Tatiana Lionço é professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Inicio o dia na maior parte das vezes com compromissos familiares e por isso preciso deixar tudo preparado na noite anterior em relação às tarefas do dia a seguir. Sou daquelas pessoas que têm dificuldades para acordar cedo pois termino as tarefas de trabalho e domésticas em horários noturnos avançados. Pouco se discute que acadêmicas sejam mães, e no meu caso é evidente que preciso dividir meu tempo entre o trabalho e as responsabilidades domésticas. Acredito que esta seja uma questão importante embora bastante invisibilizada no meio acadêmico. Trata-se de um tabu, uma questão incômoda e nada bem-vinda quando associada ao trabalho acadêmico. Silenciamos sobre isso, por precaução ou mesmo pela convicção de que a academia não avançou em nada a consideração da heterogeneidade dos modos de vida de quem pesquisa e produz conhecimento. É como se todas as pessoas que seguem carreira acadêmica tivessem a disponibilidade para dividir seu tempo entre a produção e o parco descanso, sem considerar que para além do lazer como elemento fundamental para a manutenção da vida social e da própria saúde mental, há muitas pessoas, e sobretudo as mulheres, para as quais há outras responsabilidades incontornáveis que tomam tempo. Começo meus dias portanto acompanhando meus filhos no preparo e condução para a escola, que inicia sete e trinta. Isso quer dizer que acordo cedo, por volta de seis horas da manhã, mas apenas alcanço disponibilidade para o trabalho por volta das oito horas. Sempre que posso durmo mais. Posso dizer que anseio oportunidades para sonhar, na melhor das hipóteses, ou para simplesmente estar indisponível por meio do sono. Para piorar, sou bastante boêmia e faço questão de viver experiências noturnas na cidade. Isso significa que sou uma pessoa que dorme pouco e talvez isso explique por que anseio dormir: uma espécie de desejo que realizo sempre que possível, mas sempre parcialmente. Nas férias durmo pelo menos dez horas por dia sem nenhum constrangimento. Não está nos meus planos ser um exemplo de produtividade na contemporaneidade, esta época em que somos medidas pela qualidade da gestão de nosso tempo. Decidi fracassar, talvez porque eu tenha encontrado um amor, por ter filhos que também me permitem viver mais amor, porque tenho amizades que jamais ousaria deixar de alimentar, ou ainda porque tenho fortes inclinações depressivas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O modo como eu venho trabalhando na universidade implica muitas atividades presenciais. Para além da sala de aula, realizar projeto de extensão universitária e integrar comissões técnicas requer presença física, além do trabalho que realizamos na solidão do gabinete relacionado a estas atividades. Permanentemente palestro sobre temas acadêmicos e políticos, tenho grande disponibilidade para estar presente com as pessoas que se disponibilizam ao diálogo público. Eu escrevo textos acadêmicos muito menos do que eu gostaria, embora eu escreva sempre. Posso não escrever sempre textos acadêmicos, mas sempre estou escrevendo alguma coisa. Tenho em minha biblioteca a compilação de diários que mantenho desde a infância e adolescência. Mantenho cadernos diversos: para anotações pessoais, mas também para fichamentos de leituras, esboço de argumentos para palestras, notas para projetos específicos. Gosto de manter a escrita à mão para deixar meu pensamento menos livre de mim mesma. Quando você escreve no papel, consegue manter a atenção para ideias abandonadas, argumentos confusos, caminhos argumentativos díspares etc. Tudo isso se apaga nas edições de textos digitais, quando se busca precisar o pensamento. É como se você buscasse se livrar das próprias dúvidas na escrita higienizada pelas revisões facilitadas pelo computador. Jamais consigo iniciar a escrita de um texto acadêmico sem dispor de meus rabiscos à mão. Daí tenho que abrir espaço e espalhar materiais sobre a mesa, que vou acionando como uma artesã que necessita acessar diferentes elementos para criar algo. Já tentei realizar fichamentos em arquivos digitalizados mas sinto que no momento do aproveitamento eu sempre deixo de acessar conteúdos porque não estão disponíveis à minha mão, não é a mesma coisa abrir janelas que se multiplicam na tela. Posso fazer fichamentos em arquivo de computador mas dependendo de sua utilidade evidente para determinado texto, imprimo e disponho à mesa. Não suporto ficar olhando para o computador ininterruptamente, preciso sempre escrever