Teofilo Tostes Daniel é poeta e escritor, autor de “Trítonos – intervalos do delírio” (Patuá, 2015) e “Poemas para serem encenados” (Casa do Novo Autor, 2008), e faz ensaios abertos com as palavras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu corpo me atravessa muito, o tempo todo, e demanda alguns cuidados. Parte da minha manhã é marcada por uma rotina de autocuidado com o corpo. Durante essa rotina, acabo conseguindo eventualmente realizar algumas atividades paralelas, como ler notícias ou as páginas de algum livro. Às vezes, também, me ocorre de eu responder breves mensagens. E não era incomum também eu começar a escrever algo neste momento de autocuidado. Sobretudo poemas, especialmente quando sou chamado a “responder”, com a escrita, as ideias que colho a partir das leituras que faço. Tudo no celular.
Vejo que neste momento eu falo sobre minha rotina matinal a partir de dois entrelugares. O primeiro vem pelo acaso dos calendários. Comecei a esboçar minhas respostas aqui num período de férias, o que significa suspensão das rotinas. O segundo entrelugar é marcado por um período de mudança recente nas minhas manhãs, há pouco mais de uma semana. Eu não estava totalmente satisfeito com minha forma de começar meus dias. Há tempos eu sentia falta de uma rotina de escrita e desejava muito reservar parte do meu tempo matinal para isso. Apesar de ter um pouco de dificuldade para acordar, costumo ter muita disposição e energia assim que desperto. Levanto de muito bom-humor e, sempre que tenho oportunidade, gosto muito de conversar pelas manhãs, quando estou mais comunicativo e falante. Há tempos, então, que eu gostaria de aproveitar essa disposição para a escrita. Desde que voltei das férias, na semana passada, tenho acordado mais cedo para escrever. Tenho acordado entre 6h e 7h e escrevo até 8h30 ou 9h. Como comecei essa rotina agora, ainda é cedo para chamar isso de um hábito. Mas espero que se torne, pois fiquei muito feliz iniciando meus dias com a escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu realmente consigo escrever em qualquer hora do dia. Por vezes em condições adversas. Já escrevi um soneto num ônibus com um celular Nokia, daqueles que você tinha de apertar até quatro vezes uma tecla para conseguir uma letra; já comecei um poema na quadra de um colégio, durante o ensaio de uma peça de teatro da qual eu fazia parte; já escrevi em sala de aula – tanto no colégio quanto na faculdade – e no trabalho. E já fiz um soneto no meio de um “dilúvio”, quando um cano estourado inundou o apartamento em que eu e minha companheira (Fabiana Turci) moramos.
Quando tenho ou me imponho prazos, sou capaz de passar madrugadas escrevendo. Foi assim quando eu estava nas páginas finais do último conto do meu livro “Trítonos – intervalos do delírio”. Fiquei quase quarenta horas acordado praticamente escrevendo direto, num fim de semana. Mas normalmente isso não é possível, tanto por questões de rotina – cuidados comigo e com a casa, compromissos diversos, trabalho, partilha de toda uma vida com minha companheira – quanto do corpo – sou uma pessoa que precisa dormir bem e noites mal dormidas sempre me cobram seu preço com juros.
Apesar disso, percebo claramente que eu sou bem mais produtivo com a escrita pelas manhãs, bem cedo. Nos primeiros horários do sol, há uma quietude semelhante à da madrugada. O silêncio da casa e do entorno sempre me favorece quando estou escrevendo. No entanto, nas madrugadas, a quietude se soma ao cansaço do corpo e da mente, fazendo com que eu queira repouso. Exceto quando vai chegando 5h da manhã – geralmente quando eu me torno produtivo novamente –, e depois a Fabi, minha companheira, me contou uma coisa que explicou o porquê disso. Para a Ayurveda, por volta de uma hora e meia antes de nascer o sol, ocorre o Brahma Muhurta, que seria a hora em que a atmosfera está repleta de Prana (energia vital), promovendo em nós flexibilidade, entusiasmo e movimento, favorecendo as atividades mentais. Seria a hora ideal para despertar para essa medicina indiana milenar e talvez meu próximo passo seja passar a acordar nesse horário para escrever e me preparar para receber a manhã. A quietude da manhã, para mim, é diferente. Ela recebe o corpo e a mente descansados. Há uma imensa fecundidade nesse frescor da manhã, na mente livre, iniciando suas primeiras sinapses – as sinapses que comandam o funcionamento do corpo e dos sonhos não contam, pois não cessam.
