Tamiris Volcean é jornalista e pedagoga, autora de “As pessoas que matamos ao longo da vida”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Um amigo que conheci no sertão roseano, durante o Caminho do Sertão, de Sagarana ao Grande Sertão: Veredas, me apresentou este horário para fazer leituras, entre o sono profundo e o acordar repentino, ainda antes de o sol nascer. A partir de então, tenho tido boas prosas às cinco da manhã. De preferência, à luz de velas, que é para não macular o nascimento do dia. Alguns dirão que insônia é coisa que chega junto aos anos, eu sei, mas, prefiro seguir a Hilda Hilst e acreditar em vozes sobrenaturais, que se fazem ecoar apenas quando as cordas vocais de todo o mundo descansam.
Junto à leitura, quase sempre literária, o bom e velho café para espantar o sono e seguir com as atividades do dia, que se dividem em feitos jornalísticos, minha profissão, e afazeres acadêmicos do Mestrado em Comunicação, que finalizo no meio deste ano.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde sempre, a madrugada foi meu refúgio para desenvolver toda e qualquer atividade escrita. Gosto do silêncio de quando trabalho enquanto todos dormem. Consigo, assim, ouvir meus pensamentos com maior clareza e intensidade. Mas, costumo dizer que, para mim, o escrever abre as portas do desejo com os pés, sem avisar. Nunca foi uma questão de método, mas, sim, de imaginar, desejar as palavras e extrapolá-las para além do plano das ideias. Não tem hora marcada para esperar o que, em mim, nasceu de súbito.
Quanto ao ritual, sigo os tradicionalistas: faço um café forte, sem açúcar e coloco um blues para tocar, antes de começar as primeiras linhas. Durante o processo de escrita em si, gosto de ter às mãos algo que simbolize o conforto de um abraço, quase sempre concretizado em uma bebida quente ou, a depender do momento, em uma boa taça de vinho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Literariamente, não trabalho com metas. Como sou adepta das crônicas, escrevo quando entro em contato, direto ou indireto, com alguma situação cotidiana que considero tão bonita quanto efêmera. Não as categorizo por importância social, nem me baseio nas agendas jornalísticas de cada época, mas me guio pelo sentimento que estas situações despertam em mim. Quando fico sensibilizada, sinto uma urgência em eternizar o vivido em palavras. E, sem hora marcada, conforme disse anteriormente, o faço.
Apesar de disto, essa urgência chega diariamente. Não há um dia em que eu não escreva algumas linhas, ainda que estas fiquem, durante muito tempo, confinadas à função de suporte para as xícaras de café futuras ou espalhadas pelos cantos dos cômodos em que existo.
Quanto à escrita acadêmica, esta, sim, exige maior disciplina para se desenvolver. Por isso, estabeleço metas de produtividade para a produção do texto que comporá minha dissertação de Mestrado e os artigos que são desdobramentos dela. Há uma diferença crucial entre o texto literário e o texto acadêmico; enquanto o primeiro contenta-se em ser reflexo do seu ser, seja ele complexo ou descomplicado, o segundo precisa ser compreensível para justificar sua existência. E é justamente essa diferença que fascina na escrita, este ato que pode ser muitos em um só.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu carrego comigo sempre um caderninho. Acho que não é a primeira vez que esse fato aparece nestas entrevistas. A memória do ser humano é coisa falha e, por isso, devemos sempre dispor de ferramentas capazes de nos fazer lembrar daquilo que Antônio Cândido chamou de “rés do chão”, ou seja, os detalhes que se diluem em grandes enredos. Neste caderninho, escrevo breves passagens sobre algum acontecimento, seja ele material de uma crônica, de uma matéria jornalística ou inspiração para escritos futuros. É este o meu ponto de partida. Mas, confesso, sou um tanto quanto desorganizada e pouco sistemática.
