Thadeu C. Santos é poeta, editor de livros e produtor cultural.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordar é ler as notícias, não tem jeito. Tomar café e se arrumar para sair. Quer dizer, antes da epidemia. Hoje é se arrumar para trabalhar de casa. Essa hora é importante porque esses pensamentos da manhã parecem sempre mais fortes que os da noite. Esses dias eu estava pensando sobre isso com um amigo. Quer dizer, quem escreve é também alguém que desenha. Escrever é desenhar. As coisas que envolvem uma escrita são as mesmas que envolvem um desenho, imaginação, pulsão, visão. Falar não é escrever. Por isso escrever é tão difícil, você precisa desenhar o que você quer falar. Tenho muitas razões para acreditar que toda escrita começa nessas perguntas que você faz a si mesmo quando o dia começa. Elas vão ajudar na hora que você for desenhar a escolher as formas melhores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Hoje em dia, gosto de escrever durante o dia, pontos fortes para a tarde, mas mesmo de manhã tem rolado. Até pouco tempo atrás eu escrevia muito à noite. Parei com isso. À noite é hora de se divertir e descansar. Tem uma hora ali quando abaixa o sol, entre cinco e seis da tarde, e começa a vir uma penumbra, que funciona muito para eu conseguir destravar um texto. Eu preciso de certa calma para escrever. No fim da tarde, o dia praticamente já se resolveu, e já começa a se encaminhar as atividades do dia seguinte. Então vem uma vibe de missão cumprida, mesmo que o dia tenha sido zero produtivo. Normalmente trabalho poemas nesse horário do fim da tarde chamando a noite.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se um texto tem data para ser entregue, escrevo muito bem perto do deadline, mesmo que eu tenha começado algum esboço lá atrás, a pressão da entrega funciona para que eu não atrase ou perca um prazo – nesse caso, não importa o dia nem o horário, consigo me enfurnar em qualquer canto da casa e só saio de lá com a coisa acabada. Normalmente essa etapa começa quando eu digo a mim mesmo “se você não começar agora você não vai entregar”. Meu planejamento vai sendo ditado pelos deadlines. Escrever é em suma reescrever as próprias frases infinitamente. Então, começa. Reescreve. Recomeça. O texto vai se formando no tranco, não tem muito como fugir disso. E tudo bem se não está um primor. Mesmo que não esteja do jeito que eu gostaria, sempre entrego no prazo combinado. No drama do agora vai ou não vai da véspera da entrega de algum trabalho, prefiro um texto pior do que atrasar – tentando manter, claro, uma linha que não ultrapasse os limites da decência. Quase sempre dá para corrigir algo nos dias seguintes. Comigo, funciona assim quando escrevo qualquer texto, poemas ou artigos do mestrado. Escrevo pouco por prazer, digo, sem nenhuma preocupação nem expectativa sobre o que estou fazendo com aquele texto. Não tenho diário e não costumo rabiscar coisas, escrever a esmo. Não faz parte do meu dia a dia. Na maioria das vezes, estou escrevendo a sério, quer dizer, quando estou escrevendo eu estou trabalhando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu gosto de fazer um esqueleto com os tópicos que tenho que abordar, que atendem aos meus objetivos para aquele texto. Se houver subtópicos, melhor ainda, é sinal que a coisa está melhor organizada. A partir daí começa uma relação entre parágrafos, que gosto também de esquematizar com uma relação de assuntos, fazendo um roteiro de informações. Mesmo que os assuntos sejam complicados, é preciso escrever com clareza. Não gosto de gastar vocabulário à toa. Prefiro as palavras correntes. As notas são fundamentais, porém mais interessante do que saber se é suficiente ou não, é saber se as notas estão bem lidas. Com certeza as notas não serão suficientes se não forem bem aproveitadas. Então, vem o mais difícil, é preciso traduzir a pesquisa em um texto próprio. Mesmo que a fonte não tenha em nada se preocupado com esse tipo de cuidado com o vocabulário hiperbólico. Este também é um exercício para treinar a sua imaginação para o que será escrito. Tem