Não tenho propriamente um ritual de preparação para a escrita. Mas, enquanto começo a responder sobre isso, percebo que muitas coisas me preparam para a escrita. Costumo estar atento a tudo que pode render histórias ou poemas e se tornar matéria-prima para o que estou escrevendo. Costumo me interessar muito pelo que me provoca ternura, encanto, assombro ou perplexidade. Gosto muito de saber como as pessoas se sentem a partir das histórias que vivem. Acontecimentos simples, como, por exemplo, a uma criança que sai pela primeira vez sozinha para ir à padaria, pode me ganhar se os pensamentos e emoções dessa pessoa estiverem revelados. Também me ganham o inusitado e o inesperado, os acontecimentos que quebram as expectativas. Que despertam curiosidade e revelam o engenho do pensamento ou da imaginação humana. Eu me interesso muito por tudo aquilo que mostra a diversidade humana, outros modos de conceber o mundo, o sagrado, a origem das coisas, as relações ou a si mesmo para além do olhar social. Aliás, as quebras de paradigma captam minha atenção. Aquelas que exaltam o prazer e a liberdade, a dor e a delícia de ser o que é. E, por fim, fico atento às experiências que eu vivo ou testemunho. No meu último livro – “Trítonos – intervalos do delírio” –, as narrativas longas esbarram no realismo fantástico. Mas, curiosamente, elas nasceram de experiências que vivi. O segundo conto, por exemplo, nasceu quando um amigo de hábitos noturnos estava em minha casa. No meio da madrugada, ele estava preparando um arroz com açafrão-da-terra. Acordei com um barulho que parecia do interfone. Quando levantei, soube que algum vizinho estava reclamando que foi acordado – pasmem! – pelo cheiro da comida. Fui me deitar novamente, mas minha mente gritava que ali havia uma história para ser contada. Então peguei papel e comecei a escrever um trecho desse futuro conto.
Além de procurar me manter observando muito todas as coisas, no geral eu não consigo escrever se eu não estiver lendo. Quando estou escrevendo, sobretudo prosa, eu me alimento constantemente de leituras e pesquisas. Por vezes, procuro encontrar a voz do texto ou de um personagem, como quando estava lendo o Zaratustra, do Nietzsche, para escrever o relato de um dos personagens loucos que aparecem no último conto do meu livro. Para essa história, que acontece em parte numa espécie de imensa instalação de artes situada num oásis no meio do deserto do Atacama, fiz muitas leituras. Li sobre Hieronymus Bosch para encontrar várias paisagens, biografias do Bispo para pensar um pouco sobre as conexões possíveis entre arte e loucura, os diários do hospício de Lima Barreto para conhecer as marcas que ficam em alguém internado num manicômio, além de histórias sobre manicômios brasileiros, para conhecer as práticas nesses estabelecimentos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha experiência até hoje sempre foi de escrever em períodos concentrados. Com a nova rotina, sobre a qual falei antes, consegui escrever todos os dias nesta última semana. Isso é uma novidade para mim, que vem da necessidade que tenho sentido de realizar os muitos projetos que me rondam. Acho que manter essa prática será algo muito bom. Mas isso não tem relação propriamente com meta diária de escrita. Pelo meu modo de escrever, isso é irrealizável. Não reflete o meu exercício de escrita efetiva, ou seja, os momentos em que transformo em palavras as ideias que me rondam. Há momentos em que uma história engrena e eu escrevo várias páginas num único dia. E há outros em que fico feliz se termino um único parágrafo. Na poesia, há momentos em que um poema assume a forma definitiva logo de cara. Outras vezes, fico semanas deixando uma ideia amadurecer, volto e reescrevo uma única estrofe inúmeras vezes. Isso sem falar nos momentos em que é necessário ler, pesquisar algo, sair do texto para se perder nos fluxos intertextuais que me alimentam para escrever determinado texto. Diante de tantas variáveis que rondam minha escrita – fora as variáveis da própria vida, que por vezes tiram meu tempo de forma vertiginosa – me parece absolutamente impossível conceber metas diárias, fixas e precisas, para algo que eu acabo construindo acolhendo a imprecisão, a incerteza e o imponderável.