Sei que muitos irão dizer que escrever nada tem a ver com inspiração, que é coisa abstrata demais, apostando sempre em metodologias concretas. No entanto, desconfio que escrever seja uma maneira de reverenciar tudo aquilo que transcende o real. Por isso, não acredito em um processo de escrita, mas, sim, em caminhos únicos escolhidos para cada conjunto de enunciados. Cada começo é singular. Alguns mais fáceis do que outros, sendo o oposto também verdadeiro. Para mim, tudo está relacionado com aquele pontapé que citei anteriormente. O tal insight. É como o ciclo de vida de uma estrela, que nasce, cresce e morre. Escrever é o resultado das contrações que se dão no interior do nosso inconsciente e que, como as próprias estrelas, ao se desenvolver, cresce e expande, até explodir no último ponto final, que é o brilho que permanece, mesmo após o fim daquela história no plano do real.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acredito que a procrastinação não seja assim tão má quanto parece à primeira vista. Penso que é uma difamação pouco necessária, uma vez que o ócio é tão importante quanto a produtividade. Explico: escrever demanda a sedimentação das reflexões que irão compor uma crônica, um texto jornalístico ou até mesmo um artigo científico. Essa sociedade pós-industrial ainda tem resquícios evidentes da linha de montagem e, por isso, baseia-se na ideia de que quanto mais produzir, mais útil é ao sistema. E o ser humano adora ser útil, é fato. No entanto, o sociólogo Domenico de Masi, em seu livro O ócio criativo, deixa clara a importância de abandonar as amarras fabris e contemplar tais “travas” como oportunidades de explorar com maior atenção suas habilidades para realizar funções não mecânicas.
Por isso, quando começo a procrastinar, tento refletir sobre os motivos que me levaram a agir desta maneira. Antes de me desesperar, procuro encontrar, nas pautas em que estou trabalhando, razões para que eu interrompa o fluxo de consciência e busque outras atividades paralelas. Geralmente, os motivos estão relacionados às dificuldades de lidar com determinados assuntos. E esta reflexão, além de permitir maior cuidado com o texto, também me permitem conhecer melhor a mim mesma, aos meus medos etc.
Quanto à coragem, este é um assunto à parte. Costumo dizer que, quando lancei meu primeiro livro, senti-me como em um daqueles sonhos em que estamos nus em um ambiente completamente constrangedor. E, de fato, é isto. Desnudamos nossa alma para os leitores. Ficamos expostos e suscetíveis a todo tipo de crítica. É preciso muita coragem para se fazer ler, mas, sobretudo, muita humildade para não se encarcerar na bolha literária que nos rodeia, desconsiderando opiniões, posicionamentos e reflexões que, possivelmente, auxiliarão em nosso desenvolvimento como escritores e, principalmente, como seres humanos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu nunca reviso meus textos literários. Alguns chamam de ansiedade, outros, de mania. Mas, quando chego ao último ponto final de uma crônica, é como se eu tivesse esvaziado tudo o que estava pairando dentro de mim. Como quando regurgitamos. Não ficamos olhando para o alimento não digerido. Para mim, escrever uma crônica é regurgitar algo indigesto o bastante para não se limitar ao meu interior. Portanto, escrevo, envio, publico e dou por terminado aquele processo transbordante.
No entanto, o mesmo não pode ser aplicado aos textos jornalísticos e acadêmicos, é claro. Estes exigem grande cuidado e revisão. Neste caso, peço sempre a opinião de alguém para quem cultivo admiração e confiança.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou da geração dos anos 90 e, por isso, vivenciei a transição do papel para a tela. Portanto, tenho boas relações com a tecnologia e com o manejo dela. Mas, apesar disto, tenho uma alma que simpatiza com décadas muito anteriores àquela em que nasci, porque considero o papel um material revolucionário, ainda mais do que as teclas.
Os rascunhos, sejam eles literários, jornalísticos ou acadêmicos, são feitos sempre primeiro à mão. Como disse anteriormente, sou um tanto quanto desorganizada, o que se reflete em meus pensamentos. Por isso, gosto de trabalhar com esquemas mentais, flechas, adendos, notas de rodapé e artifícios que são muito mais saborosos quando nascem da ponta de um lápis ou caneta.
Só quando amarro todas as ideias é que as transfiro ao computador, que, inevitavelmente, é a ferramenta de trabalho universal daqueles que escrevem.
