Tamara Prior é escritora, historiadora e mestra em Medicina.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias em que a calma é possível, gosto de começar fazendo pequenas organizações para que meu ambiente fique nutrido e acolhedor: trato dos meus cães, coloco água nas flores, faço uma pequena limpeza, preparo minha primeira refeição e, por último, pego um grande café coado para tomar já diante dos livros ou da tela do computador.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com o passar dos anos tenho cada vez mais me tornado adepta da escrita nas primeiras horas seguidas ao despertar. O ato de escrever como um primeiro compromisso diário me proporciona uma sensação prazerosa de conexão com o mundo, como um pequeno passeio matinal para além de si que enche o dia de significados. Sobre o ritual, talvez o único seja este: me certificar de que está tudo bem ao meu redor para, então, desconectar do ambiente e me conectar com a folha em branco. O café também me acompanha nesse trânsito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando encaro projetos acadêmicos – como foi a confecção da minha dissertação de mestrado sobre o movimento eugenista no Brasil- coloco metas que acabam sendo cumpridas em períodos concentrados. Talvez esta seja uma maneira de assumir a famosa inspiração pelo prazo, o que não deixa de funcionar. Já para as redes sociais do meu recente blog Sexo e História, procuro escrever todos os dias, mas de modo mais sintético e condensado. Há ainda uma terceira modalidade de escrita sobre a qual tenho me debruçado nos últimos meses, que é a ficção. Um romance histórico passado na década de 1950, para ser mais específica. Essa tem sido uma experiência e tanto cuja prática não obedece a qualquer tentativa de ritualização: é irremediavelmente espontânea e incerta.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Novamente preciso distinguir dois tipos de processos diferentes que vivo hoje em dia: para meu blog Sexo e História (www.sexoehistoria.com) eu não me movo da pesquisa para a escrita sem antes trocar longas ideias com a Marcela Boni, grande amiga e historiadora que assina o projeto comigo. São longos áudios ou sessões de vídeo para discutirmos as ideias, os parâmetros éticos, as motivações dos textos, as balizas teóricas. Esse é um aspecto interessante de trabalhar nas redes e em redes: as trocas, os vínculos, as conexões imediatas e cotidianas. Para essas queixas recorrentes de que os trabalhos acadêmicos estão muito ensimesmados, creio que essa proposta de conexão é um antídoto, inclusive. Já sobre o processo de escrita ficcional, me movo da pesquisa e das ideias para a escrita com certa urgência, seguindo um fluxo de escrita até que ele se esgota. Vale dizer que em ambos os casos, já não creio que as pesquisas são estritamente teóricas: há de se viver para conhecer e se inspirar. Às o cerne da pesquisa está nos livros, às vezes na observação. Mas hoje creio, sobretudo, que as melhores pesquisas das experiências sensíveis, das reflexões presentes. E a melhor escrita tende a ser uma condensação desses processos todos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eis o grande dilema e o maior terror de quem escreve: a página em branco a ser preenchida. Recentemente me deparei com um meme elucidativo que propunha a “procrastinação ativa”, ou seja, a realização de tarefas domésticas com o intuito de procrastinar a escrita. Me identifiquei inteiramente. Risos. Faço muito isso e creio que, de fato, ajuda. Mas também retomo o que disse anteriormente: conversas, vínculos, inquietações cotidianas são grandes motivadores para superar essas travas que invariavelmente surgem. Afinal, diferentemente de trabalhos que permitem rituais ou métodos mais definidos, a escrita tem ritmos próprios e não raro passa por labirintos complicados da mente. Assumir o desconforto dessas incertezas tem me ajudado muito a redimensionar minhas próprias idealidades sobre a atividade intelectual e meus objetivos. Redimensionando, consequentemente, as expectativas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso da escrita ficcional, reviso poucas vezes e procuro não reler de imediato caso perceba que estou sob efeito daquela incômoda voz que vez ou outra emerge das profundezas dizendo que não está bom o suficiente. No caso dos textos acadêmicos ou para as redes, reviso duas ou três vezes e mando para algumas pessoas que me inspiram confiança e que sei que farão críticas honestas. Elogios também são buscados. Risos. Mas para além de questões de vaidade, acabam sendo mais especiais quando se trata de um assunto polêmico ou delicado que tende a causar reações desmedidas. Sentir-se apoiada por pessoas afetivamente próximas, para mim, é de grande importância para o processo da escrita que trata dessas questões de “trincheira”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou uma entusiasta tanto das tecnologias do passado, quanto das do presente: gosto de ter vários cadernos e fazer anotações a lápis primeiramente, mas também gosto dos smartphones e seus recursos incríveis. Creio que são bons complementos!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Retomando o que disse anteriormente, acho que as ideias vêm, principalmente, de experiências sensíveis e das inquietações cotidianas. Do olhar lançado para os arredores e para além de si. Esse é o exercício que mais aguça minha criatividade. Vivendo em um país de conjuntura especialmente agitada como ocorre com o Brasil, temas que causam necessidade de pensar e agir não faltam. Talvez seja o paradoxo deste caos: é algo ao mesmo tempo destrutivo mas, por necessidade, criativamente construtivo. Às vezes, quando sinto que minha mente está estagnada, paro de insistir na escrita e passo a observar as pessoas pela minha janela. Ou saio para caminhar. Às vezes, abro um livro que trata de um tema totalmente diverso. Acho que a questão está na disponibilidade do olhar e de permitir ser afetada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Creio que ao longo dos anos tenho feito uma escrita mais comprometida com quem lê, com o mundo no qual vivo e menos com quem estritamente julga. Se eu pudesse voltar ao momento no qual escrevia os primeiros textos acadêmicos, diria para que minha versão antiga tentasse redimensionar algumas ilusões sobre o poder construtivo ou destrutivo daquelas palavras. Diria, ainda, para que relativizasse tanto os eventuais aplausos quanto as vaias, priorizando a honestidade. Tarefa árdua, mas de resultados incomparáveis.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bem, respondo esta entrevista imediatamente após ter iniciado dois projetos de muito significado pra mim, logo, estou com aquela prazerosa – mas sabidamente temporária- sensação de plenitude. Risos. Ter começado o Sexo e História foi um processo e tanto e a impressão é de que me manterá ativa e criativa sobre a imensidão do tema por muitos anos. Sobre o livro que ainda não existe, peço licença para subverter a pergunta e responder dizendo que só consigo pensar naqueles que já existem, mas ainda não li. Neste sentido, tenho a intenção de me dedicar mais ao grande Italo Calvino e aos trabalhos do Darcy Ribeiro, que sinto necessidade e desejo de conhecer mais. Ah, também não posso deixar de citar um livro que ainda não está completo, mas que espero conseguir terminar em breve, que é o da minha bailarina Marieta. Acho que em alguma medida sempre escrevemos sobre nós, transformando nosso mundo interno em dados científicos ou personagens que sempre acreditamos serem inéditos. Porque, de fato, o são.