Tatiana Lazzarotto é escritora, jornalista e mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Planejo a minha rotina semanalmente. Tenho um quadro onde escrevo as principais tarefas para cada dia (compromissos fixos, atividades que preciso concluir) e um pequeno caderno onde detalho as atividades. Então, baseio-me nisso e quase sempre dá certo. Depois de quase 15 anos batendo ponto, descobri que a dinâmica que vivo hoje era o que mais queria para mim, embora ela dê mais trabalho. São muitos desafios: saber separar o horário de trabalho do lazer; ser disciplinada em relação às metas que eu mesma preciso estabelecer; não procrastinar; e levar a cabo todas as minhas ideias de textos literários (que são muitas).
Eu me obrigo a acordar mais cedo, para aproveitar mais as manhãs. Assim, consigo levantar com calma, tomar um bom café, brincar um pouco com meus cachorros (tenho dois, o Gabo e a Mercedes) e cuidar das minhas plantas antes de ligar o computador ou ler. Trocar o pijama por uma roupa “normal” me ajuda a internalizar: agora vai. Definitivamente não sou aquela pessoa que acorda com todo o gás. Admiro muito quem se levanta, escova os dentes e já liga o computador, eu preciso de um tempo para me situar na realidade e hoje tenho como fazer esses rituais com calma. Antes eu acabava usando o trajeto para o trabalho para me preparar, agora preciso me adequar ao espaço do apartamento.
Também incluí aulas de yoga online (se não consigo, pelo menos tento me alongar minimamente) e meditações. Essas atividades me ajudam a prestar atenção à importância da respiração e a me conectar com o presente. Um dos ensinamentos que aprendi no yoga é que um corpo flexível é resultado de uma mente flexível e eu acredito que uma mente mais aberta escreve muito melhor. Tenho buscado ser menos exigente e controladora com o resultado final do que escrevo, porque me cobro muito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de aproveitar a luz natural, então escrevo melhor durante o dia. A maioria das minhas plantas está no quarto que transformamos em escritório, o que deixa o ambiente mais acolhedor para escrever. Sinto que rendo mais em dias de sol, embora quando o prazo aperta isso não faça a menor diferença. Curiosamente, sinto-me melhor para revisar ou editar meus textos durante à noite, parece que estou mais atenta. Então, se tivesse que separar, deixaria o trabalho criativo para o período diurno e o acabamento/refinamento para o noturno.
Hoje minha escrita se divide em três frentes: a acadêmica (que toma a maior parte do meu tempo), com a escrita da dissertação; a literária, com os projetos de escrita (em que trabalho no tempo “livre”); e uma pequena parcela de produção jornalística, porque esporadicamente colaboro em alguns veículos, em temas ligados à minha pesquisa, de forma voluntária. Cada produção tem sua particularidade e para cada uma eu diria que há uma preparação.
Na literatura eu dependo de tempo livre para me dedicar, portanto, meu ritmo é mais lento. Geralmente jogo ideias em cadernos espalhados pela casa ou no grupo que tenho comigo mesma no Whatsapp (não me adaptei muito ao Evernote e afins, eles acabam virando lista de compras). Depois de despejar essas ideias, costumo maturá-las por um tempo e só depois voltar para transformar em textos. Já no jornalismo eu produzo menos e sob demanda, minha escrita é bem mais fluida e objetiva. Na produção acadêmica, sinto-me mais preparada para escrever quando tenho material suficiente compilado.
