximo. Eu passei a fazer isso a partir de “Sabbath”. “Areal” tem 15 poemas apenas, e acharam “pouco”. Então, resolvi fazer “Sabbath” com 22 poemas. “Alba” tem 44. “Sabbath” é dividido em duas partes. Uma com um poema longo e outra com 21 poemas curtos. Alguém o chamou de livro “demo”, mas os 21 poemas foram escritos ao longo de 60 minutos, por isso chamei a segunda parte de “Livro das horas”, pois escrevi enquanto esperava uma amiga para assistir a um filme. Como cheguei uma hora mais cedo, resolvi escrever enquanto ela não chegava. E claro dediquei o livro a ela. O primeiro poema foi musicado por um amigo para a sua graduação na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro. Eu fiquei invocada porque um engenheiro chamou meu livro de “demo”, mas foi meu primeiro livro popular. Todo mundo que leu começou a me dizer que tinha gostado do poema da página 21, ou 25, ou 30. Pequenos, eles eram fáceis de ler, e todo mundo leu tudo. Meu objetivo tinha sido alcançado. Depois vieram os livros temáticos que comecei a escrever a partir de 2001. “Marco Polo & a Princesa Azul” foi o primeiro. Este livro levou três anos para ser finalizado, e foi dividido em duas partes. A primeira são os poemas dirigidos a Marco Polo, um dos homens que admiro na História, a partir das mulheres que ele conheceu. Eu parti da seguinte pergunta: “Quantas mulheres são necessárias para se fazer um grande homem?” Fiz uma lista de homens que eu admirava e comecei a estudar a vida deles, para saber de onde veio a inspiração para se tornarem grandes. Marco Polo conheceu muitas mulheres e tinha um olho para elas. É um dos meus livros que mais vende. Sempre se esgota. Tenho sempre que reimprimi-lo. As pessoas se encantam ao saber que ele só voltou da China por causa da Princesa Azul. Minha teoria estava provada. Ele voltou do Oriente por causa de uma mulher, para trazê-la para se casar na Pérsia. Só por causa disso, ele, o pai e o tio tiveram permissão para voltarem à Europa depois de 17 anos. Todo mundo ouve falar de Marco Polo, mas desconhece detalhes da vida dele. Eu pesquisei e escrevi 13 poemas sobre ele e mais 22 na segunda parte, que são da Princesa Azul para Marco Polo: afinal, ela só saiu de casa para se casar longe do seu lar, levada pelos mercadores da família Polo. Foi o auge de sua vida, pois ela morreu dois anos depois de se casar com o Khan da Pérsia, o sobrinho-bisneto de Kublai Khan. O resto está no livro, podem ler.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa pode ser anterior, ou concomitante à escrita. Aconteceu com As liras de Marília, que publiquei em 2013. Eu li uma biografia sobre Maria Dorothea Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, e imediatamente comecei a escrever as liras dirigidas a Tomás Antônio Gonzaga, dando voz a ela, que havia morrido 160 anos antes, em 10 de fevereiro de 1853, sem que eu tivesse consciência disso. Só depois de concluir os poemas, na fase em que estava preparando o prefácio e o posfácio do livro que percebi a coincidência da data de um dos poemas com o da morte de Marília. Nesse poema, ela responde a alguns versos de uma das liras de Gonzaga dizendo o mesmo em sentido contrário. Evidente que usei o trecho do poema dele como epígrafe para o poema dela, só que não o escrevi intencionalmente. A coincidência foi proporcionada pela inspiração. Eu realmente estava escrevendo “atuada” pelo tema. Eu não tomo notas. Guardo tudo de cabeça, vou consultando de volta os livros, se necessário, mas não faço notas sobre isso. Se o fizer, perco a inspiração. Não consigo escrever a partir de notas. Não é difícil começar, porque a escrita começa automaticamente e vai acompanhando a pesquisa. Fiz isso com Capitu(2015). Escrevi o primeiro capítulo com minha memória afetiva da leitura, mas tive de reler Dom Casmurropara continuar escrevendo para não trair a história e inventar o que não está no romance. A minha narrativa acontece em tempo real do romance, da juventude à idade adulta, em que Capitu fala como se fosse num diário, falando para si mesma sobre tudo o que lhe aconteceu desde a infância até a separação de Bentinho. Foi um livro difícil de escrever sem chorar. Muitas vezes eu lia alguns dos 22 capítulos e minha voz embargava. O prefácio e o posfácio de “As liras de Marília” eu escrevi de cabeça. Eu até fiquei doente durante esse período, achei que não iria conseguir lançar o livro no aniversário de Marília, em 4 de outubro de 2013, mas melhorei a tempo. A dor de Marília estava presente ao longo do processo de preparação do livro. No dia marcado para o casamento de Marília e Gonzaga, em 30 de maio de 2013, fui até Ouro Preto para tirar fotos da cidade onde ela viveu para ilustrar o livro, com meu fotógrafo, Vitor Vogel. Coincidentemente, era dia de Corpus Christi e havia uma procissão. Mas como nada é por acaso, o registro da procissão foi feito e nesse dia escrevi a última, a 22ª lira, para encerrar o livro. Foi uma missão, mais do que uma escrita apenas, resgatar a voz de Marília.