Tanyse Galon é poeta, enfermeira, doutora em ciências (USP) e professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acho que se eu disser que sou uma geminiana ferrenha (gêmeos com ascendente em gêmeos), eu já consigo responder a essa questão. Não vivo sem uma agenda de planejamento semanal, com tudo anotado e tudo organizado, ao mesmo tempo em que cada dia da semana precisa ter quase uma novidade ou algo diferente a ser feito se comparado ao dia anterior. Para mim, não há prazer em acordar cedo e não há satisfação com a ideia de rotina fechada. Sou uma pessoa noturna, que gosta de mudanças, de uma vida mais dinâmica. Meu trabalho como professora universitária de certa forma me possibilita essa flexibilidade, pois atuo no ensino, na pesquisa, na extensão, na gestão, em frentes diferentes, tendo compromissos e responsabilidades, mas também exercendo alguma autonomia, alguma possibilidade de criar as coisas. Hoje tenho uma reunião, amanhã estarei em aula, quinta-feira participo de um evento e na sexta-feira tenho que enviar um relatório, mas tenho uma lacuna do dia para escrever no meu blog ou me dedicar às poesias: esse é um ritmo de vida que combina mais comigo. Na escrita da poesia, por exemplo, não há rotina fechada, uma agenda de escrita periódica e organizada. As poesias surgem quando querem, e corro para escrever uma palavra, uma frase, uma ideia, independente de onde estiver. Só quando o projeto de um livro surge, que uma certa rotina de escrita se estabelece, ainda que com alguma fluidez. Logo, é a partir desse lugar que acredito que a poesia exerça força sobre mim. Ela não me vem como cobrança e sim como desvio às exigências do trabalho, do tempo, da civilização. A poesia para mim surge no emaranhado dos dias, atropelando as rotinas. Por isso ela me seduz.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Convivo com duas escritas um tanto distintas: a científica (artigos, projetos, etc.), devido ao meu trabalho na universidade, e a poesia, enquanto um projeto de vida. Sou professora universitária e desenvolvo pesquisas sobre a saúde dos trabalhadores, nas quais a escrita acontece regida pelo tempo dos prazos, das demandas, das necessidades profissionais. O ritual de preparação, nesse caso, é frio e calculista: sentar-se, abrir o computador e escrever. Nesse universo da escrita científica, meu prazer acontece no levantamento do material da escrita, no trabalho de campo, nas entrevistas, nas reflexões textuais sobre as experiências de vida e trabalho. Assim, a paixão pelo tema carrega a escrita científica nas costas, com todo o seu peso burocratizado, e me faz seguir sem desanimar. No caso da poesia, o ritual é completamente diferente. Ela sempre arranja um jeito de vicejar, de se manifestar. A poesia para mim é um encontro repentino. As ideias primárias surgem no meio do cotidiano e corro para registrá-las. Certa vez, tomando café com meu marido, interrompi nossa conversa para anotar uma palavra, frase ou ideia para uma poesia. Temo muito o esquecimento, como se a sombra da poesia aparecesse e fosse uma oportunidade única de tocá-la, uma fração de segundos. Também já fiz anotações sentada na rodoviária, esperando o ônibus chegar, ou dentro do hospital, no intervalo do estágio com os alunos. No meu caso, a poesia vem “do espanto”, como dizia Ferreira Gullar, e depois que se apresenta, constrói-se a partir da vontade, do desejo, e claro, num terceiro momento, de um verdadeiro labor. Depois que a ideia central me encontra, alguns rituais passam a existir. É como conhecer uma pessoa nova. A poesia chega, a gente se conhece, e temos encontros esporádicos: escrevo em um bloco de notas, no ônibus a caminho do trabalho, depois do expediente, depois do jantar. Com a intimidade, passo a me dedicar mais a ela. Transcrevo a poesia para um documento no computador, e passamos mais tempo juntas. Neste momento, o labor acontece, o lapidar, o sentir a cadência da poesia, o pensar e rever cada palavra com esmero, até que cheguemos a um acordo supostamente final.