E não é só isso. Essa impossibilidade de me conceber estabelecendo metas diárias de escrita tem muita relação com o espaço que a escrita literária sempre ocupou na minha vida. A literatura, para mim, sempre foi um espaço de liberdade. Não apenas temática e de expressão, mas de tempo. Eu sou uma pessoa que vive processos, sobretudo internos, de uma forma lenta. Costumo pensar muito antes de tomar decisões, sobretudo que estabeleçam mudanças na minha vida. E a literatura sempre foi um terreno em que esse vagar não só tem espaço, como participa do processo criativo. Além disso, a escrita literária para mim é uma experiência de prazer e de alegria. Eu sempre me divirto muito enquanto escrevo. Mesmo quando escrevo sobre um tema pesado, delicado, eventualmente até íntimo. Transformar ideias em palavras, imaginar peripécias e pequenos detalhes num conto, encontrar a melhor forma de descrever determinado tipo de observação ou de sentimento num poema, tudo isso são experiências de muito prazer. E muita alegria. A Fabi comenta que eu escrevo sorrindo. Acho que deve ser por estar encantado pelas palavras.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Estou constantemente pensando em meus projetos de escrita, colhendo matéria-prima para eles. Mesmo nos momentos em que produzo muito pouco, vou acumulando anotações, ideias, notícias, links que podem alimentar meus poemas, meus projetos, minhas histórias que já comecei ou que pretendo ainda escrever. Por vezes, anoto sobre as características de personagem, a partir de alguém que eu observei, ou de algo que li. Outras vezes, anoto acontecimentos que podem virar história ou entrar nas que estou escrevendo. Quase sempre, acontecimentos inusitados e curiosos. Às vezes, acontecimentos trágicos ou pungentes. Não só faço anotações sobre esses acontecimentos como, na maior parte das vezes, me envio links de matérias com essas histórias que gostaria de desenvolver. O texto jornalístico é mais centrado no fato, em narrar o acontecimento. O olhar e os sentimentos dos personagens envolvidos às vezes aparecem, por meio de falas. Mas é pouco, se comparado com o que se pode fazer na literatura. Então, quando uma história me interessa, geralmente me interessam por essas lacunas que eu gostaria de preencher. São histórias que me levam a imaginar o que o personagem pensou e sentiu, quando aquilo lhe ocorreu. Teve um conto que escrevi sobre uma personagem que tinha uma doença terminal e deu uma festa de despedida, antes de passar pelo processo de suicídio assistido. Isso foi tirado de uma matéria que li, que contava esse acontecimento. Acabei de ler a matéria, enviei-a para mim por email, e imediatamente comecei a imaginar o que ela teria pensado e sentido durante essa festa. Não me sentei para escrever logo, pois passei um bom tempo tentando imaginar isso. E pesquisando sobre lugares em que o suicídio assistido era permitido, desde quando. Quando tinha claro para mim quem era essa personagem, sua história de vida, qual seria o tom do texto, a voz narrativa – é uma narração em primeira pessoa – eu estava pronto para começar a escrever.
Geralmente, começar a escrever implica em encontrar a forma de colocar essas ideias que estão me rondando em palavras. Encontrar a voz ou as características de um personagem, o estilo de uma narrativa ou as imagens de um poema. Eu geralmente me sento e começo tatear essa forma. Escrevo e reescrevo as primeiras frases, como uma espécie de aquecimento. Isso fica muito claro quando o texto ganha corpo. Noto que, muitas vezes, o início do que escrevo precisa ser retirada, como excesso, ou retrabalhado. Pois vou encontrando o ponto certo no próprio ato de escrever. Na poesia, é comum alguns versos me chegarem prontos. Então, vou desdobrando esses versos, pensando novas imagens. Parece-me que vou vestindo as ideias de palavras. Algumas servem perfeitamente. Outras sobram ou ficam apertadas demais. Aí eu pego a tesoura para podar os excessos ou começo a tecer mais linhas para o tecido-texto. E esse processo me causa um prazer imenso.
