Tatiana Nascimento dos Santos é poeta, tradutora, copidesque e editora da padê editorial.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
eu nasci 7h35 A.M., gosto de me sentir como sendo pessoa muito matinal: manhã é uma hora maravilhosa do dia, pra mim. o tempo tá iluminado y fresco. a noite inda tá reverberando. eu acordo, fico guardando na memória os recados y notícias que os sonhos trazem (quando consigo lembrar). como tenho sonhos muito imagéticos y narrativos devo usar um bucado de minutos nessa despertação. dou uma esticada, uma mexida especialmente nos joelhos, nos pulsos, cotovelos, pescoço, dedos. desinvergar costa. diferentemente de antes de dormir, que é quando tenho muitas ideias pra escrever um poema, um conto, pela manhã eu fico mais nas sensações, nessa pyra dos sonhos, nisso de acordar o corpo, azeitar as articulações. aí levanto pra ir passear com a cachorrada num terreno baldio cheio de mato alto, rã, kero-kero, muitas borboletas mariposas maravilhas voadoras que num sei nomear. ecos do cerradinho na terra vermelha do DF. o leito seco dum rio: lembrança de que o cerrado é água, muita água. fica atrás do prédio onde tô morando. aí depois tomo um suco, um chá, depois de já ter comido um pouco de sol y de vento.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
acho que a escrita é um ritual de preparação pra minha vida, um como eu chego pro mundo. mais que a escrita na real, a palavra. ela é o rito inaugural/iniciático de muito dos processos existenciais, pra mim. e tenho um combinado desde 2014 que é escrever um poema novo todo dia. cumpro quase religiosamente. nesse mato alto eu sempre encontro um motivo (ou “inspiração”, como galera gosta de dizer), porque tem muita vida ali, muita minudência pulsante, interessante, diferente do que é comum pra minha existência de pessoa-humana-bípede-predial-tecnocrata-letrada, ao mesmo tempo que tem entulho, lixo, resto de coisa, resto de concreto cimentando nascente, plástico, refugo dos prédios, da servidão colonial dos prédios (é o lugar em que vi, uma vez, um “rapaz da limpeza” de um dos prédios vizinhos levar um mundo de balão amarelo amarrado numa fita looonga pra estourar. ele saiu arrastando aquela fita desde o prédio até quase o meio do mato, no caminho tem muita pedrinha, coisa pontiaguda, plástico, e os balões iam estourando, estourando. os prédios aqui têm salão de festas e quem faz a limpeza dos restos das festas são as mesmas pessoas que trabalham com a limpeza cotidiana do condomínio. acho isso muito emblemático desse bairro em que vivo, muito burguês, muito camada mé(r)dia da brasília concurseira, condominial, de só compartilhar o trabalho subalternizado. tem piscina também, a maioria dos prédios. só quem nada é quem mora. quem trabalha só limpa.)
enfim, me inspira muito. acho que 70% dos poemas que tão no “lundu,” (meu primeiro livro de poemas, que saiu pela padê editorial em 2016) foram nascidos ali naquele meio de mato.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
tododia (ou quase). é um pacto de vida que fiz comigo mesma.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
não compilo notas. talvez pra escrever contos (e o romance ainda inacabado que tá sendo montado, há anos, na minha cabeça) junto notas mentais, um movimento de braço de alguém chegando no metrô, um pedaço de conversa que escuto pelo caminho. mas pros poemas só espero a reação, a coisa que vem de dentro em resposta a alguma coisa que vi lá fora. eu realmente escrevo muito, e há muitos anos. e as memórias mais recentes que tenho de mim mesma são enquanto ser-escrevente. acabo tendo uma relação muito direta y visceral com a escrita; mesmo que a linguagem seja só um artifício, seja só recursiva, seja só uma ficção de significados-significantes, é uma ilusão que manejo bem. no fim das contas é tudo só um amontoado de palavras né. de projeções. mas enfim me movo muito aquaticamente, é meu meio natural mesmo. processo as coisas muito bem pela organização palavrística delas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