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando, ao contrário, apesar da pesquisa, eu não consigo começar um trabalho, ou a inspiração não vem, eu sei que não estou pronta para escrever sobre aquilo, e espero pacientemente, até amadurecer o texto dentro de mim. Foi o que aconteceu com “Heféstion e Alexandre”. Eu queria escrever sobre Alexandre, o Grande, comprei vários livros, li todos, assisti ao filme, vi ilustrações, esculturas, mas eu não sabia como conciliar os poemas com a vida dele, até quando um amigo, que foi o meu diretor da minha peça de teatro, “Breve anunciação” em 2013, me pediu um texto para ser dito em cena por dois homens. Imediatamente, me veio o estalo sobre o ponto de vista de que eu deveria escrever os poemas. Heféstion foi um grande amor de Alexandre, amor no sentido mais puro, não apenas sexual, mas amor de homem para homem, um amor humano, tanto que Alexandre morre logo depois de Heféstion, mas eles se identificavam tanto que se confundiam, pareciam-se, cresceram e lutaram juntos, era um amor absoluto, e foi sobre isso que escrevi, um amor independente de gênero. Tudo o que eu havia lido sobre Alexandre nessa hora brotou como os mais belos poemas de amor, o amor em si, como foi ensinado a Alexandre por Aristóteles, que foi seu mestre. Foi o que aconteceu também com “O mais puro amor de Abelardo e Heloísa”, depois de 40 anos com a história deles dentro de mim desde os 13 anos de idade quando assisti à peça de teatro sobre eles e de ter lido tudo que li sobre esta tragédia real, ocorrida no século XII, quando ele foi castrado pelo tio de Heloísa depois de terem tido um filho, foram separados e se reencontraram 15 anos depois e sublimaram o seu amor para continuarem juntos trabalhando dentro da Igreja. Um dia, um belo domingo, essa história emergiu em forma de poemas epistolares, então escrevi 12 poemas em que eles continuam esse diálogo amoroso infinito, um amor que transcendeu todos os limites e empecilhos da época. Como em Capitu, em que depois de 40 anos de eu ter lido o romance aos 15 anos (é um belo tempo de urdimento), emergiu a fala dessa personagem, fazendo a sua própria defesa, de como e por que nunca teria traído Bentinho. Entre os livros temáticos, somente Odysseus & O livro de Pandorafoi feito sem essa consciência de dar voz às mulheres em torno de um homem importante, no caso Ulisses, ou uma personagem feminina importante na vida de um desses homens conhecidos da História ou da literatura. Assim escrevi As mulheres em Shakespeare, escolhendo algumas de suas principais personagens femininas, para que falassem sobre seu próprio destino nas peças do Bardo, e Josefina, a voz além do Imperador, monólogo teatral ainda inédito, porém publicado numa antologia de textos inéditos. Os temas históricos me fascinam, então a pesquisa precede o livro, ou é feita ao mesmo tempo em que escrevo os textos do livro, ou eu aguardo que ela venha, tendo feito a pesquisa ou não. Outros homens esperam, como Colombo, sobre quem escrevi ainda poucos poemas e Leonardo da Vinci que ainda não comecei, mas sempre vou comprando livros sobre ele ou a Mona Lisa, que provavelmente será sua narradora. Há muitas mulheres e homens fascinantes na História e na literatura, e ambas se misturam muitas vezes e nunca sabemos o que vai assomar e nos tomar de assalto para escrever sobre eles. Não tenho medo de não corresponder às expectativas de ninguém. Não escrevo para ninguém e ao mesmo tempo escrevo para todo mundo. Escrevo para que esteja escrito. E publicado. Uma coisa não anda sem a outra. O trabalho dura o tempo que durar. Já escrevi por anos sobre um assunto, e esperei ainda mais tempo para poder publicar o livro, e eles foram publicados. Demorou mas valeu a pena. Foi