Percebo que muitos processos diferentes podem ocorrer quando inicio um texto. Se é poesia, quase sempre é mais rápido passar da ideia para o papel. Muitas vezes, para não deixar a ideia esvanecer, preciso tomar nota do que me chega com urgência. Pode ser um verso, uma estrofe… E a escrita poética costuma me rondar como obsessão. Uma ideia fica pedindo passagem até se esgotar na escritura de um poema. No terreno a prosa, tudo é mais lento. Mesmo que eu logo comece a escrever, quando me surge um bom argumento de uma história, todo texto em prosa me demanda, pelo menos, alguns meses de trabalho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo ser assaltado pela ansiedade de trabalhar em projetos longos. Minha prosa é escrita com o vagar que me é necessário para a elaboração e a descoberta da história que estou contando. Eu preciso tomar contato com os fatos, conhecer os personagens, me tornar íntimo deles. Pensar com uma cabeça que não é só a minha. Saber que tipo de olhar meus personagens lançam para o mundo. A minha escrita é uma atividade que não pode ser feita com pressa. Ao mesmo tempo, concebo a escrita como um diálogo – não só o que está sendo escrito, mas com o mundo – e talvez isso faça com que eu não crie grandes expectativas. Escrevo pelo desejo do encontro, do diálogo. Então eu recebo como preciosos presentes eventuais leituras que apontam caminhos, que descortinam o que não está funcionando e o que está. Ao mesmo tempo, apesar de frequentemente escrever pensando em algum projeto específico, eu descubro no próprio ato da escrita o que o texto será.
Por vezes, quando me sinto preso às atividades automáticas do quotidiano, sinto que me esvazio um pouco de ideias. Quando isso ocorre, busco três coisas. A primeira é renovar meu olhar sobre as coisas. Por vezes, fazer uma oficina de escrita me traz muitos elementos de renovação. A automação de respostas exigida pelo mundo, as constantes demandas de resposta às urgências de coisas que não dialogam com nosso interior, todas essas coisas produzem em mim uma espécie de vista cansada. Renovar o olhar, para mim, é tentar olhar novamente para o mundo com olhar de espanto, de maravilhamento e de pergunta.
A segunda coisa que busco quando me deparo com uma trava na escrita é a leitura, pois geralmente o que trava minha escrita é o esgotamento de ideias. Sinto que isso ocorre quando eu me proponho algum desafio, mas há algo que falta na minha voz para responder a esse desafio. Então eu vou atrás daquilo que me falta, daquilo que falta à minha voz como escritor. Por isso, eu leio o tempo todo enquanto escrevo. Por ver que no próprio processo de significação, de ressignificação e de invenção, a atividade da escrita encontra a atividade da leitura. E essas atividades também se encontram no momento em que eu não estou lendo nem escrevendo, mas que minha mente continua sendo acompanhada pelos ecos daquilo que eu li e de como esses ecos se relacionam com minhas ideias, com os projetos de escrita que me rondam.
E aí chegamos à terceira coisa que busco nesses momentos de trava, que é o silêncio. O silêncio para ouvir a reverberação desses ecos. Quando eu me coloco quase como em silêncio, em condição de ouvir, vejo que as ideias voltam a me rondar.