e desviar meu olhar para o que se encontra à mesa. Nos últimos tempos encontrei muita dificuldade para escrever academicamente. Um dos motivos foi não encontrar tempo corrido para realizar este trabalho de organizar meu arsenal de escrita. Imagine que ninguém suportaria uma casa ou gabinete de trabalho amontoado de cadernos, livros e papéis dispostos à mesa. Por isso preciso de tempo corrido para fazer valer a bagunça, e caso contrário apenas sento diante do computador com o que tenho na cabeça, o que também serve para revisar arquivos. Como preciso de tempo, o melhor momento é à noite e madrugada adentro, pois durante o dia sou interrompida pelas reuniões, atividades presenciais acadêmicas e pela agenda de meus filhos. Outra medida que tomei foi gravar as palestras que eu realizo. Para além das anotações prévias, escutar palestras que proferi me surpreende no registro de lampejos muito específicos de pensamento, que dizem respeito ao contexto em que eu me encontrava para pensar determinado assunto, o público para o qual me dirigi, etc. Nos últimos cinco anos, compilei cerca de quarenta horas de áudio. Uma palestra de trinta minutos, por exemplo, já me rendeu um capítulo de livro, bastando transcrever e adequar a redação por meio da inclusão de referências e aprofundamentos de argumentos. Em outros momentos preciso pensar sobre um tema e escuto o que já debati a respeito há algum tempo. Me ajuda muito a construir argumentos e a não abandonar ideias interessantes que estavam relacionadas a bibliografias que li em outros momentos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tomo notas sobre o que estou lendo, pensando e sentindo diariamente. A escrita de um texto para ser publicado, no entanto, me exige um esforço concentrado. O prazo é um bom acionador do processo de imersão na escrita do texto, embora eu deva reconhecer que não consigo muitas vezes cumprir os prazos pois ainda não internalizei plenamente as condições de impedimento para o trabalho. Quando eu avalio se posso cumprir um prazo, esqueço de considerar que devo cumprir aquelas outras responsabilidades que me tomam o tempo. Idealizo que não estaria exausta e mendigando horas de sono. Por isso já perdi muitos prazos e sempre agradeço quando me estendem o prazo. Eu tenho vários textos abandonados nos meus arquivos. Perco o prazo, sou engolida pela minha agenda e deixo de concluir textos acadêmicos publicáveis. Penso muito sobre isso, sobre meu desperdício de trabalho acadêmico. Idealizo também que poderei então retomar o texto para outra destinação mas daí minha agenda me traz novos prazos e as atividades cotidianas me recobrem inteiramente. Sobre metas, eu diria que mantenho meta diária de leitura, e não necessariamente de escrita. Como as atividades presenciais são incompatíveis com a solitude necessária à leitura e à escrita, estabeleci há alguns anos que minha meta diária de leitura não pode ser inferior a cinquenta páginas, o que me permite ler dois ou três artigos ou alguns capítulos de um livro de meu interesse. Busco incluir nas disciplinas que ministro e em outras atividades acadêmicas de pesquisa e extensão bibliografias que preciso ler ou reler. Esta estratégia, no entanto, é precária, pois na formação temos sempre que retornar a textos importantes mas que não são necessariamente o que preciso ler no atual momento. Por isso esta meta de cinquenta páginas implica tempo de leitura dos textos que eu tenho que ler naquele momento para pensar o que eu preciso pensar, além dos textos que preciso ler para dar aulas e orientar estudantes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nos últimos anos eu entrei em uma crise em decorrência de minha não correspondência ao afã produtivista que impera na academia atualmente. Passei por situações de difamação pública que me fizeram reorientar meus interesses de pesquisa e estudo, como por exemplo o início da consideração crítica sobre fundamentalismo religioso. Amadurecer ideias leva tempo, não se resume ao acúmulo desenfreado de leituras, mas também a um processo de distanciamento em relação às próprias ideais de modo a construir posicionamentos críticos. Minha crise passou quando, navegando pela plataforma de perfis do Google Acadêmico, percebi que os textos que eu já publiquei foram citados bastante. Não adianta escrever muitos artigos se você não ajuda outras pessoas a formar seus argumentos sobre fenômenos de interesse comum. A crise passou quando percebi que pessoas que me desdenham academicamente se pautando na escassez de minhas publicações