Uma observação muito importante: já tentei me adaptar aos recursos digitais para leitura de livros e artigos, mas, sem sucesso. Minha paixão é ir até um sebo e descobrir um livro cheio de anotações de outro alguém. Manusear as páginas e descobrir os tesouros nelas guardados.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias nascem daquilo que vivo. Acredito que viver intensamente todas as situações cotidianas, sejam elas extraordinárias ou não, é a melhor maneira para se manter criativa. O viver nos oferece material de sobra para trabalhar sem repetições, já que ninguém vivencia um fato de maneira inteiramente igual ao outro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu escrevo desde muito cedo. Ainda com sete anos de idade, escrevi meu primeiro “livro” de contos de terror. Um amontoado de folhas sulfite que fora, carinhosamente, grampeado pela minha mãe que, à época, era minha única leitora. Com o tempo, fui descobrindo o meu gosto pelas escritas curtas, ou seja, aquelas que se completam de imediato. E, assim, pouco a pouco, me lancei no mundo das crônicas.
De lá para cá, sinto que, conforme fui dedicando mais tempo e mais sessões de terapia ao autoconhecimento, mais fácil ficou o delineamento do meu estilo de escrita. Apesar de não concordar com a inflexibilidade imposta por este “estilo de escrita”, que se transforma tão rápido quanto os acontecimentos mundanos que nos rodeiam, vejo que o passar do tempo me permitiu soltar as mãos das referências e desenvolver elementos textuais que refletem muito do que sou, ainda que sejam temporários e estejam completamente abertos a moldagens e variações.
Quando escrevi as crônicas do meu primeiro livro, ainda sentia medo de mergulhar sem o apoio das referências, então, lia muito os autores que gostava, como Rubem Alves, Manoel de Barros e Guimarães Rosa, tentando reproduzir a literatura que havia em suas páginas. Hoje, com um novo conjunto de crônicas em mãos – e um repertório literário muito diverso daquele que se apresentou anos atrás, vejo que estas referências, apesar de muito importantes neste meu processo de autodescoberta, estão mais diluídas e menos aparentes nos textos. É claro que a relação dialógica é inevitável. Bakhtiniana que sou, reconheço a intertextualidade existente em qualquer escrito. Mas, apesar disto, sinto que estou mais segura para arriscar.
Eu diria exatamente isso a mim mesma, no início desta trajetória feita de palavras; tenha paciência, não se cobre tanto, não se compare aos outros, afinal de contas, cada um tem o seu próprio ritmo transformador. Todo processo exige tempo e, por isso, você deve vivenciar e saborear suas fases com prazer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever um livro infantil, já que, além de Jornalista, sou também Pedagoga e já trabalhei diretamente com o incentivo à leitura infantil no projeto Brincar de Ler, do qual sou idealizadora. No entanto, também tenho a ideia de desenvolver um trabalho mais jornalístico, de investigação, um livro que resulte de uma grande reportagem, como os de Daniela Arbex que, atualmente, em minha opinião, é a jornalista brasileira que mais investe neste processo de desdobrar seus escritos das páginas de jornais para os livros.
Tenho também no gatilho um projeto relacionado aos assentamentos do MST na região de Bauru, onde cursei a graduação e o Mestrado. Entrevistei muitos assentados e reuni histórias ótimas para desmistificar a visão majoritariamente errônea que se tem no movimento. Seria uma alegria profissional reunir essas prosas em um volume literário.
Quanto ao livro que gostaria de ler, não sei se ele, necessariamente, não existe. Talvez, eu apenas não o tenha encontrado. Mas, trata-se de uma história muito simples, apesar de parecer, à primeira vista, complexa. Gostaria de ler sobre o amor, em suas mil e uma formas de demonstração, em cada canto do mundo e que, ao final desta história, chegássemos à conclusão de que o afeto é revolucionário e, a partir destes laços, é possível transformar as relações com nossos pares. É o livro que teria como trilha sonora aquele trecho de Belchior que diz; amar e mudar as coisas me interessa mais.