Há algo, no entanto, que frequentemente me angustia: a procrastinação. Sou uma pessoa que gosta de ficar na minha zona de conforto. Portanto, sou capaz de procrastinar demais meus projetos de escrita. Eu me angustio quando me sinto estagnado; quando me dou conta de que passou um tempo considerável e eu não escrevi nada, não li nada ou estou lendo bem menos do que gostaria. Por isso, tento construir uma rotina me ajude. E hoje eu sinto que, para me afastar da angústia da procrastinação, preciso incorporar à minha rotina diária uma rotina de escrita. Um compromisso permanente, semelhante ao que tenho com o trabalho. Eu vou ao trabalho todos os dias, mesmo que eu esteja gripado ou cansado. Apenas enfermidades muito sérias justificam que eu falte. Meu desejo é assumir um compromisso semelhante com a escrita. Com a diferença de estar num terreno de autonomia e prazer.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O número de revisões em cada texto que escrevo varia muito. Mas é muito raro escrever alguma coisa que já nasça pronta, que não tenha alguma revisão posterior. Além disso, costumo escrever já revisando. Sobretudo textos em prosa, que são mais longos. É comum eu reler o que está escrito, pelo menos uma ou duas páginas, para continuar de onde parei. Nesse processo, costumo já revisar muitas coisas, e o texto vai sendo reescrito à medida que avança.
Mas essa pergunta me remete àquela que é, provavelmente, a experiência mais especial da minha prática de escrita, que é a partilha do que escrevo. A que ocorre antes de eu publicar meus textos. Em especial, a partilha do que eu escrevo com minha companheira, a Fabi.
Acho que a minha escrita nasce do desejo de diálogo e de encontro. Os momentos em que estou escrevendo pedem solidão. Tenho muita dificuldade para escrever em conjunto. Mas, uma vez que concluo um processo – que pode ser o de um texto, um parágrafo, uma parte de uma história, um poema –, eu quero muito partilhar o que escrevi. Saber como o texto reverbera no outro que lê. Desejo ouvir opiniões, sugestões e dialogar a partir do texto. Eu sempre acolhi muito sugestões de pessoas próximas, de amigos que escreviam. Desde que comecei a escrever, sempre mudei muitas coisas a partir desses diálogos.
Depois que conheci a Fabi, numa oficina de escrita poética na Casa das Rosas, passamos a trocar textos. Eu me impressionei muito com seu olhar atento e generoso. Os textos sempre voltavam repletos de anotações e destaques de muitas cores. Eram espécies de mapas para retrabalhá-los. Mesmo antes de começarmos a namorar, houve textos que foram inteiramente retrabalhados a partir de suas observações, como o segundo conto do meu último livro. Essa troca, claro, se intensificou quando começamos a namorar e, sobretudo, desde que passamos a viver juntos, há quase nove anos. Aliás, a partir daí todos os textos que eu escrevo são lidos e comentados por ela.
Quando falei com a Fabi que iria começar a responder a essa pergunta e falei um pouco do que iria responder, ela me chamou a atenção para um detalhe interessante. Desde que nos casamos, meus escritos não recebem mais comentários escritos ou grifos. Todo texto que partilho dá ensejo a muito tempo de conversa. Os comentários são feitos logo após a leitura. Nos fins de semana, são comuns que venham logo após o café da manhã, o que alarga o tempo que passamos à mesa. Durante a semana, se tenho algum texto para mostrar, esse local pode variar bastante. Pode ser na mesa, logo após o jantar, ou na cama. Às vezes no escritório onde escrevo ou no sofá da sala. Em todo lugar que nos permita estar confortáveis. A Fabi é sempre uma leitora, além de atenta e generosa, muito precisa. Lê ou ouve o que está sendo lido em voz alta e já tem apontamentos, que ressaltam o que há de melhor no que foi escrito e propõem caminhos para mudar o que não funciona. Isso sempre me impressionou muito. É assim também com textos de amigos, ou em oficinas de escrita que ela já ministrou. Mas tenho a sorte de dividir todos os meus dias com ela, então o tempo e a frequência com que isso ocorre em nossa vida é muito maior. Hoje não me imagino escrever algo sem pensar que ela será a minha primeira leitora, e uma leitora ativa, capaz de propor mudanças significativas nos caminhos do que escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
De forma mais geral, vejo a própria escrita como um tipo de tecnologia que liberou a mente de ter que se lembrar das histórias contadas pela tradição oral. Eu escrevi predominantemente à mão durante o período em que me formei como poeta, mas gosto de usar as ferramentas que facilitem, para mim, a escrita, o processo criativo. Já há alguns anos, escrevo predominantemente no computador. Ainda ando com cadernos para tomar notas, mas até isso eu muitas vezes faço no celular. Desde a última oficina de escrita de que participei, uma oficina intensa da poeta e escritora Geruza Zelnys, que trabalha a escrita como corpo e potência, eu passei a utilizar o Google Drive para escrever. No princípio, por poder acessar meus escritos durante o curso em cada encontro. Mas depois incorporei essa ferramenta em toda minha escrita. Isso porque ela permite que eu escreva a partir de qualquer computador que eu estiver. Basta que ele esteja conectado à internet. Coloquei lá todas as minhas pastas de escritos. Antes de começar a usar o Google Drive, porém, eu não só já escrevia predominantemente no computador como costumava me enviar por email o último estágio dos textos em que estava trabalhando. Pesquisando nesses emails enviados, seria possível estabelecer praticamente toda evolução da escrita da maior narrativa do meu último livro, por exemplo. Ver alterações estabelecidas desde o primeiro dia de trabalho naquele conto.