nos últimos anos tinham o triplo do tempo de carreira acadêmica e menos da metade das citações que eu tenho com o que já produzi até hoje. Isso me fez entender que há pessoas que sabem melhor do que outras o que é válido publicar, ou seja, que publicam argumentos que de fato contribuem para o campo, e não apenas exercícios intelectuais que servem apenas a si mesmas no intuito de quantitativamente forjar produtividade científica. Enquanto aparentemente eu não escrevia, posto que não estava submetendo artigos para periódicos acadêmicos, de fato estava continuamente escrevendo e publicando em outros meios, tais como imprensa, blogs e revistas não acadêmicas, mas que alcançam imediatamente um grande público. Quando me dei conta disso resolvi compilar escritos publicados na internet nos últimos cinco anos e organizar um livro, que trata exatamente do processo de difamação que venho sofrendo e apresenta minhas respostas públicas e reflexões associadas a este processo. A carreira acadêmica hoje não se diferencia muito do trabalho de funcionários em uma empresa privada que mede a competência por produtividade quantificável. No entanto, há pessoas que ainda se dedicam a questionar qual haveria de ser o propósito da universidade e portanto para quê serviria a produção de saber científico. Venho afirmando que meu modo de produzir conhecimento é o de uma academia de ação direta, conciliando minha competência argumentativa ao meu ativismo político. Não era verdade que eu não estava conseguindo escrever, eu simplesmente estava produzindo conhecimento e tornando-o público de outro modo, pois a situação assim me exigiu: precisei me defender pessoalmente e entendi a gravidade do momento histórico e político que estamos vivendo. Não seria prudente pensar e submeter a um periódico tais ideias para serem publicadas dali a um ou dois anos, era preciso dizer agora, a cada vez. Quando decido escrever algo para publicar, mergulho totalmente no processo de redação. Viro noites, jogo outros afazeres para o alto. Eu sei que não é um método a ser recomendado, mas no meu caso há algo no processo de decisão de produzir um texto que eu entendo que mereceria ser publicado que é da ordem da paixão, de uma convicção emocional de que eu tenho algo a dizer e preciso fazê-lo. Felizmente não sinto isso com frequência, pois caso assim fosse eu provavelmente adoeceria. Não conheço uma escrita branda, organizada, comedida. É sempre um processo sofrido de imersão em uma avalanche de pensamentos que me faz sentir necessidade urgente de organização. Evidentemente para criar todo este drama eu preciso fazer a bagunça toda: separar as anotações, escutar a mim mesma em gravações de áudio, dispor livros de referência sobre a mesa, etc. Acredito que estou entrando em uma fase em que escreverei mais textos acadêmicos, há muito argumento anotado, gravado, mas fundamentalmente eu estudei nos últimos anos sobre aquilo que me interessa conhecer. Não é nada fácil arriscar novos temas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando eu não consigo escrever eu simplesmente não escrevo. Eu nunca sinto que corresponderia às expectativas. Quando submeto um texto sinto aquele frio na barriga, tento disfarçar mas volto a reler o texto nos dias seguintes, logo mais adiante, sempre encontrando erros e omissões. Nunca penso que está bom, penso que estou pronta para me livrar daquele texto, até que de fato eu abandono o texto. Surpreendentemente, depois de meses ou anos, volto a ler e algumas vezes fico satisfeita com o que foi possível pensar. Aprendi que caso tenha como condição acreditar que o texto está ótimo eu nunca publicaria nada. Penso que é o que me foi possível realizar em determinada condição e que satisfatoriamente comunica o que tentei construir como contribuição a uma certa direção para a reflexão que entendo ser necessária ou importante de ser considerada por outras pessoas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Na maior parte das vezes é o prazo que define o momento de concluir a escrita, que para mim é mais ou menos o mesmo que desistir do texto. Dificilmente mostro para outras pessoas pois o prazo não permite, mas também porque não encontrei pessoas com esta disponibilidade. Talvez eu não me sinta à vontade para pedir favor deste tipo pois eu mesma sei o tempo que leva ler o texto dos outros. O que mais fazemos na academia é ler o trabalho das outras pessoas: parecer de artigos, análise técnica de projetos de pesquisa em comitês de ética em pesquisa, avaliação e revisão de trabalhos de estudantes. Eu realmente não me sinto confortável com a ideia de solicitar leitura para colegas. Talvez eu não tenha muita/os colegas ou talvez eu seja uma ótima colega.