Thais Lancman é escritora, autora de “Pessoas promíscuas de águas e pedras” (Patuá).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa cedo, pelo menos mais cedo que o do meu marido. Gosto dessa pequena solidão. Se acordo devagar e enrolo na cama sou atrapalhada apenas pela gata, que consegue ouvir meus movimentos ainda na cama e já começa a miar. Levanto, e aproveito para meditar, por um tempo que varia entre quarenta e cinco minutos a uma hora. Depois, passo um café enquanto lavo a louça e dou uma ligeira organizada na cozinha, ouvindo algum podcast. Continuo com o podcast enquanto tento tomar café-da-manhã sem que a gata ataque o mamão ou o mingau de aveia que eu preparei. Eu costumava ler nessa parte do dia, mas tenho deixado a leitura para outros momentos. O que se tornou imperativo é evitar redes sociais e notícias nesse momento do dia (para tentar também minimizá-las na vida em geral).
Essa é a única parte que posso chamar de rotina. O restante, embora sempre pareça muito igual (eu sentada na minha mesa de trabalho), varia, porque posso estar escrevendo a tese, revisando um conto, cuidando de burocracias da vida, desfrutando de viewing rooms de exposições virtuais, e sinto como se estivesse fazendo coisas completamente diferentes mesmo que visto de fora seja a mesma coisa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Costumava achar que eram as manhãs, quando eu me sinto mais disposta. Mas, no geral, o que tenho percebido é que sou movida a um desespero com um prazo fatal, real ou que eu mesma determinei. Assim se escrevo muito de manhã é porque enrolei e a enrolação prolongada me tirou o sono na noite anterior. Já aconteceu de, depois de um dia de muita procrastinação, pegar um embalo muito bom no fim da tarde, o que acontece porque eu tinha essa mania de “dicas de produtividade” que dizem que mesmo trabalhando de casa é preciso ter horário, rotina, etc. Então esse embalo foi o fim do expediente imaginário chegando. Mas, agora que eu estabeleci tudo isso, me senti confortável o suficiente para romper com essas fórmulas e deixar tudo um pouco mais livre. Sou muito boa com prazos em relação à produção acadêmica e frilas, então fico tranquila para aproveitar os dias de semana para exposições, passeios, ou me dar um descanso quando a cabeça pede. Ao mesmo tempo, nada me impede de trabalhar depois de um jantar na sexta-feira à noite e aos fins de semana, como de fato ocorre.
Não tenho rituais de escrita, mas sei que demoro. Então levanto várias vezes, fico para lá e para cá, organizo arquivos e a minha mesma até que sinto que estou em um humor adequado. Aqueço com alguma coisa boba, às vezes escrevendo e-mails, como que para alongar as mãos, mesmo. Infelizmente, sou dessas que precisa desligar a Internet, bloquear redes sociais e deixar o celular longe para me dar um pouco de paz. Não acho que isso seja um ritual, mas uma organização física, mesmo. Da parte de rituais, procuro mais um estado de espírito para a escrita, quando estou no campo do artístico-literário. Com trabalho, acadêmico ou não, não vejo a necessidade, é simplesmente uma tarefa a ser cumprida. Na ficção, acho que existe algum preparo mental, uma abertura que eu procuro para o que quero escrever, e às vezes vem da própria decisão de escrever naquele dia. Um pouco como a meditação, com a prática você aprende a começar mesmo em dias que parece impossível e os primeiros momentos te inserem em um estado meditativo, e a existência de um método não faz da atividade menos profunda e inspirada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu produzo todos os dias, mas não escrevendo. Acho que tanto a produção acadêmica quanto a literária precisam fermentar um pouco na cabeça ou em rabiscos, pelo menos para mim é assim que funciona e foi um alívio ouvir isso de um amigo depois de me culpar por passar X dias sem abrir o arquivo da minha tese ou algo assim. Assim, não tenho metas de escrita diárias até porque o tamanho do que escrevo varia muito, prefiro a meta de me manter ativa, ou traçar objetivos de médio e longo prazo.