com exceção desse romance inacabado (que na real tem início e tem fim, faltam os meios, e isso vai acontecer quando eu sentar pra escrevê-lo), eu não tenho travas de escrita. mesmo tendo esse combinado de escrever um poema novo todo dia, às vezes eu não quero (ou não tenho tempo), então não sai, e pronto. num é um problema. quanto às expectativas, isso de ter montado uma editora própria (montei a padê em 2015 com a bárbara esmenia, uma poeta de sp, pra publicarmos autoras negras, lésbicas, trans, travestis, y meu primeiro livro foi a segunda publicação da editora, por onde também vou publicar o segundo, “um ebó de boca y otros [poemas]” que tá quase-pronto y sai do forno em março de 2018) é muito libertador de expectativas, por um lado, porque num tem contrato editor cobrança prazo a não ser os próprios; por outro lado, publicar o “lundu,” me levou a um nível de conhecimento, expandiu meu trabalho de poeta publicamente dum jeito beeeem cabuloso, simultaneamente a consagrar o próprio lundu (y talvez diz/faço qualquer trabalho…) como “meus melhores poemas”. isso no começo me deixou um pouco angustiada, e acho que o ebó só estar sendo publicado 2 anos depois tem a ver com essa angústia: ficar achando que tinha que “superar” lundu, que tinha que escrever um poema tão maravilhoso quanto ele. acabou que gastei um bucado de tempo comparando o que eu andava fazendo com ele e óbvio nada se comparava. nem tinha que se comparar né? depois de um tempo eu saquei isso y aí relaxei. entrei numa vibe (que é a que eu tô agora) de pensar “ai que alívio que já escrevi meu melhor poema, agora eu posso simplesmente escrever qualquer coisa, e tá tudo bem”. quando consegui me dixavar daquela angústia com essa sensação nova, pronto, consegui selecionar os poemas, convidar um coletivo pra cuidar da parte gráfica (na padê sole fazermos tudo a gente mesma, as editoras-fundadoras, mas pro ebó eu convidei o coletivo auá, que é um coletivo editorial aqui do DF que publica autorxs negrxs e indígenas), deixar seguir.
ansiedade eu não tenho né, sou muito mansa. tenho pressa pra coisa ficar pronta, mas pressa metódica, organizada, frutífera. e respeitando o tempo da coisa surgir, amadurecer, cheirar-doce. aí é só esticar o braço e pegar. e morder. idem com texto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
reviso todas vezes que releio. poema pra mim é processo. alguns poemas têm 30, 40 versãs. publico geralmente a mais recente. como tenho muitos canais de publicação (zine impresso, blog, duas fãpage na rede azul) costumo publicar uma versã em cada canto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
digito mais rápido que manuscrevo. então prefiro fazer no computador né. até porque fica tudo compilado num lugar seguro (até o próximo bug do milênio). os primeiros poemas que escrevi na vida adulta, 7 poemas em inglês (que pyra, num entendo o motivo), sumiram no mundo quando, anos atrás, deletei uma conta de imeio. a única pessoa pra quem eu tinha enviado eles, o hilan, perdeu também. tinha num desses poemas um verso muito bonito sobre a irmã de uma colega de escola que se queimou passando a roupa no próprio corpo. o verso bonito NÃO era sobre a queimadura, era sobre o xampu que ambas usavam, e que parecia se entranhar nas narinas dum jeito quase sólido. doce, forte, antigo. pois bem, depois que perdi esses poemas e vários outros em cadernos, retalho de papel-guardanapo-panfleto-pegado-na-rua eu criei o costume de escrever num imeio, fica tudo lá guardado. enquanto esses servidores houver, meus poemas haverão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
daí, daqui, da rotina, do peito. dum sopro que alguém me dá.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
da tese que fiz na universidade, no doutorado? vixi eu jamais voltaria àquela escrita. diria o que me digo faz uns anos, depois que peguei a manha do que fazer pra sobreviver saudável na academia: texto bom é texto pronto. e a tese tá pronta, ficou pronta rapidão aliás. tanto melhor. o que mudou muito no meu processo de escrita ao longo dos anos, desde a publicação do meu primeiro zine de poemas (lathspell, láááá em 1999) passando pelo primeiro blog (amontoadas) chegando no palavrapreta.wordpress.com, foi a minha vida.