que trazer as notas para perto. Não adianta repetir. É preciso processar. E com certeza a atividade da escrita é fundamente para consolidar o aprendizado de alguma abstração. Normalmente, escrevo a partir de palavras-chave, que funcionam como âncoras para o que virá depois e ao redor. Os poemas que funcionam um pouco diferente, pois podem partir da sacada de um verso ou da persistência em trabalhar uma sensação. Nesse caso, é o mistério operando mesmo, é difícil explicar o que acontece na hora que um poema vem. Na verdade, há mistério em tudo na escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O ideal é não forçar, não criar expectativas, desconfiar de qualquer legitimação… Só que, a menos que você seja um robô, é impossível lidar bem com a pressão de performar sempre em alto nível. Eu me preparo para essas questões sempre tentando trabalhar minha cabeça para que esteja sempre aberta ao imperfeito, ao fracasso, à dissonância – nunca à produtividade, à quantidade, ao acabamento. Não se trata de humildade, mas de jogar o jogo, buscar alguma integralidade sobre si mesmo e sobre seu trabalho que não seja nem de perto um comercial de margarina. É muito complicado quando a trava inviabiliza um trabalho e isso pode ter a ver com milhões de fatores. Eu já travei e desisti de vários projetos porque estava propondo a mim mesmo trabalhos que eu não poderia realizar. Acho que não se trata apenas de auto sabotagem, mas de falta de organização e de visão sobre as próprias capacidades. Ou eram mesmo só o que foram: ideias que tive, coisas que pensei, situações que tateei e deixei pra lá. Os limites estão sempre ali, rindo de você. Escrever dá medo, medo de não conseguir, medo de não ser bom. Escrever não é fácil.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso até o último minuto. Entrego sabendo que há erros e coisas a melhorar. Nenhum texto meu está pronto. Trata-se apenas da última versão. E, sim, claro, tenho leitores cobaia. Testar o texto é importante e sempre peço parecer antes de mandar o trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo nos dois. E converso muito comigo mesmo sobre o que tenho que escrever. Falar. Imaginar. Fabular. Isso é muito importante pra mim. Não faço gravações de vídeo nem voz. Penso melhor no papel, fazendo esquemas e esboços. No computador, guardo frases e faço pesquisa. Mas finalizo tudo no computador. Perco os papéis com facilidade e meus cadernos mofam no alto do armário. Faço muito pouco consulta a textos meus antigos, nem parece que fui eu que escrevi.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Pensar é agir. Pensamento é ação. Isso não é apenas militância política. A ação é que move as coisas. Ler muito, ler sempre. Conversar, ver coisas novas, conhecer pessoas novas. Ir ao cinema. Ir à exposição. Comer coisas diferentes. Passear pela cidade. Visitar os amigos. Visitar a família. Ir aos atos. Ir às reuniões. Ação, movimento, pessoas. Gostar da vida e de vivê-la. Tudo sobre como as ideias acontecem é muito misterioso. Tenho novas ideias a qualquer momento, em qualquer lugar. Mas, com alguma frequência, tenho uma boa ideia um pouco antes de cair no sono. Nem sempre anoto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo, tem que mudar. Escrever não é uma manha que você aprende uma vez e está resolvido. A vida vai acontecendo e de tempos em tempos a escrita vai mudando. Acho que, seu eu pudesse, diria pra mim: “você se acha tão esperto, se soubesse o quanto você é preguiçoso não estaria falando esse tanto de merda”. Acho que essa frase ainda vale para hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, sinto-me feliz com os projetos que já realizei. Pode-se dizer que estou atualmente com overdose de projetos e precisando de férias pagas (coisa que não me acontece há muitos anos). Esses projetos me deram muitas respostas, sem as quais eu não teria chegado às novas perguntas que me faço hoje. E um livro que eu gostaria de ler que não existe? Ainda dá tempo de pensar nisso? Depois do novo vírus, esgotou-se totalmente minha capacidade de especular sobre a ficção.