Taniele Rui é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, autora de “Nas tramas do crack: etnografia da abjeção” (Prêmio CAPES de Tese).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faço café coado e vou tomando aos golinhos. Enquanto como, dou uma ajeitada na casa, arrumo minha filha. Começo a trabalhar depois de deixá-la na escolinha. Se tenho algo pendente, acordo bem cedo para fazer antes dela acordar. No correr do semestre é bem puxado, mas há dias, os necessários, em que consigo ter um pouco mais de calma para trabalhar com qualidade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã e depois das 16h, são horários que me sinto mais bem disposta. Depois do almoço faço atividades que não exigem muita concentração. Tenho hábito de começar a escrever relendo o que produzi no dia anterior, vou trocando palavras, ajeitando frases, eliminando trechos desnecessários e daí prossigo… Isso toma tempo, mas, da minha perspectiva, vai deixando o texto mais consistente também.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Na situação atual, me desdobrando entre as atividades cotidianas da vida universitária, uma filha pequena e a ideia de uma nova pesquisa, tenho escrito por encomenda. Os prazos são o norte e tento me organizar para cumpri-los. Nem sempre é possível. Mas fui ficando bem tranquila quanto a isso. Salvo em situações muito específicas, os prazos podem ser negociados e os colegas compreendem o que se passa, há muita ajuda nesse sentido. Quando entendi que entregar um texto hoje ou dali uma semana não vai mudar muita coisa, passei a sofrer menos e a aproveitar bem mais os momentos de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu frequentemente lido com a “página em branco” colocando, primeiro, as situações empíricas que quero descrever, os trechos de entrevista que quero destacar, as citações e frases importantes e daí vou costurando esses materiais com meus argumentos. Gosto de escrever na sequência, da introdução para o fim e nem sempre tenho um roteiro prévio, pois a própria escrita vai demandando uma organização específica. Penso escrevendo, então muita coisa não prevista aparece durante o momento em que escrevo. Acho isso tão fascinante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Em momentos mais dramáticos, eu realmente consigo ser bem auto-destrutiva, de modo impublicável. Dentre outras coisas, fico vagando pela internet, arrumo mil outras coisas super-urgentes para fazer na rua, fico incomunicável. Não poucas vezes, me sinto uma fraude, alguém sem ideias próprias, pouco inteligente. Ainda assim, ao longo do dia me forço a trabalhar. Vou revisando o já escrito, leio um texto importante para a argumentação até que… uma hora, um outro dia, uma semana depois, simplesmente, as ideias vêm e trabalho com muito entusiasmo, entro em outro estado, gosto do que produzi, sinto que avancei em alguns aspectos e, sobretudo, que aprendi. É sempre o mesmo processo. Tenho guardada aquela imagem do Weber, em Ciência como vocação, em que ele diz que as ideias às vezes vêm quando ele caminha ou toma banho, mas que, para elas virem, é preciso trabalhar muito antes, sentado, enfrentando um assunto. Com cada texto sinto esse momento de imersão e devoção a ele. Duas, três, quatro semanas em que, mesmo fazendo mil coisas, é ele que está lá me martelando… E uma hora, de tanto ser gestado na cabeça, ele brota, quer nascer, vem com força.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como disse, reviso o tempo todo enquanto escrevo. Se eu trabalhar vinte dias num artigo, vou revisá-lo vinte vezes. Sempre passo para outras pessoas, frequentemente pessoas especializadas no assunto sobre o qual estou escrevendo; e tento testá-lo apresentando versões mais avançadas em congressos e palestras. Não tenho dúvidas de que, com outras leituras e visões, o texto fica muito, muito melhor. Quase pronto, eu ainda o imprimo e leio no papel. E, finalmente, deixo o texto dormir uma noite, leio-o mais uma vez antes de entregá-lo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço fichamentos à mão, diários de campo à mão; mas o texto final é sempre no computador. Fui desenvolvendo uma boa relação com ele. A capacidade tecnológica de permitir a movimentação de ideias de um parágrafo a outro, do início pro fim, de copiar e colar de outros documentos, de reorganizar a apresentação de dados funciona quase como um processo artesanal; um mosaico, um bordado, um fazer-desfazer que exige muita dedicação. É um trabalho que realmente curto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não consigo pensar sozinha, só penso em contato com os outros. Assim, prezo muito conversas e, mais que tudo, a abertura ao mundo. Gosto de caminhar prestando atenção nas coisas, na cidade e me interesso muito pela história de vida das pessoas. Também faço “andanças virtuais” interessada nessas vidas. Em situação de pesquisa, frequentemente alguém tira sarro de mim por eu perguntar demais; quem me conhece mais pessoalmente, sabe que eu faço isso o tempo todo. Enfim, no meu caso, acho que a criatividade está atrelada a uma curiosidade e a um interesse genuínos pela vida dos outros. É de onde tiro minhas principais ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Foi ficando, ao mesmo tempo, mais difícil e mais prazeroso escrever. As pessoas vão conhecendo nosso trabalho e isso gera internamente uma vontade de corresponder a expectativas, de apresentar um trabalho que seja mais interessante e original que o anterior. Nem sempre isso é possível. Escrever não é um processo linear, mas é feito de idas e vindas, tentativas e erros… Alguns textos ficarão melhores que outros e é preciso humildade para conviver bem com isso. Por outro lado, como há menos tempo para escrever e já há algum acúmulo, nas horas em que isso é possível, sentar e desenvolver uma ideia se tornou algo muito gostoso. Então o que tenho pensado é fortalecer mais a segunda sensação que a primeira, mais o prazer pessoal que a busca pelo reconhecimento alheio. Escrevo porque gosto, porque é o que faço de melhor. Escrevo sobre algo que faça sentido para mim, que quero desenvolver e aprofundar e que ao mesmo tempo vá fechando ciclos. Cada texto meu é um fechamento, uma pausa na reflexão. Acho bonito isso.
Em relação à segunda questão, como sempre estudei temas sociais muito midiatizados, quando escrevi a tese ficava bastante preocupada em estar atualizada sobre os últimos e mais quentes acontecimentos. Hoje já tenho outra visão sobre a temporalidade da escrita. Na minha visão, as ciências sociais não são, nem devem ser, um jornalismo bem fundamentado. Então hoje escrevo para organizar situações, para compreender processos, para deixar uma contribuição aos que vierem a se interessar pelo assunto depois, para fornecer novas percepções, para ensaiar uma análise. Enfim, o que diria a mim mesma é que a luta com a escrita e a partir da escrita é um trabalho de muitíssima importância, mas seus frutos pertencem a outro tempo. É como deixar sementinhas. Para alguém, um dia, aquilo fará sentido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tô animada com um novo projeto que consiste em simplesmente acompanhar e contar a história de pessoas idosas que viveram a vida toda em circulação institucional. Quinze anos num abrigo, dez num manicômio, outros vinte em programas assistenciais, por exemplo. E, com isso, contar a história de como essas pessoas vivem nessas instituições, o que levam e o que deixam ao passarem de uma a outra. É algo que quero fazer faz tempo porque, de certa forma, conecta temas que me interessam: sistema prisional, reforma psiquiátrica, políticas de assistência social; mas que apareciam separados, cada qual puxando bibliografias e campos de discussão muito específicos. Ainda não li um livro onde tudo isso aparecesse junto e, no meu modo de ver, não há outro modo de fazer senão contando essas vidas, de um modo bastante delicado e detalhado. Esse livro eu gostaria de escrever e de ler. Gostaria de filmá-lo também. Escrever com imagens é algo que ainda quero aprender.