Acho que uma das mudanças mais perceptíveis que passar a escrever no computador me trouxe foi permitir com que eu fizesse uma escrita conjunta com a edição dos textos. Escrever à mão ou na máquina de escrever exigem que, em determinado momento, faça uma linha contínua. A escrita no computador não. É perfeitamente possível deslocar blocos de textos de uma parte para outra, inverter um poema. Isso ajuda muito, sobretudo nas escritas de maior fôlego, na prosa. Outra mudança veio com o fato de estar conectado constantemente – vivi o tempo da internet discada, quando isso não ocorria – o que me permite pesquisar sobre o tema que eu estiver escrevendo. Desde a vida de uma filósofa da antiguidade até a data em que o suicídio assistido no Canadá passou a ser autorizado, passando por particularidades dos orixás. Essa facilidade de pesquisa me permite desenvolver muitos detalhes e curiosidades que talvez não estivessem presentes nas minhas histórias, sem a tecnologia.
Além de me permitir fazer pesquisas, a internet também me dá a possibilidade de visualizar cenários. Quando eu estava escrevendo o conto “Paisagens de Sal”, última narrativa do meu livro “Trítonos – intervalos do delírio”, que se passa no deserto do Atacama, eu usei o Google Earth para ver trechos do deserto e “conhecer” a cidade de São Pedro do Atacama, de onde as pessoas partem para encontrar o misterioso lugar descrito nessa história, que fica num oásis no meio desse deserto. Comecei um conto sobre um diplomata, que está esperando para ser retomado, em que também usei a ferramenta para visualizar as cidades de Sevilha e Cusco. Até o lugar em que o personagem principal se senta para tomar um café, após receber uma notícia, foi visualizado em minhas andanças virtuais. Para mim, é fascinante o quanto esse recurso, que me permite percorrer as ruas de uma cidade em que eu nunca estive, alimenta a minha imaginação.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do diálogo com o mundo. Tudo o que desperta minha atenção, que capta minha percepção e meu afeto, pode virar matéria para escrita. Já escrevi a partir da indignação, da perplexidade, do espanto, da tristeza, do amor, do êxtase. Noto que aquilo que mobiliza afetos, sentimentos e sensações emerge principalmente na poesia. Já o que desperta minha percepção, minha curiosidade, e provoca certo espanto com a alteridade, com a multiplicidade de formas de ser humano, costuma desembocar na prosa. Costumo enviar para mim links de notícias, relatos e textos que dariam um conto. Devo ter centenas desses links em meu e-mail. Já escrevi ou encontrei personagens a partir de coisas que me aconteceram, de pessoas que conheci, de histórias que alguém me contou, de notícias ou artigos que li. O que une todos esses estímulos para a escrita é o fato de serem coisas que despertam minha imaginação. Acho que esses estímulos para narrativas e poemas precisam ser fortes o suficiente ou para me impelirem logo à escrita, ou para ficarem comigo por alguns anos, me rondando.