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Considero que tenho uma espécie de antena ligada para o escrever, mas sem cobranças, sem metas diárias, sem a obrigatoriedade de escrever de forma recorrente. Na infância, escrevia poemas e participava de concursos literários na escola. Na adolescência, a escrita hibernou e passei a dedicar-me mais à leitura. Com a faculdade e a pós-graduação, a escrita científica tomou espaço. Em 2016, fui estudar em Barcelona e, ao passar por uma casa de artes, comprei um caderno, determinada a voltar a escrever poesias. Acho que a poesia retornou para mim naquele momento por ser uma fase de distanciamento do turbilhão do cotidiano, por estar mais em contato comigo mesma, em uma cidade que transpirava arte, etc. Dalí em diante, a poesia passou a fazer parte de mim com mais força, como um projeto de vida, mas um projeto livre e fluido, que não envolve cobranças. Desde então, escrevo quando a poesia me vem de surpresa. Claro que, ao mesmo tempo, há espaços e tempos mais férteis para a escrita. O livro de poesias “O corpo no meio”, que publiquei em 2020, foi escrito em um período de três anos, em dias aleatórios, durante minhas viagens semanais de duas horas e meia a caminho do trabalho, de Ribeirão Preto – SP para Uberaba – MG, em notas no celular. Nesse período, eu não pensava em uma publicação; escrevia como um processo terapêutico, para lidar com a solidão e com as dificuldades do momento, tanto particulares quanto do mundo. Depois, no período da pandemia, tendo em mente um projeto mais concreto, os trabalhos se tornaram sistemáticos e diários. A partir desse momento, estabeleci metas para escrever, reunir as poesias, construir as parcerias e publicar o livro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A partir das ideias que emergem do cotidiano e se tornam pontos de partida em forma de palavras ou frases, rascunhadas em bloco de notas no celular ou no papel, a escrita tende a ter o “barro”, precisando agora das mãos para ser tecida. A partir daquela anotação primária, eu sigo escrevendo, trabalhando na poesia, com um espírito que não exige prazo, dia para começar ou data para terminar. Algumas vezes uma anotação hiberna por meses, e começo outra, para depois voltar à primeira. Como já mencionei, sou geminiana, do tipo que lê três livros ao mesmo tempo, deixando a vontade e o desejo direcionarem o quê, como e quando. Inicialmente, esse modo de pensar a escrita pode soar sem organização e sem foco; mas percebo que, no meu caso, quanto mais eu me disperso, quanto mais leio outras coisas e vivo outros momentos, eu vou criando uma certa bagagem, como alguém que viaja por lugares diferentes, mas sempre volta para casa. Então, ao ler livros, assistir filmes, documentários, ouvir músicas novas e antigas, em suma, ao me dispersar, eu sinto que volto para a poesia mais fortalecida, com mais recursos, com mais ideias, com mais direção. No meu caso, ter ideias e notas suficientes é a parte mais natural e fluida do processo. O mais difícil é lapidar a poesia, aparar as arestas, ao mesmo tempo em que ela precisa de liberdade, de quebra das grades, de abertura. Esse é o maior desafio.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas na escrita inegavelmente ocorrem. No caso da poesia, a procrastinação me incomoda muito menos do que a preocupação com as expectativas. Quando meu livro ficou “pronto”, quando as poesias já formavam corpo e caminhavam para o material final, para a última versão do PDF a ser enviada à gráfica, a incerteza sobre a recepção da obra certamente se manifestou. Diante dessas questões, meu trabalho interno passa a ser o de elaborar as afetações, tornando esse processo uma busca por autoconhecimento, mais do que por preocupação com a obra em si. Busco acolher as sensações: exercito pensar que as pedras formam o caminho e que são essenciais para o meu processo de escrever e de ser escritora. Se hoje não consigo terminar uma poesia, embora impaciente com o bloqueio, eu digo a mim mesma que não preciso terminar, que isso não é um problema. A experiência com a escrita também me ensina a ser tolerante e a respeitar a mim mesma, a ver que, se em projetos anteriores as barreiras da escrita foram ultrapassadas, agora não será diferente. Que o processo criativo, assim