eu vivi uns 10 anos numa depressão não-diagnosticada, que eu entendo agora como depressão; na época eu era muito de quebrada, vivendo numa família muito simples, pra ter acesso a algum pensar em adoecimento mental: era apenas uma criança/adolescente/jovem-adulta triste. perto dos 25 anos anos dei uma virada, gracias a uma acolhida maravilhosa de uma força energética vital, ancestral, muito poderosa, intempestiva, tempestuosa, trovejante, e sua correspondente material que foi conhecer o ativismo de mulheres negras, depois de estar já há algum tempo no ativismo feminista. me entender enquanto sujeita da diáspora negra y da dissidência sexual ressignificou, tematicamente, o mundo pra mim. e isso começou a transbordar na minha escrita duma forma muito exuberante, que nem se reconhecer pela primeira vez, mesmo, num espelho possível, não os espelhos quebrados da branquitude, do culto à magreza, da heterossexualidade… também teve que entrei na unb em 2004 pelo sistema de cotas pra pessoas negras afrodescendentes, o que orientou minha produção/pesquisa em letras – português a partir e em busca da epistemologia negra, da literatura negra, da análise textual dos materiais vastos produzidos por pessoas negras na diáspora, especialmente lésbicas negras. aí que eu conheci a poesia da audre lorde (antes da universidade eu conhecia só os textos teóricos-ensaísticos), depois a dionne brand, também a cheryl clarke, pat parker, barbara smith… isso foi cabuloso, um manancial de representação de lesbiandade preta! foi também quando me aprofundei na leitura de conceição evaristo, carolina de jesus, cristiane sobral, victoria santa-cruz.
em termos de forma, foi quando comecei a estudar sintaxe, e passei a ter mais zelo com a organização dos versos pra que fossem mais simples, mais limpos, mais retos. eu tinha essa preocupação muito na prosa (escrever com parágrafos todos do mesmo tamanho, por exemplo), mas na poesia teve a ver com a entrada na universidade: controversamente, com um ímpeto de escrever textos simples que fizessem sentido fora da universidade. poesia pra mim sempre foi esse sem-limites, esse comunicar mais básico, mais conectivo.
mais recentemente tô numa pyra geométrica, espacial, de produzir rupturas y silenciamentos dentro dos versos a partir de como a palavra ocupa lugar no papel. depois é ver como isso vai ficar na hora de falar o poema. porque cada vez mais tenho sentido a palavra falada como a casa da poesia, se um poema num cabe na minha língua ele já fica menos bom, eu já começo a gostar menos dele. aí vou tentando readequar né. começar a compor muito tem influenciado esse processo também. geralmente as canções já chegam prontas, letra y melodia; mas quando vou colocar melodia num poema ele muda muito, se renova pra palavra falada cantada. aí acho que cheguei mais perto da pérola.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
os projetos que quero fazer y ainda não comecei:
uma composteira comunitária pra diminuir a produção de dejetos sólidos y produzir terra preta pra plantio duma horta comunitária. uma residência artística pra acabar aquele romance. uma bolsa “por uma vida sem gaiola” de 300 reais por mês pra aprisionadores de passarinhos que topassem levar os pássaros pra santuários y se engajar em abolir todas as gaiolas do bairro. recuperação de nascentes de água em águas claras y outros bairros do DF. uma residência artística pra ocupar uma galeria vivendo numa casa (e ir montando a casa ao longo da residência) no turno oposto ao que outra pessoa ocupa a casa (y vai desmontando ela). passar uma temporada num santuário de pessoas não-humanas ajudando a cuidar dos bichos. montar uma tipografia y usar só tinta ecológica y papel reciclado pra publicar os livros da padê.
livro que fico lendo na minha cabeça enquanto ainda não existe:
tradução intersemiótica dos cânticos baleísticos em sequências de pulsar/iluminar em painéis de LED alimentados por energia solar (com as partituras nos anexos, y também os mapas de circuito de LED).