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A escrita à mão e a escrita no computador são processos inteiramente diferentes e eu adoto ambas. Não consigo trabalhar no computador sem dispor de minhas notas à mão, eu realmente entendo que o computador é uma ferramenta a mais, mas não substitui o livro e nem o caderno. Sou daquelas pesquisadoras que sempre prefere o livro impresso, por exemplo. Ensino meus alunos que é mentira que tudo se encontra na internet: o acervo da biblioteca da universidade majoritariamente não está disponível on-line. Gosto do ritual de acessar fisicamente o livro. Uma das melhores sensações da vida é encontrar em um sebo aquele livro que você procura há anos e que está esgotado, ou receber uma caixa pelos correios com os livros que você encomendou. O tempo da descoberta, o tempo do acesso, e também o tempo da leitura, que pode se dar bem depois de adquirido o livro. Assim também é com a escrita: o caderno para isso, o caderno para aquilo. Os cadernos que terminam rápido e os cadernos que só têm meia dúzia de páginas escritas. Encontrar anotações de anos atrás e se lembrar do que você leu, ler em suas próprias anotações argumentos que parecem novidade. Eu costumo dizer para estudantes que estão sob minha orientação que escrever é um trabalho braçal, que o trabalho acadêmico não tem relação alguma com as fantasias de genialidade que se constroem em torno de certas pessoas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vem de minha presença no mundo e nos espaços que eu ocupo. O pensamento é uma necessidade diante de condições que a vida apresenta. Sou muito emocional no meu processo intelectual. Não consigo pensar sobre algo que eu não considere importante em determinado momento. Não faz sentido pensar por capricho, distanciando-se das demandas da sociedade e do momento em que se vive. O único hábito que cultivo é fazer anotações sobre o que estou lendo, pensando, vivendo e sentindo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Eu diria que eu precisaria ter organizado melhor o meu tempo, cobrado uma melhor orientação, assim como não ter desistido daquilo que eu entendia ser importante pensar. O problema das pesquisas de pós-graduação é ter que barganhar a importância e a necessidade de se pensar o que já se está pensando, pois é aquilo que tem importância e que portanto é necessário conhecer. Eu teria recusado os obstáculos que me fizeram desistir de certas direções de pensamento, assim como eu teria então dedicado mais tempo para pesquisar, estudar e escrever sobre o que eu entendia ser o mais necessário pensar. Teria revisado o texto antes de abandoná-lo. Teria ousado mais na minha liberdade criativa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de mergulhar no estudo de certas pistas que tenho sobre minha ancestralidade para inventar um novo sentido para meu lugar e desafio no mundo. Algo como um esforço autobiográfico ancestrofuturista para me posicionar sobre a condição que me impuseram: a maldita, depravada, imoral, ao mesmo tempo que a representante do privilégio na violência estrutural. Eu, vinda de uma linhagem apostólica romana, mas também uma demônia contemporânea. É uma contradição e um não lugar que me deixa bastante inquieta e quero construir algo que me livre da obviedade de ser reconhecida como representante da violência estrutural, assim como de ser reconhecida como marginal, fora da norma. Quero me reencontrar com a minha ancestralidade herética para profanar as injunções que recaem sobre mim pelas palavras e pelo entendimento de outras pessoas ao meu respeito. Tenho lido bastante ficção científica. É curioso pois leio livros de ficção científica como se fossem teses de filosofia política ou análises sociológicas, inclusive das mais interessantes. Acredito que eu gostaria de ler um livro de ficção científica sobre temporalidade e sobre a aporia de não sermos o que somos, e sobre então em certa medida sermos o que não somos. É o que eu chamo de não não ser. Quando você não pode dizer que é alguma coisa mas também não pode dizer que não é essa alguma coisa. Eu me sinto neste não lugar, que é diferente de um lugar impossível. Gostaria de ler sobre a possibilidade de existir em um não lugar, não não sendo. Não não ser é uma técnica de resistência espiritual que inventei junto com meu parceiro de ativismo no anarquismo, o Amante da Heresia.