Prefiro escrever em um ambiente organizado, com tudo o que preciso à mão – caderno, blocos de anotações, fichamentos ou dados em arquivos digitais já organizados e fáceis de localizar. Também tenho uma garrafa de água na escrivaninha, ou me esqueço de me hidratar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro ter o hábito de escrever todos os dias, mas isso não significa que sejam textos prontos, estruturados. Tenho um caderno onde me desafio a fazer anotações diárias, mesmo que seja um parágrafo. É um espaço para ideias de textos, frases soltas, palavras que quero explorar, reflexões sobre o que tenho lido, esboços de personagens. Dali nascem algumas ideias que podem ser aproveitadas mais adiante. Não funciono com metas diárias, principalmente na literatura, porque, para mim, é um processo que exige mais do que simplesmente sentar e escrever. Produzo com mais afinco em períodos concentrados, o que mais me motiva é trabalhar num projeto específico, em que vejo começo, meio e fim. Se esse é o caso, coloco até um temporizador online para me ajudar a focar e me obrigar a fazer pequenas pausas. Apesar de parecer ritmo de fábrica, consigo produzir bastante. Primeiro porque o compasso é guiado pelo desespero, segundo porque tenho bastante facilidade para escrever rápido.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Gosto de construir meus textos pensando que estou tecendo uma colcha, costurando as diferentes ideias que absorvi depois das minhas observações e estudos. Enxergo o texto como um tecido (o que vem da própria etimologia da palavra, ligada a tecer, entrelaçar), com seus pontos, linhas, tramas e fios da meada. Isso ajuda a tornar a atividade mais poética para mim, porque me vejo mais como artesã da palavra do que como alguém que está preenchendo páginas de forma mecânica. Tenho esse olhar até mesmo quando estou escrevendo rápido, desaguando ideias em ritmo acelerado.
Na graduação, cursei simultaneamente Jornalismo e Letras-Português, então me habituei a um ritmo insano de leitura e produção de trabalhos. Também trabalhei como repórter de jornal diário, com deadlinesapertados. Acho que vem daí essa capacidade de escrever feito correnteza.
Considero importante ter material prévio suficiente para construir um texto, sinto-me mais segura. Além disso, evita retrabalho, porque o resultado final precisa de menos ajustes estruturais. E a própria “costura” que mencionei se torna mais orgânica, parece menos com a montagem de um quebra-cabeça e mais com um bordado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Apesar de ter facilidade de escrever rápido, ainda tenho minhas travas e autossabotagens. Quando isso acontece, procuro fazer exercícios de escrita criativa para desbloquear a mente – descrever objetos, reescrever trechos de livros que gosto ou até mesmo reler alguns dos meus trabalhos. Em 2018 publiquei o conto “Rio”, na antologia independente “Sós”, minha primeira publicação impressa e uma das coisas que me orgulho. Talvez por isso me inspire reler esse texto, porque é um relato de viagem e conta como me encontrei ao conhecer a terra de onde vieram meus antepassados. Mistura memória afetiva com algo que consegui concretizar num livro.
Minha procrastinação é relativamente ativa. Se eu tenho dificuldade em concluir alguma tarefa, geralmente é o dia que faço faxina, troco os vasos das plantas ou dou banho nos cachorros. Limpar a casa é um ciclo sem fim, sempre tem algo para fazer, então, é muito perigoso ir por esse caminho. O planejamento semanal me ajudou com isso, porque costumava preencher o tempo que eu deveria estar dedicada à pesquisa com projetos literários ou vice-versa. Poderia ser bom, mas a realidade é que estava sempre fazendo tudo com muita culpa, pois deveria estar focada em outra coisa. A terapia me ajuda a identificar por que eu acabo nesses ciclos, inclusive em relação à criação de expectativas e o medo de não as corresponder. Acho que não tem melhor saída para isso do que o autoconhecimento, embora a resposta possa levar uma vida inteira para ser encontrada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Faço pelo menos três revisões. Primeiro, uma leitura geral, para identificar erros estruturais. Depois, faço uma leitura minuciosa e nesse momento é comum eu reler os trechos em voz alta, inclusive dos textos longos. Isso me ajuda a perceber erros de pontuação, grafia, concordância. Numa terceira etapa, volto para a leitura silenciosa para uma última revisão.
Sempre mostro meus trabalhos para os amigos que gentilmente estão dispostos a ler, o que nem sempre é possível, porque todo mundo vive correndo. Adoro ouvir opiniões, ter a possibilidade desse outro olhar (que não é viciado como o meu para o próprio texto) é enriquecedor. O trabalho acadêmico é um processo muitas vezes solitário, mas, desde que entrei na pós-graduação, meu desafio é que ele seja menos individual e mais coletivo.
