Teresa Cristina Bendini é poeta e escritora de livros infantis, autora de “Amor em Azul”.
Como você começa o seu dia? Você tem alguma rotina matinal?
Acordo sempre no mesmo horário, mesmo que durma tarde ou tenha aquela “insoninha” básica de quem já passou dos 50 anos. Descobri há alguns dias, uma prática meditativa que foi desenvolvida especificamente para melhorar a escrita, ou seja, ela foi pensada para ajudar escritores em sua vocação. Então ao levantar, procuro desenvolver o que a prática indica, ao fixar em um determinado ponto, lá permaneço por alguns segundos. A prática também recomenda que nossos pensamentos devam ser escritos em um caderno, “sem filtro”, até que fluam espontaneamente. Isso vem a ser um ótimo exercício literário, pois ajuda a desbloquear a escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Fiz um poema, certa vez, declarando meu amor pelo período da manhã. Vou transcrever um pedacinho dele:
Manhã… e eu já brilho.
Manhã… e eu sou radiante.
Quero minha vida de manhã, uma manhã de vida.
Passo uma manhã com minha vida e já não quero que ela passe.
De manhã eu a quero toda e a chamo… Manhã.
O ritual consiste em juntar tudo que deve contribuir para a produção do texto. Dicionários são pedras preciosas que o escritor, garimpeiro de palavras, vive procurando. Existe uma pérola dessas, indicado pelo poeta pantaneiro Manoel de Barros. O precioso material é de autoria do Frei Domingos de Oliveira, em cinco grossos tomos. O poeta já teve suas poesias encenadas, exatamente por tratar-se de uma “linguagem meta” que rompe totalmente a lógica da escrita mais convencional, então, obter um dicionário desses, seria um achado. Andei procurando, mas custa uma fortuna.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou tentando adquirir uma disciplina que consiste em escrever duas páginas diárias. Essa prática veio em função de um depoimento dado pelo escritor José Saramago. Ele disse: “Formalmente não escrevo mais do que isso. Pode parecer pouco, mas duas páginas diárias, ao fim de um ano, serão um livro com 800 páginas. Mesmo que pudesse continuar depois da segunda página, não continuo, apenas acabo a oração, o período, ou a frase e o resto fica para amanhã”. Estou tentando seguir o conselho do imortal. Mas isso em relação ao romance que, atualmente, é meu mais importante trabalho. Com a poesia é bem diferente. Não daria para ser assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas o suficiente, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou muito desorganizada, como João Ubaldo Ribeiro, que ao dar seu depoimento, declarou-se um aquariano nato, aliás, ele nasceu um dia depois de mim, 23 de janeiro. Eu também compro cadernos, faço notas, mas depois perco tudo, e tenho que ficar procurando. Agora descobri uma forma mais eficiente de manter minhas ideias protegidas, eu as gravo. As mais absurdas ideias são devidamente gravadas no meu celular que dispõe desse recurso. Normalmente elas aparecem enquanto eu caminho. Com o poema é diferente, eu tenho que parar e rapidamente escrever o poema, caso contrário ele some, se esvai, e eu o perco. Uma vez estava atrasada para uma oficina literária no SESC Bela Vista, em São Paulo, conduzida pelo professor e escritor Frederico Barbosa. Tinha que levar um poema pronto. Acontece que o trânsito estava horrível e eu comecei a imaginar como seria se eu sofresse um acidente e viesse a falecer ali mesmo. Imaginei cair no rio. E eu perdendo aquilo que me move. A delícia da vida, como diz Olavo Bilac em seu “ In Extremis” . Então fiz o seguinte poema:
Teresa? A terra.
Teresa? O sumo.
Teresa? A sina.
A lida Teresa…o mundo.
Teresa? O gozo.
Teresa? O riso.
O sonho, Teresa. O viço!
Teresa? O medo!
Teresa? O trilho!
A curva, Teresa…o rio.
Teresa? A dor!
O corte Teresa, o sangue!
Teresa…Teresa…
Ele foi inscrito num concurso bem famoso (Paulo Setúbal de Poesia de Tatuí), e levou o prêmio, primeiro lugar.
Como você lida com as travas da escrita, com a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
“Começar um livro é desagradável. Fico completamente indeciso quanto ao personagem e sua situação, e é com um personagem em determinada situação que tenho que começar. Pior do que não conhecer o assunto é não saber como tratá-lo. Porque definitivamente, isso é tudo. Datilografo inícios que ficam horríveis, parecem mais uma paródia inconsistente de meu livro anterior, do que a ruptura que pretendo conseguir. Preciso de alguma coisa que impulsione o núcleo do livro, um imã, que atraia tudo para ele – é isso que procuro durante os primeiros meses em que estou escrevendo algo novo. Com frequência tenho que escrever 100 páginas ou mais antes de conseguir um parágrafo cheio de vida. Muito bem, digo a mim mesmo, esse é o começo. Parto daí”.
Esse depoimento de Philip Roth, nos dá uma ideia de como é para os “ilustres” esse problema da escrita que também afeta “candidatos a escritores” como eu. Tenho certeza que me boicoto. Desfoco muito! Mas isso faz parte da traição, acho que primeiro tenho que matar essa personagem (que sou eu mesma) me emperrando. Quando inicio a narrativa acabo com ela em algumas páginas. Tenho que assassiná-la se quiser continuar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos antes de publicá-los?
