Theo G. Alves é escritor, poeta e fotógrafo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa um tanto diferente do que eu gostaria. Geralmente pulo da cama em horários diversos a cada dia para atender os compromissos de trabalho que não costumam estar relacionados diretamente à produção literária. São atividades administrativas na biblioteca de um Instituto Federal de Educação e como professor de Língua Portuguesa em uma escola.
Costumo dormir pouco e sem horários regulares, então o dia literalmente explode no despertador e me joga para fora da cama de manhã cedo.
Raramente consigo fazer coisas como escrever ou ler logo depois de acordar, embora sonhe com manhãs tranquilas, sem despertadores, de cafés demorados com um livro sobre o colo, vendo o mundo em espera por um bom tempo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como os dias são muito corridos, tento usar todo o tempo possível, o que inclui os intervalos, para a literatura. Isso não significa necessariamente apenas escrever. Tenho a impressão de que sou escritor em tempo integral, embora esteja trabalhando paralelamente em outras coisas, afinal tudo o que penso, vejo, ouço ou digo me dá a sensação de que faz parte do que compõe meu trabalho como escritor.
Uma pergunta que me fazem na escola, o comportamento das pessoas na biblioteca, as sensações, as emoções provocadas por um livro ou um filme, uma música, as filas nos caixas de supermercado, a rua, sempre a rua, tudo faz parte dessa preparação. Caminhar ou dirigir acompanhando o ritmo da cidade são acontecimentos que vão emprestando também ritmo à minha literatura.
Assim, costumo acumular muitas ideias antes de escrever. Se penso um verso, por exemplo, vou trabalhando nele na memória pelo tempo que achar necessário até que chegue a hora de parar e escrever. Às vezes me esqueço de algumas passagens, o que compreendo como parte do processo e não me causa angústia. Na hora de escrever, o ritual é bem simples: o computador no colo ou na escrivaninha, um bloco de notas sem distração para a poesia, uma página do Word para prosa. Tudo sempre nas mesmas proporções e configurações, porque se a tela estiver dez por cento maior que o habitual, algo me trava e não escrevo.
A presença de barulho ou silêncio também depende do que escrevo. Não sei, por exemplo, escrever crônicas em silêncio. Precisa haver música ou algo na tv, um barulho na rua, qualquer coisa que permita estar dentro e fora do texto ao mesmo tempo. Se escrevo poemas ou contos, preciso de silêncio, de ausência do mundo externo. Por isso costumo escrever no fim da noite e começo da madrugada. É a minha hora de silêncio, de concentração, algo quase monástico, contemplativo. Também é minha hora favorita para alimentar o que precede a literatura. Filmes, por exemplo, são muito mais profundos quando o mundo está em silêncio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo muito e com frequência. Trabalho bastante com projetos e sempre dedico o tempo produzindo literatura para eles, ainda que não sinta a obrigação de escrever diariamente. Mas quando finalizo os projetos em que estou trabalhando, costumo ter hiatos, fases em que me dedico muito mais à fotografia ou a outras atividades que não tenham relação direta com a palavra.
De tanto escrever e me dedicar à literatura, há momentos em que não posso mais ser escritor, em que a palavra silencia diante de mim e eu também não consigo ouvi-la. Mesmo a ideia de um músico que gosto cantando alguns versos me incomoda, então ouço Miles Davis, Coltrane, Ron Carter, Ibrahim Maalouf…
Depois de um livro é normal enfrentar esses tempos. Antes me angustiava, tinha a sensação de que jamais conseguiria escrever de novo. Mas o tempo passa e a gente vai ficando mais experiente, mais tranquilo e menos dramático. Agora, quando a palavra quer silêncio, eu ouço música instrumental, fotografo, vejo os livros de fotografia da Vivian Maier ou do Duane Michals, faço pão e me interesso profundamente pelos processos de fermentação, olho pelas janelas por horas acompanhando as luzes mudando enquanto a noite se aprofunda e os sons que se movem pelas ruas, a musculatura cansada das casas.
Esses momentos de silêncio entre projetos são essenciais para que a maneira de dizer as coisas se modifique em mim.