Aprendo isso com o Clube da Escrita para Mulheres, que frequento e também pesquiso. Se a literatura, que é uma atividade essencialmente individual, é um processo compartilhado entre as participantes, porque a área acadêmica também não pode ser? Na literatura ou na academia, ser mulher pode significar, muitas vezes, enfrentar espaços opressores e ser constantemente desafiada a ocupar e a resistir nesses espaços. Por que não juntas? Tenho conhecido mulheres escritoras e pesquisadoras que me inspiram cada dia a ser melhor e, para mim, é uma honra que elas possam emprestar seu olhar generoso para meus textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Praticamente toda a minha escrita se dá no computador. É claro que tenho as reflexões anotadas no caderno que mencionei, além dos cadernos que organizo notas e observações para o mestrado, mas é no computador que os textos efetivamente nascem e começam a tomar a forma que terão quando prontos. Além de digitar mais rápido do que escrevo à mão, consigo organizar melhor os textos, o que facilita muito a minha edição. Utilizo o papel para visualizar a estrutura do trabalho, organizar esquemas, fazer listas de assuntos que preciso incluir, notas e lembretes para os trechos seguintes. Mas é no computador que esse texto passa a existir, de fato.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que tudo de alguma forma funcione como referência para a minha escrita. Eu conheço muitas pessoas e me relaciono com elas de forma bastante profunda. Gosto de saber as histórias, as trajetórias, os detalhes de quem passa pelo meu caminho – e aqui não falo somente dos amigos, mas até de quem eu tenho uma relação menos íntima. Sou uma ótima “conversadeira”, daquelas que fazem amizades em filas de supermercados, porque estou realmente aberta a ouvir o outro. Brinco que um dia ainda crio um museu de pessoas, de tanta gente fascinante que já passou por mim. Então, posso dizer que esse conjunto – as pessoas e suas histórias – são uma fonte riquíssima para a minha escrita. Outra coisa que me move, desde sempre, é a imaginação. Cresci no interior de Santa Catarina, com um pai viajante e uma mãe que havia vindo de longe (Recife-PE), o que me deu consciência desde cedo de que havia outros mundos. Os causos que eles me contavam fizeram com que eu quisesse escrever histórias. Outro fato importante é que, quando eu era criança, meu pai abriu uma livraria que ele batizou com meu nome. Acredito que ali ele traçou meu destino de leitora e me aproximou da vontade de escrever. Essas são minhas memórias mais antigas e ainda hoje elas atravessam qualquer coisa que eu escreva.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando eu era mais jovem eu era bem destemida, o que é bem comum, mas para mim isso se traduziu na escrita. Na graduação eu fui uma pesquisadora inveterada, rodei o Brasil apresentando minhas pesquisas em congressos, publicando artigos. Nessa época eu também escrevia muitas crônicas, que publicava na internet, sem muito filtro. Com o tempo fui ganhando autocrítica e autocobrança, o que me impede muitas vezes de agarrar algumas oportunidades por puro medo. Acho que se eu pudesse reencontrar aquela Tatiana mais jovem, que arriscou ir para a Itália ser au pair sem saber cuidar de criança ou que se mudou de uma cidadezinha do interior para São Paulo, com a cara e a coragem, eu iria aproveitar mais para aprender com ela sobre teimosia e autoconfiança (risos).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu grande projeto da vida é escrever um livro sobre o meu pai, que faleceu em 2018 e que foi o grande responsável para que eu quisesse escrever e estudar, desde sempre. Ele adorava árvores e sempre me falava de um documentário francês a que tinha assistido na televisão, sobre a inteligência delas. Ficava fascinada em ouvi-lo falar sobre algo que o apaixonava tanto. Era comum que a gente conversasse embaixo de uma grande árvore que tínhamos no jardim e cujo crescimento acompanhamos por mais de 20 anos. Estou trabalhando em um livro que fala sobre a perda de um pai, e que também vai costurar essas memórias, sobre ele e a árvore. É algo bem desafiador, porque me atravessa de muitas formas. Talvez esse seja o livro que eu gostaria de ler. Espero que ele exista em breve.