Só para meu marido e para o editor. Mas só considero a opinião deles se ela não for muito diferente da minha. O autor tem que ter prioridade, o “filho” é dele! Certa vez lendo o poema do Charles Bukowskifiquei travada, literalmente travada. Tudo que escrevia, achava um lixo. O poema chama-se: “Então queres ser um escritor?”Essa é a opinião do poeta, mas mexe muito com a gente, em especial com aqueles que ainda não se consideram reconhecidos ou imensamente talentosos. No meu caso, só consegui romper com essa ideia depreciativa sobre o meu trabalho, ao ler o depoimento de um importante crítico literário do século XIX, chamado Bielínski. Na ocasião, maio de 1845, ele examinava com paixão, o texto, Gente Pobre, primeira publicação do Dostoievski, que tinha então 22 anos. Ele diz o seguinte, se referindo ao autor russo: “Você compreende a terrível VERDADE que nos mostra!” A você escritor, a verdade tem se revelado, veio ao mundo com esse dom; seja-lhe fiel, e será um grande artista! “Tomei essas palavras para mim. Foi como se algo me dissesse: “Olha, não tem jeito não, você é um ungido, à vocês (escritores) foi dado o papel de revelar o absurdo, o descabido, o imensurável na experiência humana”. Trata-se de uma vocação, e disso não dá para fugir. Essa narrativa pode ser lida na íntegra, em um anexo do Livro Gente Pobre, que foi traduzido pelo Luís Avelima, e produzido pela Editora “Letra Selvagem”.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não domino todos os recursos que a nova tecnologia disponibiliza. Aliás, a modernidade tem com a Arte uma relação de amor e de ódio. De vida e de morte. A tecnologia pode descaracterizá-la, massificá-la, tornando-a ferramenta de quem oprime. Sei que esse caminho não tem volta, mas fico bastante assustada com o que vejo atualmente. No avião em que voava, vi uma mãe dar o celular para o seu bebê, logo após o aleitamento. Era uma menina e devia ter um ano.
Em uma livraria repleta de “novidades literárias” para crianças, observei um garotinho de quatro anos, não se interessar por nada, além do celular que segurava. Quando os pais ameaçaram tirar dele o objeto, a criança ficou histérica e começou a gritar muito. Acabou perdendo o fôlego. Os pais ficaram impotentes diante dessa gritaria, então, tiveram que devolver o brinquedinho para o garoto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Lembrei agora do poema do Augusto dos Anjos que se chama Ideia… ei-lo:
IDEIA
“De onde ela vem?! De que matéria bruta?
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica tênue, mínima, raquítica…
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
(Do livro: Toda Poesia, José Olympio Editora, com comentários de Ferreira Gullar).
Minha dica é ler tudo que puder! Viajar, assistir filmes, jogar conversa fora, se inteirar da situação política do país, ter brasilidade. Segundo Ítalo Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer o que tinha prá falar, portanto ler os clássicos é fundamental para o escritor. Além disso, o objetivo de todo escritor é exatamente esse, produzir um material que seja polissêmico e possibilite várias interpretações. Faço um exercício que consiste em anotar o parágrafo inicial de livros, daqueles que foram importantes para mim. Gosto de comparar os estilos, ver como os autores iniciam seus romances. Já que começar é sempre o mais difícil. Acho que literatura é isso, uma tentativa de expor a chaga humana de forma que ela seja quase uma catarse, transformadora.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Digo: “Acho que posso fazer isso ficar melhor!” Costumo refazer poemas antigos e alterá-los. Mas isso não ocorre normalmente. Quando altero algum poema, reconheço que minha escrita melhorou muito, mas nem sempre isso é verdadeiro. Com os contos, essa prática não procede. Caso eu mexa, o propósito da narrativa se desmancha.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Participei do Projeto “Mais Educação” em Tremembé, município em que resido, no início desse ano e tive o prazer de trabalhar poemas com os alunos da Rede Municipal de Ensino. Eles leram: João Cabral de Melo Neto, “Os Três Mal Amados” e o poema “Quadrilha” do Drummond. Eles também leram Quintana e o “Poeminha do Contra”, Bandeira e o poema “Vou-me embora prá Pasárgada”, resolvi trabalhar esse poema porque a aluna me perguntou o significado da palavra Utopia; Olavo Bilac, In extremis; Marcelino Freire, “Sou da Paz”; Gregório de Matos, entre outros. E o Poema foi usado para melhorar a leitura e a interpretação de textos. Eram meninos de 13 anos, eles não conheciam esses poemas e não sabiam da força que eles têm. Gostaria que o “Projeto” fosse aproveitado por outros municípios, que todos pudessem descobrir o prazer da leitura através da declamação.
Outro projeto diz respeito à publicação de um Romance Biográfico, porém uma biografia que seja totalmente peculiar, irreverente, temos tantos romances biográficos importantes. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é talvez a mais ousada biografia que eu conheço, mas também aquelas relacionadas a Sagas Familiares como “O tempo e o vento”, do Érico Veríssimo, são fantásticas. Sou poetisa e escritora de livros infantis, então considero esse projeto uma ousadia.
O livro que gostaria que existisse e ainda não existe, diz respeito a uma operação engenhosa e inteligentíssima que ao libertar um líder político de esquerda, totalmente injustiçado, adentraria em questões bastante doloridas do inconsciente humano. O texto que poderia começar como “Narrativa Policial” discutiria visões de mundo, a problemática contida nas religiões, na economia, na tecnologia, falaria sobre a “guerra cibernética” nas eleições. Enfim, discutiria a barbárie nas comunicações. Aliás, o escritor Ricardo Lísias, é o único que eu conheço que aborda questões políticas bem atuais em seus romances. Tive o prazer de entrevistá-lo para a Revista Entrementes. Não posso esquecer sua gentileza. Ele escreveu em 2017, o Livro: Diário da Cadeia, o autor usava o seguinte pseudônimo: Eduardo Cunha. Genial!