Então, depois desse tempo, retomo as rotinas. Volto a dedicar todo o tempo possível, que quase sempre é menos do que eu gostaria, à literatura. Mesmo que sejamos só a folha em branco e eu num impasse, estou escrevendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita começa bem antes de me sentar para escrever. Normalmente, há bons períodos de estudo, de leituras e muitas notas mentais. São poucas as notas que escrevo e quando o faço são tópicos muito abertos e cheios de possibilidades.
Quando consigo pensar e dar certo desenho aos projetos literários, penso muito sobre as coisas que quero escrever. Busco imagens na minha cabeça, na memória, em sensações que possam estar ligadas ao tema.
Então só paro para escrever de fato ao perceber o caminho para esses projetos, quando os vejo mais claramente. A partir desse momento, é um bocado de trabalho, de suor, dedicação e intensidade. É quando costumo ficar mais distante das outras coisas, mais quieto porque a passagem do que criei mentalmente para o papel é um tanto delicada, cheia de obstáculos, de angústias e ansiedades na busca pela forma do que quero dizer da maneira mais precisa para ser dito.
Depois de escritos, os textos esperam. Ficam numa dessas gavetas virtuais enquanto outras partes do projeto vão sendo escritas. Quando termino de escrever o que penso ser suficiente, é hora de imprimir os textos, porque para mim a literatura ainda se encontra muito no papel, na pele das palavras, como diz o xamã yanomami Davi Kopenawa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em mim há sempre uma insegurança que respeito. Essa insegurança é uma sensação de fracasso iminente que me obriga a lutar contra essa possibilidade e assim o esforço para construir um bom texto é algo quase brutal.
Quando os projetos são mais longos, há sempre a necessidade de lidar com a vida que corre paralelamente a ele. Porque a vida é exigente e os boletos são a única constante da vida. As obrigações domésticas, as filas, os problemas pequenos, a arraia miúda mesmo do cotidiano. A realidade alimenta a literatura, mas o excesso de realidade massacra o escritor.
Com a idade e os projetos, fui aprendendo a respeitar os momentos em que a palavra não me aceita, porque essa é mesmo a relação: eu busco a palavra, batalho por ela uma luta duríssima e, às vezes, mesmo quando venço, ela se recusa a mim. Porém, eu preciso ter sempre claro de que eu sirvo à palavra, não o contrário.
Então espero. Se ela não vem, eu me alimento de outras coisas porque sei que a palavra respeita a minha solenidade e, quando for a hora, retomaremos nossa lida como deve ser. Uma coisa importante é não forçar o verbo. Às vezes essas travas demoram, me retardam e eu fico à beira do desespero, mas sei que não posso vencer isso à força. Então, ouço uma palavra sob os escombros ou no meio do entulho e me esforço para tirá-la de lá, para resgatá-la, até que me dou conta de que, na verdade, eu é quem foi salvo por ela.
Escrever não é uma tarefa fácil. É estar sempre pela hora da morte, amarrado à linda do trem como naquelas alegorias de faroeste, esperando que a palavra venha me salvar e, embora ela sempre tenha vindo ainda que tarde, sinto muito medo de que um dia ela não chegue a tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso meus textos quase compulsivamente. Depois que os escrevo, espero um pouco e faço uma primeira revisão do trecho isoladamente. Mais adiante, costumo voltar a esses textos sem agendamento. Algo me diz para revisá-los e vou atender ao chamado. Quando o projeto de que ele faz parte está pronto, faço uma revisão rápida e imprimo. Leio tudo no papel, faço as novas e muitas correções, algumas notas e volto ao texto para encerrá-lo.
Enquanto o texto está em minhas mãos está sujeito à revisão e a mudanças.
Costumo mostrar partes do que escrevo para algumas poucas pessoas em quem confio bastante. Falo pouco sobre os projetos antes de colocá-los no papel, então distribuo algumas pequenas pílulas a alguns amigos e colegas de ofício. É bom ter quem se disponha a ler o que escrevemos porque o trabalho com a palavra é um bocado solitário. Então, poder trocar algumas palavras sobre o que está tomando corpo é um alento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de tecnologia, embora não seja um aficionado. Todo ano me prometo comprar um Kindle, por exemplo, mas quando chega a hora desmancho o dinheiro todo em livros impressos. Mas nunca escrevi a mão, ou quase nunca. Não tenho textos rabiscados em guardanapos ou calhamaços de manuscritos.