assim o meu livro de poemas sobre futebol (que foi vendido para o PNBE 2012 e que ninguém apostava nele), foi assim com A Fada das Pedrinhas, que esperou 20 anos para poder existir como livro. Futebol e mais nada: um time de poemas foi meu patinho feio, ninguém acreditava nele, só eu. E vendeu 30.000 exemplares. Está em todas as bibliotecas de escola no Brasil inteiro. Foi como um prêmio para mim. A Fada acabou de sair. E já estou pensando na volta da Fada das Pedrinhas. Os livros temáticos sobre Sheherazade, Nefertiti, Guinevere e Elizabeth Barrett Browning estão prontos esperando o momento de serem publicados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o texto tantas vezes quantas forem necessárias e só paro quando eu não mudar mais nada depois de uma leitura. Foi assim desde o meu primeiro livro, “Joio & trigo” e até hoje eu não mudo nenhuma vírgula. Um livro tem que ser uma escultura acabada. Já mostrei meus poemas para algumas pessoas no começo, mas hoje não faço mais isso. Minha aprovação hoje vem dos likesno Facebook. Também não publico poemas inéditos. A maior besteira é publicar livros de poemas que ninguém conhece. Ninguém compra. As pessoas só compram livros em que elas conheçam os poemas. Foi o que aconteceu com meu “Areal”. No dia do lançamento vendi 100 livros. As pessoas chegavam para autografar e diziam: “Está aqui aquele poema que eu gosto, não é? Se não estiver, eu não compro o livro”. A partir de então nunca mais lancei um livro inédito. Eu divulgo e publico na internet todos os poemas que escrevo. Ficam lá para que todo mundo possa ler, e me pedem que eu publique em livro. Aí compram o livro, porque já conhecem os poemas. É a melhor sensação do mundo. Contrariando a minha regra dos 22/44 poemas, publiquei duas antologias de inéditos com 200 páginas. Eu tinha 20 livros inéditos e não iria publicar 20 livros separados jamais. Então juntei todos em dois volumes com 10 livros cada um, em ordem cronológica. Mas havia um truque: eles estavam separados dentro, para que pudessem ser lidos separadamente, facilitando a leitura. Deu certo. Uma amiga leu um deles inteiro, Horizontes, durante um fim de semana. 200 páginas de poesia, certo? O primeiro volume é Foliasque lancei ao mesmo tempo em 2014, na festa de 14 anos da Ibis Libris, porque faço tudo isso ao mesmo tempo. Eu não sabia que teriam esses títulos, eu não sabia que iria lançar em dois volumes, apenas vi que tinha 400 páginas de poesia para publicar. Eu não iria fazer um livro de 400 páginas de poesia de jeito nenhum, então decidi fazer dois livros separados, com capas distintas, e títulos distintos, então o título “Intemperanças”, que seria o título do volumão de 400 páginas, virou o título da minha antologia de melhores poemas publicados mais 11 inéditos que lancei em 2016 e em 2014 lanceiFoliase Horizontesao mesmo tempo, com 400 páginas de poemas inéditos. Vendeu assim mesmo. Em seguida, lancei Pandorapublicando meus 10 primeiros livros escritos nos 30 primeiros anos de carreira literária, de 1980 a 2010. Olhe o contrassenso: em 2014, publiquei 20 livros inéditos que escrevi em 15 anos, de 1999 a 2014. Algo aconteceu comigo aí, não foi? Eu simplesmente escrevi o dobro. Pandora(2017) são 10 livros em 30 anos. Foliase Horizontessão 20 livros escritos na metade do tempo. Touché! Em Pandora, como em Intemperanças,duas antologias poéticas, tive o prefácio de Marcílio Farias, para quem mostrei meus poemas e foi a única pessoa de quem recebi a crítica, a melhor que eu poderia esperar. Meus prefaciadores dos primeiros livros (Claudio Willer, Carlos Felipe Moisés, Olga Savary, Astrid Cabral, Dora Ferreira da Silva, Carlos Burlamaqui Köpke e Luiz Carlos Lisboa) foram maravilhosos para apresentar meu trabalho, mas depois dispensei apresentadores. Voltei atrás apenas ao conhecer Marcílio Farias de quem valeu a pena ouvir a crítica. O restante eu sabia o que estava fazendo depois de tantos livros publicados. Tanto que, quando fiz a seleção de “Intemperanças”, estranharam eu mesma ter escolhido os meus melhores poemas. Mas se eu mesma não souber quais são, quem saberá? Vejo pela reação dos outros. Eles me dizem onde eu acertei. A leitura ampla e irrestrita tem me ajudado a fazer meus livros. E minha leitura crítica também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sempre escrevi à mão desde os 10 anos de idade quando