Tatiana Faia é uma das editoras do projecto independente Enfermaria 6.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não particularmente. Tento ler no trem a caminho do trabalho, talvez essa seja a única coisa alegadamente criativa que faço de manhã. As minhas rotinas de escrita tendem a acontecer mais da parte da tarde e à noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
É preciso distinguir entre o emprego e o trabalho de escrever. O primeiro ocupa a maior parte do dia e o outro está constantemente nos bastidores. Não tenho grande tempo para rituais, escrevo como posso, quando posso, onde posso. Se tenho tempo, gosto de ir para um café ou para a biblioteca e normalmente ao entardecer. Quando estava a escrever o doutoramento tinha uma colega que dizia que preferia escrever na biblioteca porque assim havia coisas que nunca teria a coragem de escrever por estar no meio de outras pessoas. Isto ficou comigo, porque eu é mais ao contrário, mesmo quando se está a escrever um disparate às vezes isso não é tempo perdido. Talvez esse seja o meu único ritual. Tentar aprender a não ser impaciente com o que na escrita pode ser tempo perdido e não me auto-censurar. O poeta português Mário Cesariny dizia que nunca tinha escrito um poema dentro de casa, no meu caso isso não é bem verdade, mas cada vez mais escrevo fora de casa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária, portanto mais em períodos concentrados, mas sinto-me miserável se se passa uma semana em que não escrevo ou em que não me ocorre nenhuma ideia que possa desenvolver ou em que não tirei notas para escrever algo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um pouco mais desordenado do que isso, às vezes tenho uma ideia inicial e começo a desenvolvê-la e a pesquisar à medida que avanço, muitas vezes tenho pilhas de notas sobre coisas que me interessam e volto ou não volto a elas, um pouco como munições. Mas a falta de tempo normalmente faz a minha triagem rilkeana e garante que só passa para o papel aquilo que sinto uma profunda necessidade de escrever. A pesquisa é uma parte interessante da criatividade, mas as minhas pesquisas tendem a ocorrer mais quando já estou a escrever do que antes, o que reflecte o facto de o que faço não ser particularmente planeado. Ultimamente tenho tentado contrariar isso, mas sem grande sucesso, o que de alguma forma deixa transparecer a minha necessidade de deixar os textos acontecer.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com as travas da escrita, com bastante angústia e miseralmente (mas quem não?), porque quando não estou a escrever é como se tivesse deixado de fazer parte do mundo, há qualquer coisa de vital que parece ter sido posta de parte ou trancada num local de difícil acesso. Com a procrastinação, por outro lado, tento praticá-la naquela modalidade que, creio, era a postulada por Picasso: a inspiração é uma coisa magnífica, mas é melhor que te encontre a trabalhar. Procrastino bastante (alguém disse algures que são as duas marcas dos escritores, serem preguiçosos e egoístas, o que deve ter sido dito por alguém que nunca teve de assinar um texto na vida), mas menos agora que tenho menos tempo, e sinto que o tempo em que procrastino é uma espécie de traição para com a escrita, o tempo perdido como uma recordação da minha mediocridade, mas que paradoxalmente é também produtivo, que algo de relevante acontece nesses intervalos. Não sinto grande ansiedade de trabalhar em projectos longos, se ficar longo, ficou, mas normalmente os textos criam as suas próprias necessidades de extensão. Tento simplesmente não regressar a nada que não tenha segurado a minha paixão ou o meu compromisso: se for esse o caso, se algo que estou a escrever não garante o meu compromisso e um trabalho sequencial, é porque provavelmente falhei em algum ponto e não ficou bom que chegasse para me fazer voltar. Mas às vezes passou um ano inteiro em que eu não olhei para um texto e achava que tinha morrido, ou que o que ia fazer não era relevante o suficiente, mas às vezes regresso a esse tipo de ideias, tento terminar e consigo e no fim fico contente de não ter desistido. Nada é necessariamente uma paragem ou um contratempo se isso acontece. Se me sinto bloqueada, tento concentrar-me em outras coisas, conversar com amigos, café, cinema, sair da minha rotina, fugindo para outros países, ler outras coisas. Sobre as expectativas: as minhas nunca estarão satisfeitas, se por mais nada porque a auto-satisfação é o primeiro sinal da incompetência, sobre as dos outros acerca do que eu escreva, assumindo que essas existem: tentar aprender com elas. Mas a expectativa é uma questão secundária, se tem de ser escrito será, se depende das minhas expectativas e morreu pelo caminho, é porque provavelmente não tinha força ou relevância que chegasse para me fazer continuar. Pode soar como um método vagamente draconiano, mas para mim é o que resulta, pessoas diferentes lidam com isso de outros modos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende dos textos, há coisas que estão mais ou menos prontas numa primeira versão e não exigem grandes alterações. Frequentemente acontece-me entender que peguei por uma ideia no ângulo errado e tenho de recomeçar, bastantes coisas exigem cortes. Às vezes mostro para uma ou outra pessoa, mas normalmente quando já tenho uma versão mais ou menos acabada ou quando ainda não tenho nada ou muito pouco escrito e estou a desenvolver uma ideia – isso normalmente é relevante na fase da pesquisa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Notas à mão, rascunhos à mão, texto mesmo quase sempre a computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De uma mistura de observação, leituras, paixão, errância e desassossego. Há certos lugares e algumas pessoas que me inspiram, e há outras que têm visceralmente o efeito oposto, e às vezes descubro que mesmo isso também pode ser criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, boa pergunta. Há um método um pouco mais maturo, um pouco mais de consciência acerca das minhas falhas e limitações e de como escrever apesar delas. O que eu diria a mim mesma: não é tão bom como agora te parece. E provavelmente nunca vai ser, mas pode bem valer a pena só pela viagem. O mundo está iluminado quando estou a escrever e imerso na escuridão de outro modo, e esta é possivelmente a única coisa que me há-de manter civilizada para a vida. Talvez essa coisa que não é bem felicidade mas é uma forma de alegria não fosse tão clara para mim no princípio, quando comecei a escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma reescrita da Ilíada transposta para a contemporaneidade. Podia começar com a Helena de Tróia na década de 40 num café em Paris a ouvir Django Reinhardt enquanto espera pelo dilúvio. Uma Ilíada na contemporaneidade narrada do ponto de vista da Helena. Não sei porquê, sinto que há qualquer coisa de vital acerca desta ideia. Não sei se isto é um livro que conquistaria muitos leitores. Há tantos livros tão bons por aí que seria difícil de garantir que qualquer coisa por mim pensada ainda não existe. Talvez não tanto escrever o que ainda não existe, mas como dizia Orhan Pamuk, tentar escrever algo que me agradasse ler.