Quando comecei a escrever, ainda adolescente, eu usava uma máquina de escrever Olivetti que tinha um defeito no carrinho da fita e eu precisava rodá-la com os dedos para que não rasgasse. Uma senhora vizinha nossa e que não fazia uso da máquina a emprestou. Depois passei a escrever no computador. Hoje em dia, raramente tomo notas no celular, por exemplo. Prefiro recorrer à memória, sobretudo porque minha incapacidade de lembrar literalmente das coisas me ajuda a talhar essas notas. Vez ou outra é que rabisco uma notinha no bloco do celular, que na maioria das vezes esqueço de olhar depois.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu escrevo muito por imagens. Aliás, comecei a escrever quando era adolescente porque a literatura era minha única possibilidade para criar imagens. A partir disso, tudo o que me rodeia me oferece as imagens que alimentam meu texto. E tudo ao meu redor me provoca ideias, me convida a pensar e sentir. Desde as ruas nas madrugadas, cheias de cães, gatos e guardas noturnos, vazias de tudo o mais, até as menores coisas que acontecem em casa, na solidão dos dias são possibilidades de literatura.
As outras formas de arte, como o cinema e a música, também convidam a sentir, pensar e escrever. Livros de outros autores também fazem isso. Quando leio Yehuda Amichai, Valter Hugo Mãe ou Alberto Bresciani, por exemplo, me sinto instigado a escrever, a conversar literariamente com eles, ainda que não seja um diálogo tão direto.
E o único hábito que mantenho é o de estar aberto e curioso para o que acontece a todo o tempo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo não mudou tanto ao longo desses mais de 25 anos escrevendo, embora tenha publicado o primeiro livro (sem contar antologias e outras participações em livros) apenas em 2009. Não mudou, mas se tornou mais intenso e menos acidental. Hoje eu consigo trabalhar o texto sem a mesma pressa de antes e o faço de maneira mais profunda e cuidadosa.
Certo pragmatismo, a manutenção de algumas rotinas, esses pequenos rituais como a organização da página e coisas assim, permanecem.
E o que eu gostaria de poder dizer ao escritor de meus primeiros textos é “tenha calma, menino, que o mundo é grande e pequeno demais”. Porque eu tinha um senso de urgência, uma necessidade de abraçar o mundo grande demais, tão grande que não conseguia me perceber muito miúdo em perspectiva diante do mundo.
Era o desejo de escrever tudo e de escolher temas absurdamente grandes, afoito, sedento, embora sempre muito aberto e disposto a aprender, a ler mais, a entender melhor o processo de composição dos autores de quem gostava e ainda gosto.
Hoje eu olho para o que tenho escrito de maneira mais tranquila. Respeito meu tempo e o tempo da palavra. Ouço os conselhos e consigo filtrar bem o que me chega, seja para o bem ou para o mal. Consigo avaliar as críticas sem me ofender ou me deslumbrar por elas, inclusive percebendo o que é pessoal e o que é de fato sobre a obra.
Se eu soubesse aos 15 que chegaria tranquilo assim aos 40 possivelmente teria corrido menos, me preocupado menos. Embora isso talvez me impedisse a serenidade de agora. Está aí um dilema e a prova de que as coisas têm seu tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Na literatura tenho a sorte de ter começado todos os projetos que já desejei, ainda que não tenha conseguido terminar todos eles. Mas sei que os que ficaram no caminho pararam onde tinham de parar e não há arrependimentos. Há péssimos livros que comecei, mas o bom senso me impediu de continuá-los, ao que sou agradecido.
Terminei recentemente de escrever um romance, coisa que julgava impossível durante anos, mesmo tendo a ideia dele comigo por esse mesmo tempo. Sei que quero escrever um novo, mas ainda não sei qual. Quando for a hora, se ela vier, será tempo desse projeto e me dedicarei a ele como é necessário.
Quanto ao livro que gostaria de ler, mas ainda não existe estou tranquilo, pois quero ler e reler o que já está entre nós. Vivemos num mundo que nos permitiu Shakespeare, Jorge Luís Borges, Kafka, Dostoievsky, Fernando Pessoa, Valter Hugo Mãe e João Cabral de Melo Neto, por exemplo, então há muito para aproveitarmos do que já existe. E isso é uma imensa alegria.