como tudo na vida, não é uma linha ascendente, mas sim um subir e descer, um escrever e não escrever, um estar ativo e hibernar para se restabelecer. Busco me lembrar de que as travas da escrita não são desvios a serem evitados, mas são parte inerente e importante do processo. Penso também nos grandes escritores ou cineastas que me inspiram, que também expressaram seus bloqueios, como Hemingway ou Fellini, transformando essas inseguranças em grandes obras. Não se trata aqui de me equiparar a eles, mas de tê-los como inspiração do humano, daquilo que também eu sou. Pois é uma humana que escreve, e essas travas é que fortalecem o caminho do escritor, preparando-o para o momento de abertura das grades. Em verdade essas travas são, ao final, sensacionais, pois elas mostram o poder da poesia sob quem a escreve.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu diria que essa pergunta foi a que mais me impactou, que mais me levou a refletir, que me gerou mais perguntas do que respostas. Explicarei o porquê. Creio que há poesias que parecem sair prontas, inteiras logo que escritas. Outras (eu diria a maioria) exigem longa revisão, demandam mais tempo e olhar, mais labor. Procuro ser a pessoa que, ao fim, irá olhar a poesia e dizer: está feito – numa espécie de detentora dos direitos autorais, num afã de ser a tutora da poesia. Em seguida, esse desejo de posse se desmorona: lembro que a poesia vai além de mim, que ela se recriará em redes com outras pessoas, ou quem sabe desaparecerá, se assim quiser. Esse processo gera em mim um sentimento dúbio: a alegria de ver a poesia se mover no outro e o medo de uma possível “desaprovação”, de “não corresponder às expectativas”, como discutimos anteriormente. Mostrar o trabalho para uma pessoa antes de publicá-lo talvez materialize isso, essa necessidade de validação. No entanto, o que é a poesia se ela não encontrar o outro, se ela não caminhar pela vida? Assim, quando mostro um material a alguém de confiança antes de publicá-lo (e de fato eu faço isso), percebo beleza, ansiedade, êxtase, expectativa, medo, alegria e vulnerabilidade, tudo ao mesmo tempo. É um misto de sentimentos, mas todos necessários e interdependentes. Ao final, sinto gratidão ao ver que aquela pessoa está lendo meu material, debruçando-se nele, dedicando-se, fazendo parte daquele processo, daquele território tão íntimo e tão aberto que é a poesia. Assim me senti ao ler o prefácio do meu livro, escrito pelo grande poeta Luiz Frazon. É um ato de generosidade, de troca humana. É um alimento para a alma do poeta.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A tecnologia me auxilia na fluidez e no registro do processo de escrita. Utilizo com frequência o bloco de notas do celular, que me permite anotar ideias em qualquer local ou momento, fazer acréscimos ou alterações nas poesias de forma prática e registrá-las de um modo seguro e já conectado a outros dispositivos, como meu computador. Com a poesia digitalizada, também consigo ter uma ideia da sua imagem, da sua materialização no livro, do seu corpo físico. Ao mesmo tempo, vivo uma relação de amor e ódio com as tecnologias. Considero a escrita à mão e a leitura de livros físicos como algo importante do ponto de vista estético, cognitivo e até emocional, e não consigo abrir mão delas. Querendo ou não as tecnologias como se estruturam hoje – sob uma lógica radical do capital – também estão fechando livrarias e afetando editoras e autores. Ao mesmo tempo que o universo dos livros digitais gera muitos efeitos positivos, como acessibilidade, o livro em mãos permite uma relação estética íntima, única, sem possibilidade de ser trocada em um clique. No meu livro, por exemplo, tive a dádiva de ter como parceira a artista Marcella Mazieri, que produziu ilustrações à mão, em diálogo com as poesias. Apreciar essa produção no livro físico se difere e muito do formato digital, assim como contemplar uma obra de arte em um museu se difere de vê-la reproduzida na internet. Então penso que as tecnologias não devem ser demonizadas, podendo ser vistas como facilitadoras, porém, não deveriam colonizar as diversas possibilidades e matizes do campo da literatura e da arte.