comecei a escreveu meus diários até os 40 anos. Tenho 30 anos da minha vida escritos nesses diários. Quando surgiu o computador, deixei de fazê-los, o que é uma lástima, e também de escrever cartas, porque o computador ocupa todo o nosso tempo. Porém notei que o texto escrito à mão é diferente do texto escrito no teclado com a energia da tela. Algo surge diferente. É mais rápido. A escrita manual sofre alguns percalços, e o poema escrito na tela sai quase pronto. Ou talvez seja apenas a prática. Aprendi a datilografar aos 15 anos, e quando passei a usar computadores em 1992 na Editora Três, trabalhando na redação do Guinness Book, o Livro dos Recordes, como Chefe de Pesquisa foi muito mais fácil. Aos 19, datilografei os 100 poemas que tinha escrito desde os 15, quando escolhi a poesia como meu modo de expressão. Hilda Hilst leu esses poemas e disse que eu era poeta. Minha mãe veio me dizer isso depois de ter levado meu caderno espiralado para ela ler. Isso queria dizer que eu era poeta. Imagine o meu susto. Publiquei meu primeiro livro aos 22, mas só depois de rigorosa revisão. Ao publicar “Joio & trigo”, em 1982, eu tinha 90 poemas escritos, e publiquei os 35 que escrevi depois, que passei sete meses revisando. Devo essa lapidação ao meu prefaciador, Claudio Willer. Depois fiquei 13 anos sem publicar. “Areal” surgiu quando voltei a publicar, em 1995, apenas 15 poemas recosturados e colados dos fragmentos que restaram de outros poemas escritos. Só eu sei por onde passa a costura. Fiz 1.000 exemplares desse livro e mal encontro um deles na Estante Virtual. Quem tem não larga. Tenho que fazer a 2ª edição dele. Aliás, meu primeiro livro, “Joio & trigo”, está na 3ª edição. Poesia vende. Aos poucos. E vende sempre. Mas só vende se estiver à venda. Por isso eu publico. Então, pode acontecer um poema escrito à mão hoje, como foi o primeiro poema de “Marco Polo & a Princesa Azul”, escrito numa lanchonete depois de atravessar correndo a rua antes que eu esquecesse o poema, no centro da cidade. E quem falava ali? Não era uma das mulheres da vida de Marco Polo, mas ele mesmo, se despedindo da mãe. Uma semana depois, no Café Odeon, na Cinelândia, veio o poema da mãe se despedindo dele. Eu sempre anoto em cada poema o dia, a hora e por vezes o lugar onde foi escrito. Para que eu possa me lembrar depois do meu estado de espírito. É uma arqueologia do poema. Algo para eu saber.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Boa pergunta. As ideias vêm e vieram de onde vieram, às vezes, ao acaso, ou por causa de alguma leitura, de um poema, de um filme, de uma música, de um personagem histórico, de uma história, um conto, uma pessoa (!!!), há homens e mulheres que servem de musas zanzando por aí sem ninguém saber, há pessoas que inspiram outras, há poemas que provocam poemas, como os de Hilda Hilst, uma das minhas escritoras favoritas. Sempre que leio um texto de HH, eu escrevo um poema. Há situações que inspiram poemas. Há imagens, quadros, paisagens (escrevi um poema andando de carro por uma estrada no Colorado), ou temas, datas, efemérides. O único hábito que cultivo para escrever é ler. O resto vem por decorrência natural de quem está habituado a escrever para se expressar. Eu não queria escrever romances, nem contos, escolhi a poesia como modo de expressão. Já escrevi contos, alguns, já escrevi histórias infantis, já publiquei crônicas (resultado direto do Facebook), mas tenho certeza de que nunca escreverei um romance, com exceção de um que é epistolar, portanto, já está escrito. Eu só tenho que arranjar tempo para me dedicar a ele. Há biografias que quero escrever e esses eu não tenho disciplina para fazê-las, nem tempo disponível por causa da editora. Há muitos livros alheios para serem feitos no momento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que sei hoje foi tudo que aprendi para chegar aqui. Recebi conselhos preciosos de algumas pessoas no começo, li ABC da Literaturade Ezra Pound, li grandes poetas em português, francês e inglês. Li grandes escritores e tive excelentes professores de literatura, de história, de francês e inglês. Tive a sorte de ter pais leitores. De conhecer grandes escritores. Aprendi que para escrever poesia é necessário cortar palavras. A economia da escrita é tudo. Tive gente que me canetou. Todo bom poeta precisa ser canetado para aprender a cortar seus poemas. Aprendi