Por muito tempo, eu aprendi a dividir os meus dias entre tarefas, frilas, tese e ficção. Fui aprendendo a virar a chave durante o almoço e quase ser outra pessoa à tarde (isso que eu falei de me sentir sem rotina mesmo que passe todos os dias na frente do computador). É uma alternativa para quando os prazos estão mais apertados. Ultimamente, porém, tenho feito ciclos de uma mesma escrita. Uma semana, ou quinze dias para acelerar um projeto, para finalizar, até.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Com a pesquisa acadêmica, eu faço muitos fichamentos, preferencialmente direto no computador. Transcrevo trechos de materiais lidos na íntegra, com as idéias em capslock logo em seguida, quando sinto que é necessário. Isso me ajuda a não ter que voltar o tempo todo ao PDF ou livro, além de me ajudar na leitura mesmo, principalmente em relação a textos teóricos, pois tenho muita dificuldade em compreender até mesmo autores que, para a maioria das pessoas, são bastante simples. Aí começo a escrever e costurar as citações. Isso tudo eu faço com o programa Scrivever, que tem uma dinâmica boa de alternar entre as páginas de texto, arrastando algo para lá e para cá. Também é bom para conferir porque eu acabo escrevendo as mesmas coisas várias vezes.
No caso dos capítulos da minha tese, não é difícil começar mas sempre tem um momento de pânico por achar que algo vai ficar de fora, como se eu estivesse insegura em relação às minhas notas e fosse acabar esquecendo de algo. Depois, vem o temor de não conseguir colocar tudo em uma ordem que faça sentido. Por isso trabalho em partes pequenas que depois vou aglutinando e ordenando. Ao longo do caminho faço algumas checklists e vou apagando os itens que já produzi, uma coisa redundante mesmo mas que não consigo evitar. Ultimamente, inseri nesse processo uma edição rigorosa. Após a engorda da pesquisa, tenho sentido a necessidade de selecionar o que fica no texto final e desapegar. Sinto a academia carregada do fetiche do número de páginas e, por convicção pessoal, almejo uma tese bastante direta ao ponto.
No caso da literatura, eu não tomo notas, mas faço fluxogramas que me indicam os pontos obrigatórios pelos quais a história deverá passar, sejam eles ações dos personagens, ideias tiradas de músicas ou outros livros, uma cena em que ainda não sei bem o que acontece, o ponto de vista ou a questão formal que imponho à narrativa. No caso de contos, geralmente é uma etapa que prefiro que seja rápida, pois são textos que surgem para mim de uma certa urgência, então acabo optando por escrever e reescrever para trabalhar essas questões. Já em um romance ou narrativa mais longa, posso ficar anos com os fluxogramas, refazendo-os, completando o que acredito serem lacunas. No caso do romance em que estou trabalhando, As máquinas não respeitam ninguém, devo estar na quarta versão, ao longo de pouco mais de três anos.
Acho que tanto as partes pequenas da pesquisa acadêmica quanto os fluxogramas literários servem para que eu possa trabalhar fora de ordem, o que me ajuda muito na meta diária de fazer “alguma coisa”, pois aí há uma parte nova para explorar, e boa parte da pesquisa eu deixo para esse momento também. Se eu tenho uma anotação, como no caso do romance novo, sobre corvos paranoicos ou algo assim, é ao me confrontar com essa parte da história que lerei a fundo sobre a natureza desses animais. Essa parte é instigante pois não é raro descobrir algo na pesquisa que coloca em xeque a história já desenhada, então é como um quebra-cabeças para voltar ao programa inicial, ou o desafio imposto de refazer um pedaço dele sem destruir o resto. Só que não pode ser um quebra-cabeças complicado demais a ponto de me fazer abandonar o projeto, como de fato ocorreu e me levou a novos fluxogramas mais de uma vez.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em relação à produção acadêmica, não vejo a procrastinação como trava e não me preocupo com eventuais bloqueios, porque costumo sofrer com o oposto, um excesso de entrecruzamentos a que parece impossível de dar vazão. Essa, afinal, é a minha aflição com projetos longos, e lido com ela compartimentalizando. A autoconfiança com a minha habilidade em lidar com prazos ajuda no meu otimismo em relação a isso.