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Considero-me uma pessoa muito sensível, uma esponja ambulante, a tal ponto que não sei se me tornei enfermeira, professora e poeta por essa característica, se a enfermagem, a docência e a poesia me tornaram assim, ou as duas coisas. Logo, as ideias para as poesias parecem me rondar a todo o momento, partindo das conversas, ao ouvir um aluno, ao entrar em um hospital, ao atender um paciente, ao estar em silêncio comigo mesma. Por outro lado, apesar de toda a potência de vida que a sensibilidade gera, eu também me sinto sempre no limite do perigo de carregar o mundo nos ombros. Assim, a escrita da poesia vem para materializar, externalizar essa internalidade que pode pesar, que precisa sair quase que por falta de espaço, por necessidade de elaboração. É nesse sentido que acredito que a poesia, para mim, tem um caráter também curativo, seja a mais bela, seja a mais dura. Não defendo aqui que a poesia tenha um objetivo, sequer definitivo, nem que gere isso em todas as pessoas, nem que os poetas busquem essa finalidade. Sabemos que a poesia é muito mais, mas para mim sempre foi um antídoto certeiro. Já me curei muitas vezes lendo Elizabeth Bishop ou Manoel de Barros. Também me curo escrevendo poesia. Se ter saúde é ter potência para lidar com a existência, a poesia é sinônimo de saúde para mim. E saúde é criação, é potência. Como diz Clarissa Pinkola Estés em sua obra “Mulheres que correm com os lobos”, toda mulher possui uma potência criativa, selvagem. O que precisamos é ultrapassar a domesticação que a civilização nos impõe, para encontrarmos essa mulher selvagem, essa mulher que quer criar, que quer vicejar. Acho que esse aspecto também vale a todos os seres humanos. Claro que o exercício permanente de ler, de escrever, de escutar, de buscar, de se abrir ao mundo, nos torna pessoas mais criativas. Porém, segundo Clarissa, a criatividade virá também do exercício de olhar para dentro, de buscar esse ser que todos nós somos, um ser de puro potencial criativo, libertando-o para que ele se exerça. Assim, aos trancos e barrancos, tenho buscado esse árduo processo de criar para vicejar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo, exercitando a escrita e seus caminhos de flores e pedras, acredito que fui conhecendo a mim mesma, respeitando-me e tateando meu próprio modo de ser na poesia. Depois da recente experiência do primeiro livro, sinto que aprendi alguns processos: consigo entender minhas (des)rotinas de escrita, visualizar uma certa identidade própria e aproveitar mais o escrever, no sentido do prazer. Se eu pudesse voltar ao começo, creio que diria a mim mesma para seguir na poesia como um projeto de vida, um projeto de me constituir e de me exercer, mais do que um projeto a ser “avaliado” por outrem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro para pessoas em geral, para refletirmos sobre o conceito de saúde de uma forma livre, menos científica, mais poética, mais existencial, mais calcada na experiência. Não consigo desvincular o campo da saúde com o campo das artes. Para mim, o trabalhador da enfermagem também é um poeta. Ele lida com a vida, a morte, as histórias e os sentimentos humanos mais fortes e profundos. Há muita intensidade dentro dele, com potencial de tornar-se poesia. Os livros na área da saúde costumam ser mais duros, mais objetivos, restritos a um público específico, e por isso gostaria de conduzir esse projeto, no desejo de que muitas pessoas diferentes se encontrem na leitura e sintam-se tocadas numa dimensão mais existencial e humana. Sobre o livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe, penso que seria uma biografia da minha avó Limercí Assugeni, por ela escrita. A ela dediquei meu livro de poesias, pela imensa gratidão que sinto por tudo que me ensinou, por tudo que me fez ser. Gostaria de conhecer sua trajetória de vida com mais detalhes; ouvir de suas tristezas, de seus amores, de seu poder; descobrir coisas que nem imagino. Acredito que a vida dela é puro amor e puro ensinamento, e sua biografia teria a potência de tornar qualquer pessoa um ser melhor.