A leitura e a observação são ferramentas primordiais para me manterem criativo. Preciso estar em contato com pessoas, com textos e com arte. Sou uma pessoa extrovertida, o que significa que o outro me alimenta, me traz energia e vitalidade. Percebo que é por isso que esse contato, esse desejo de diálogo e encontro é tão essencial na minha escrita. Desde o nascimento das primeiras ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Essa pergunta abre diante de mim um abismo entre a pessoa que sou hoje e o menino de onze ou doze anos que começou a escrever seus primeiros versos em Cabo Frio, no já longínquo ano de 1991. Talvez para esse menino eu dissesse: “Que bom que você escolheu a literatura! Muito obrigado! Ela me deu muitas coisas, me trouxe leitores, amigos. O grande amor da minha vida veio a partir dela. E ainda há tanto por escrever…”
Penso que a vida modifica constantemente meu processo de escrita. Cada leitura me faz descobrir novas ferramentas. Cada caminho que experimento exige que eu reconfigure minha voz. Quando escrevo, sou chamado a habitar alteridades. Não é possível passar indiferente por uma experiência como essa. Não é possível invocar uma mente, um olhar e um corpo que não são meus e não sair transformado. Consigo acessar uma alteridade ao compor um personagem. Isso é imenso!
Além disso, amadurecer me trouxe menos ansiedade com a escrita. Menos ansiedade para concluir a escrita. Isso me permite mergulhar sem pressa em cada texto, em cada processo que um projeto me pede que eu viva. Vejo, em perspectiva, que na juventude o excesso de futuro traz um pouco mais de ansiedade para viver tudo agora. Por isso, os anos de adolescência e início da juventude são tão intensos. Hoje, estou mais nel mezzo del camin– espero que ainda na primeira metade – da minha vida. Penso que ter tanto futuro quanto passado, em expectativa, me conecte de forma profunda ao presente, que é o tempo da realização. Ainda cultivo nos olhos o deslumbramento e a perplexidade, a curiosidade e a fome diante da vida. E desejo me manter assim, mesmo quando eu tiver mais passado do que futuro. Penso que isso mantém acesos os sonhos, os desejos, os projetos. E o próprio desejo de escrever o mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Outro dia, numa conversa com minha irmã por telefone, me dei conta de que tinha ao menos algum esboço de sete projetos de livros. Dois – talvez três – romances, dois livros de contos, dois de poemas e um de poemas em prosa. Mesmo que eu consiga escrever um pouco todos os dias, num ritmo alucinante, esses projetos facilmente me consumiriam pelo menos uma década de escrita. E em uma década novos projetos surgem.
Há dois, em especial, que me rondam mais intensamente. Um, que já iniciei, será um livro de prosa poética, com definições de palavras extraídas de poéticas alheias. Já tenho algumas definições escritas e já comecei a movimentar a escrita desse livro desde o ano passado, quando entrei em contato com diversos poetas que leio, para pedir palavras. Muitos já me enviaram suas palavras e outros disseram que ainda me enviarão. E há muitos poetas para os quais ainda quero pedir palavras. Gosto muito desse projeto porque ele só é possível a partir do diálogo. É uma consonância perfeita com o que me move a escrever.
Outro projeto que desejo muito escrever é um romance policial, em que um serial killerque mata mulheres e deixa, junto aos corpos, cartas à polícia explicando os porquês desses assassinatos. Uma espécie de romance policial epistolar. Nesse livro, a forma da escrita terá uma grande importância, reforçando os elementos do enredo. E pelo pouco de escrita que já esbocei, será um desafio e tanto. O que me deixa muito animado.
Sobre um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, essa pergunta me remeteu ao conto “Biblioteca de Babel”, que parte do princípio de que, na biblioteca infinita ali descrita – que se confunde com o próprio universo –, “basta que um livro seja possível para que exista”. Na hora, pensei que gostaria de ler o livro pelo qual o narrador do conto de Borges anseia, quando escreve: “Não me parece inverossímil que em alguma prateleira do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para outros.”
