Tarso de Melo é doutor em direito (USP), editor, crítico e poeta.
Caro José Nunes,
abri e fechei, durante semanas, o arquivo com suas perguntas. Caí na besteira de ler as respostas dadas por outros escritores recentemente e já conhecia algumas anteriores, sempre muito boas e instigantes. Parabéns pelo projeto! Mas abri e fechei o arquivo com suas perguntas e elas me deixaram em parafuso. Como se eu olhasse para um espelho e não gostasse nada do que encontrei lá. Não me refiro às suas perguntas, claro, sempre muito pontuais e cobrindo tudo a respeito do trabalho com textos, mas ao que elas me faziam descobrir a meu próprio respeito. O que não queria ver era justamente o que sua enquete me fazia ver em mim mesmo, porque todas as questões circulam, de alguma maneira, a ideia do processo de escrita como algo que pode ser dominado pelo escritor, mas percebi que, na verdade, sou totalmente dominado por ele.
Quando você perguntou sobre como é minha rotina, em que hora do dia trabalho melhor, se tenho algum ritual para a escrita, se tenho metas diárias… sendo sincero comigo mesmo, constatei que não tenho respostas para nenhuma dessas perguntas. Já tentei ter algo parecido com rotina, rituais e metas para escrever (principalmente quando fazia o mestrado e o doutorado), mas fracassei lindamente: o texto nunca vinha na hora em que eu imaginava, respondendo aos estímulos que eu programava etc. Vinha quando dava, quase ao acaso, estimulado pelas informações mais improváveis e nos horários e situações menos propícias. Uma manhã e uma tarde dentro da biblioteca… e a capacidade incrível de desviar do foco: chegava concentrado, reunia os livros, começava a ler, fazia algumas anotações e, de repente, a memória começava a chamar para outras esferas. E depois uma noite em casa, sempre próximo da verdadeira feira livre que é a minha biblioteca desde sempre, e aí era ainda mais impossível fazer exatamente o que devia em termos de produção acadêmica…
E suas outras perguntas me fizeram descobrir algo muito inquietante sobre meu “processo”. Tenho sempre uma caderneta por perto, a qualquer hora do dia, em que anoto as mais variadas tarefas e ideias. Quando você perguntou se é difícil começar, como me movo da pesquisa para a escrita… percebi que nunca sei exatamente a que forma textual (um poema, um artigo, um “post”…) se refere a primeira anotação que faço. O que poderia ser o embrião de um artigo pode se converter em um ou dois versos. O que poderia ser um verso quebrado pode se converter no título de um artigo. Salvo quando escrevo sob encomenda (uma resenha, por exemplo) ou dentro de algum projeto já em andamento, as linhas que anoto não têm, digamos, “natureza prévia”. E acho que isso diz muito sobre a minha dificuldade para lidar com suas perguntas.
Trabalho em tempo integral com textos: petições, poemas, artigos, ensaios, mensagens, postagens, projetos. Escrevo-os. Leio-os. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Há mais de vinte anos. Alguém que sabia disso um dia me perguntou se eu não “confundia os textos”. É claro que, nessa pergunta, vai um peso negativo para a ideia de confusão. Demorei a perceber, no entanto, que o núcleo da minha escrita está justamente na confusão. Na forma como do texto lido (alheio) passo, sem muita ciência, ao texto escrito (meu, em parte meu). Na forma como qualquer texto escrito, ao menos num primeiro momento, pode assumir as feições mais diferentes. Da palavra estranha que me aparece na redação da uma petição pode surgir um verso. Da ideia que se arma durante a redação de um verso pode surgir algo a ser desenvolvido num artigo. Do convite para escrever sobre um tema, autor ou livro específico podem surgir diversos outros textos, menos aquele que me propus a entregar. Enquanto o prazo corre.
Por isso, quando você pergunta “Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?”, minha sensação é de que estou diante de uma encruzilhada. Uma porta para a qual não tenho a chave. Se eu separar a escrita de um artigo científico das outras escritas que me perseguem durante o dia, posso até dar uma resposta mais ou menos parecida com a de outros colegas, mas a questão, para mim, é não separar.
Quando estou escrevendo “sobre algo”, é claro que consigo fazer um projeto, estruturar previamente o texto, imaginar quantas páginas deve ter, o que devo citar, qual a forma final que imagino para o texto (afinal, sou professor de Metodologia da Pesquisa…), mas percebo que, para além da parte “controlável” dos textos, mesmo de textos científicos, o que mais gosto dos textos de que mais gosto nasce para além do controle que o autor tem sobre suas ideias, sobre o texto, sobre as palavras. Tem um ponto em que o projeto tem que ser transcendido, superado e, até mesmo, negado para que o texto consiga dizer algo que, de fato, justifica todo o esforço da leitura e escrita. É esse o ponto que mais interessa: em poesia, em teoria, em todas as formas de escrita.
No meu caso, essa aposta na confusão e a ideia da escrita como a busca por algo que, de partida, não se conhece completamente, passa até mesmo pelos diversos materiais que uso: uso lápis para fazer alguns grifos e sinais nos livros que estou lendo; uso canetas para anotar em pequenos papéis que sempre carrego no bolso – normalmente com as mais variadas tarefas do dia –, em post-its e no caderninho em que anoto de tudo, desde uma palavra solta a um livro ou filme que alguém indicou, passando pelas ideias todas que me vêm do noticiário, das redes sociais, da conversa com alguém ou da conversa entreouvida por aí. E hoje em dia anoto no celular, claro, durante uma caminhada, no carro, na moto, no ônibus. É desse emaranhado de anotações que tento arrancar algo para dar forma. Admiro autores que têm textos prontos na gaveta, mas meus textos só ficam “prontos” quando caminham entre essa gaveta caótica e a publicação.
É isso, meu caro. Lamento não ter conseguido responder às perguntas da forma como vieram. Mas acho que, pelo que disse acima, você sabe que eu não conseguiria negar minha vocação para a deriva. E foi ótimo derivar a partir de suas questões.
Muito obrigado, grande abraço,
Tarso de Melo