Na literatura, lido com a procrastinação entendendo que o meu papel minúsculo no meio literário faz com que ela seja totalmente insignificante. Escrevo no meu ritmo, uma vez que não tenho prazo nem faz diferença para ninguém se eu lançar um livro agora ou no ano que vem. Isso também ecoa nas expectativas, que são apenas as minhas e, feliz ou infelizmente, depois de um trabalho exaustivo com o texto elas acabam sendo atendidas, mesmo que numa vitória após cansativos rounds e não por nocaute.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Varia muito, depende da minha ansiedade, do ponto de maturidade de cada projeto. Não sou das melhores revisoras, pelo menos não quando reviso algo que eu mesma escrevi, mas acho que é assim com a maioria das pessoas. Não sei se escritores gostam de dizer que exaustivamente reescrevem e revisam e eu sou uma das poucas vagais que muitas vezes se auto enganam ou se é mais uma das ideias que muitos repetem dentro de um pacote de expectativas do ofício do escritor. Eu reviso um pouco, o quanto dá, talvez menos que deveria.
O sentir que está pronto para mim é uma mistura de sensações. Geralmente sinto que está pronto dentro do meu horizonte de possibilidades, o que quer dizer que o texto me venceu pelo cansaço. Sinto que está muito bom, com diversas qualidades, e a única possibilidade de melhora é com o olhar exterior adequado. Porém mesmo a leitura crítica, eu confesso que muitas vezes é só um desejo de parabenização. No final das contas, acho que a finalização do texto é um momento ambíguo de frustração com as limitações e surpresa com o que foi alcançado, receio e desejo de reconhecimento pelos pares, cansaço extremo, alívio e desejo de liberar espaço mental com o envio do texto e a falsa sensação de tarefa cumprida que isso causa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até hoje, tudo que publiquei foi escrito direto no computador. Meu único momento “analógico” foi um capítulo problemático da dissertação de mestrado que me levou, em um momento de desespero, a imprimir todo o texto, recortar e organizar os parágrafos sobre a mesa para conseguir organizar as ideias de maneira razoável.
Acabei virando uma pessoa tão digital que nem andava mais com caderno de anotações na bolsa, coisas assim. Me acostumei a enviar emails e mensagens para mim mesma com lembretes, ideias ou referências. Estou tentando me analogizar, ou seja, ando com o caderninho e nunca uso. Tenho tentado voltar ao papel, na verdade já voltei, com o As máquinas não respeitam ninguém, que está sendo escrito à mão, em um caderno comprado especificamente para este fim. Isso porque a maneira de o cérebro concatenar as ideias muda muito quando depende do ritmo da mão escrevendo, e sinto que o texto fica completamente diferente. Como ainda não passei nada a limpo, não sei se de fato a produção muda, mas no campo da experiência com certeza configura um outro processo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu acho que sou uma pessoa extremamente curiosa, mas muito pouco criativa. Uma coisa compensa a outra, no meu caso. Como gosto de aleatoriedades, informações inúteis e absurdas, sinto que minha forma de trabalhar, juntando uma curiosidade a outra, substitui a criatividade que não tenho. Por exemplo, amarro a origem dos nomes de esmaltes de unha a algo que vi no youtube sobre tarô. Não inventei nada, apenas uni os dois. E posso acrescentar uma cena de um filme. Me divirto fazendo essa associação, pois não teria a capacidade de inventar do nada um esmalte vermelho chamado Nariz de Palhaço, uma maneira de prever o futuro ou qualquer coisa assim.