Há três livros que estão sendo escritos há algum tempo e que, pelo que venho acompanhando e pelo afeto envolvido, espero com muita ansiedade. O primeiro é um livro de contos da minha companheira, Fabiana Turci, reunindo histórias em torno de receitas afetivas. É um projeto de escrita a partir da memória, e só esse fato já me interessa. Em especial feito pela Fabi que, como escritora, sempre constrói uma vida interior muito rica para seus personagens. Neste livro, isso vai se aliar a uma causa pela qual ela milita – o veganismo –, pois além da história virão as receitas afetivas em versões veganas. Aliás, nesse projeto a Fabi faz algo de que gosto muito, que é brincar com a forma. Os relatos e o modo de fazer a receita costumam ter uma mesma linguagem. Partem desse olhar íntimo marcado no texto, dessa vida interior que ganha palavras. O modo de fazer costuma ser também o modo de sentir a receita. Acompanho muito de perto esse projeto, desde seu nascimento num blog chamado “Laboratório dos sentidos” – que depois se desdobrou para outras frentes de diálogo. Sou o primeiro leitor de praticamente todos os textos. Por vezes, conversamos sobre eles antes de eles serem escritos. E o menino que fui virou personagem numa das histórias. Por tudo isso, e também pelo indizível que é próprio do amor e está além das palavras, quero ver as receitas-histórias já publicadas – e outras que vem sendo ou ainda serão cozidas-escritas – habitar as páginas de um livro. Uma espécie de caderno de experimentações culinário-literárias.
O segundo é um romance de ficção científica, cujo título provisório é “Chronos”, sobre viagem no tempo, que vem sendo escrito há quase vinte anos por um amigo muito querido, o Paulo Mainhard. Acompanho a escritura dessa história muito complexa e incrível desde que o livro era apenas uma ideia futura – lembro dele me falando, quando tínhamos vinte e poucos anos, que ele só escreveria o livro depois dos quarenta. Hoje eu sei que ele está num processo intenso de escrita. Na verdade, dele a está escrevendo nesse tempo todo, em muitos níveis. Vários de meus encontros com ele giraram em torno dessa obra. Já li algumas versões de um primeiro capítulo, constantemente reescrito. E nas muitas casas em que ele morou, já encontrei mapas da história do mundo nos próximos mil anos. O livro trata de um futuro complexo, um tempo que se pode conceber como real, diferente da maior parte dos livros do gênero, que trata o futuro de forma mais alegórica, como distopia. Aliás, na sua última casa aqui no Brasil, também havia uma linha do tempo, essa do passado, até mais ou menos aquele momento – março deste ano. Havia fatos históricos, culturais, os nascimentos dos dois filhos. Mas, em alguns lugares, havia acontecimentos ligados ao seu livro, como a chegada do personagem principal ao nosso tempo. A ficção lá irrompia em meio à realidade, e isso era lindo. Hoje, mesmo à distância, tenho tido a oportunidade de acompanhar um pouco seus estudos para personagens,insights, etc. Há várias dessas coisas aguardando minha leitura, no tempo em que for possível. Eu espero muito ainda poder ler essa obra pronta.
Por fim, o terceiro livro que ainda não foi escrito – ou finalizado – é um reunindo peças de outro amigo muito querido, o Marcelo Tosta. Ele é um grande dramaturgo que já escreveu e montou dezenas de peças teatrais. Sua escrita para teatro é muito forte, densa e poética; seu universo de personagens é vasto e muito diverso. Então, gostaria muito de ver esses textos – alguns jamais montados por ele – circulando e podendo ganhar novas interpretações e novos olhares.
Além disso, há muitos livros que ando esperando. Os novos da minha irmã, Roberta Tostes Daniel (entre os quais, um poema longo que ela começou a escrever), o romance que a Lilian Sais está escrevendo, um novo livro do Sândrio Cândido, cuja linguagem repleta de nostalgia me toca tanto, o primeiro livro da Mar Becker, autora que já leio nas redes há tempos… Dois livros que eu andava esperando bastante acabaram de ser lançados, que são os primeiros da Ingrid Morandian e do Matheus Bibiano. Já estão na cabeceira da cama, esperando para serem lidos. A Fabi, minha companheira, disse certa vez que todo livro, quando nasce, diz o que a literatura pode ser. Por essa razão, cada novo livro por vir me entusiasma tanto.