com eles a editar meus poemas e a cortar excesso de palavras. Aprendi a cortar a mim mesma. Ler é fundamental para se aprender a escrever um bom texto, seja em prosa ou em poesia. Mas é preciso ler autores brasileiros. As traduções são falhas e as pessoas não sabem mais escrever em bom português. Vejo isso nos textos que recebo dos mais diversos autores, estreantes ou publicados. Se não li mais livros foi por pura falta de oportunidade. Gostaria de ter lido mais do que já li. Muita coisa mudou no processo de escrita, porque eu aprendi o processo. Eu internalizei como se deve escrever. No vestibular, meu professor de redação me disse: “Você tem o hábito de escrever e escreve como Cecília Meireles e Jorge de Lima”. Olhe que elogio! Eu aprendi com Cecília e Jorge de Lima. Li grandes autores brasileiros, o que é fundamental para se aprender a escrever bem em português. Li Manuel Bandeira e Mario de Andrade, li Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles, li Adélia Prado e Carlos Drummond de Andrade, li José Lins do Rego e Fernando Sabino. Li Clarice Lispector que me ensinou tanto quando conheci o seu “Um aprendizado ou O livro dos prazeres”. Foi este livro que me fez escolher a poesia como minha forma de expressão. Eu trilhei o caminho certo para me tornar uma escritora, uma poeta, uma advogada, uma tradutora e finalmente uma editora. Descobri que amo os livros pelo que são. Amo escrever por escrever. Amo as palavras, porque são palavras e há tanto delas que não sabemos. Amo as línguas. Ensinei inglês por 20 anos. Traduzo há 30 anos. Escrevo há 40 anos. Sou poeta há quase 50 anos. Tenho 60 anos de literatura entranhada em mim, desde os primeiros contos de fada que ouvi de meus pais. É uma existência dedicada aos livros e à escrita.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Mal comecei a biografia do meu tataravô Prudente de Moraes, 1º presidente civil eleito por voto direto em 1894, que governou o Brasil até 1898. O único incorruptível. E ainda não comecei a biografia da minha avó, Therezinha Camargo, neta desse presidente, que foi prefeita de Limeira e deputada estadual constituinte em 1934, casada com meu avô, Trajano de Barros Camargo, um dos primeiros industriais brasileiros, falecido em 1930. Ainda não fiz meu livro sobre Nossa Senhora Aparecida, que comecei e não terminei. Não fiz o romance epistolar do meu pai e sua ex-noiva, que sem eu saber serviu de base para a minha peça teatral “Breve anunciação”, que esperei 12 anos até estrear em 2013, em Niterói, com Jean Cândido Brasileiro e Helena Hamam nos papéis de meu pai e Iza, dirigidos por João Corrêa, em sua estreia como diretor de teatro. Quando penso no livro que gostaria de ler e que ainda não existe, penso no livro que gostaria de publicar e que ainda não existe, pois se ele não existe é porque ainda não foi escrito, ou apenas não foi publicado, mas está em alguma gaveta em algum lugar. Toda boa história pode virar um livro, já disse Mozart. Há muitos bons livros a serem escritos e a serem publicados e fui responsável pela existência de muitos deles. Eu inflacionei o mercado de poesia no Brasil. Fiz leituras de poesia durante 15 anos. Publico poesia minha e alheia há muito tempo, traduzo poesia, o que é uma tarefa árdua, mas recompensadora. Traduzi os 154 sonetos de Shakespeare que publiquei em 2009, e os de Elizabeth Barrett Browning (Sonetos da portuguesa), ainda inéditos. Traduzi uma longa lista de poetas que estão em meu blog de tradução (HTTP://therezachristinamotta.blogspot.com), e verti meus próprios poemas durante nove anos, até aprender a escrevê-los direto em inglês, e publiquei um assim (Chiaroscuro: Poems in the Dark, 2002) e outros estão ainda inéditos, mas estão em blog. Esse negócio de esperar para publicar é um cansaço, coloco logo em blog, e azar se não aceitam poemas publicados na internet em concursos de poesia. O melhor prêmio é ser lido. E meus blogs são. Se não ganho prêmios é porque não concorro neles. Acho premiação lindo, mas são muitas panelas a vencer. Se eu tiver mérito, será dado. Entre livros de poesia, antologias poéticas, crônicas, peça de teatro e traduções já publiquei 60 títulos. Algo surpreendente para quem nunca pensou em fazer isso. Dá vontade de escrever como cada livro meu foi feito, pois tem a história do livro, como ele foi criado, que faz parte do nascimento do livro.