Na pesquisa acadêmica e outros trabalhos que faço como freelancer, principalmente ghostwriting, também não sou de muitas ideias. Sou boa em buscar informações, e permeável em relação aos canais em que as acesso. Um dia desses, propus a um cliente bastante sério que seu livro fosse como o programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum. Não acredito que isso seja um processo criativo, pois não inventei um formato, apenas tive a maleabilidade de buscar uma opção em lugares da memória que não se busca normalmente para um trabalho assim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não acho que nada tenha mudado radicalmente, e sim houve um amadurecimento de certos processos. No caso da ficção, passei a me apropriar de outros textos em vez de apenas utilizá-los como referências, algo que, claro, eu não inventei, mas antes nem sabia que era possível. Bom, pensando agora, talvez as mudanças surjam quando novas questões se apresentam diante de mim. Ser “radicalmente não-original” (algo que aprendi com Vila-Matas) é uma delas. A racionalização de uma perspectiva para o texto, etapa que só não é obrigatória porque se tornou instintiva, foi algo que aprendi a partir de Cristóvão Tezza. Nesse sentido, meu último acréscimo no processo criativo veio com um olhar para a forma que adquiri lendo contos do Ted Chiang. Tudo isso são essas perguntas que faço a mim mesma na escrita, e que passei a fazê-las quando me dei conta que eram tão possíveis quanto necessárias.
No caso da produção acadêmica também vejo um amadurecimento contínuo, um processo que se solidifica. Até mesmo o desalento ao começar um capítulo novo ou um artigo, como se tivesse esquecido como se faz, já entendi que faz parte da minha maneira de trabalhar.
Eu diria a mim mesma, à Thais das primeiras oficinas literárias e rabiscos em cadernos, que não perdesse de vista que a escrita literária é arte, e que pesquisa acadêmica é também um espaço de liberdade e criação. Quando tudo se torna técnica, trabalho, erros e acertos, processos, no aspecto mais burocrático da palavra, é como se uma luz se apagasse e recuperá-la dá um trabalho enorme (sei bem, é o que tenho perseguido há tempos). Então gostaria que ela entendesse que se aprimorar, ampliar seu nível de conhecimento e percepção da escrita enquanto ofício não deve nunca anular o aspecto artístico, de investigação acerca da realidade humana, dos limites da própria escrita e de si. Precisei dar toda essa volta para compreender que há um lado da literatura, tão condizente com um mundinho de textões e enlatados de Netflix, que é esquemático e não vai a lugar nenhum.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Todas as minhas forças agora estão centradas em terminar o As máquinas e a minha tese. Tenho um projeto de romance grandioso que envolve evangélicos neopentecostais e judeus ortodoxos e mantenho-o em segredo mais para não me contaminar com a empolgação e novamente abandonar o As máquinas. Meu livro de contos recém-lançado, Pessoas promíscuas de águas e pedras, só existe porque precisava postergar o As máquinas sem que a culpa me pulverizasse. Meu ano Flávio de Carvalho, meu próximo livro, é uma mistura dessa procrastinação com experimentos descompromissados feitos ao longo de 2020.
Outro projeto que gostaria muito de fazer seria um compilado de impressões imediatas, sinapses de quando visitei uma exposição, vi algum artista ao vivo, coisas assim. Um projeto de flashes, mas nunca tive a disciplina, e, quando penso em começar, penso em todos os momentos anteriores que perdi e travo.
Gostaria de ler um livro que subvertesse as questões machistas da narrativa clássica do século XX, todos os desdobramentos de Philip Roth e afins – os infinitos romances e filmes sobre o professor universitário e escritor meio tosco na cidade grande com a esposa castradora ou a ex-namorada fria em busca de inspiração com uma aluna novinha, uma prostituta, aquela farsa de profundidade e intelectualidade de araque. Adoraria ler uma inversão de papeis, pendendo para o grotesco, expondo o ridículo desse clichê fácil com todos os seus atalhos, e quem sabe uma dose de revanchismo. É um livro que eu só penso em escrever porque não existe mesmo, pois tenho certeza que há outras autoras mais adequadas para essa empreitada.