Sylvia Leite é jornalista, roteirista, autora do blog lugares de memória.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina muito rígida. Normalmente dou uma olhada nas notícias e no que preciso fazer. Aí começo pelo que é mais urgente. Geralmente as postagens dos clientes, já que trabalho com mídias digitais. Os textos mais longos quase sempre ficam para depois, quando as coisas se acalmam.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando comecei a trabalhar como repórter, preferia escrever a partir do final da tarde. Tinha muita dificuldade de pensar no período da manhã. Mas hoje não tenho preferência de horário. Trabalho melhor quando estou descansada, quando tenho motivação e quando não tenho preocupações fortes que me impeçam de mergulhar no texto.
Quanto a ritual de preparação, isso talvez exista para alguns escritores, mas considero impensável para jornalista. Na rotina da redação, não há tempo nem privacidade para isso. Talvez se possa falar em processo. Estratégias para ir, por exemplo, concebendo a matéria mentalmente enquanto se desloca entre o local da reportagem, ou entrevista, e a redação. É verdade que essa não é mais a minha realidade, mas mesmo escrevendo em casa, já criei uma relação com a escrita que foi forjada dentro dos jornais e das emissoras de televisão.
Com os textos acadêmicos é um pouco diferente. Nos quatro meses em que me dediquei exclusivamente a escrever meu doutorado, eu criei uma rotina: escrevia o dia inteiro, mas parava no final da manhã para fazer natação antes do almoço e retomava no início da tarde. Será que isso é um ritual?
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo mais nos momentos em que consigo me concentrar. Pode ser qualquer hora. Quando o texto flui, esqueço do tempo e vou tocando. Quanto à meta de escrita diária, até que eu tento ter, mas só funciona quando preciso cumprir prazos, em geral os prazos que não foram determinados por mim porque os meus eu acabo desobedecendo. (risos)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sou muito disciplinada, então rabisco coisas antes de ter material suficiente para começar, na tentativa de aproveitar uma ideia ou um impulso, e depois vou acrescentando, detalhando ou até corrigindo. É um vai e vem sem fim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando tenho tempo ou estou escrevendo só para mim, se trava mesmo, eu levanto e deixo para outra hora ou para nunca. Quando escrevo com compromisso, não tem muito o que fazer. Tem que arrumar um jeito de destravar. Aí faço o que sinto necessidade na hora e o que o prazo permite. Tomo um café, vou ao cinema, vou tomar um banho de mar, ou de piscina, converso com alguém para tirar dúvidas ou simplesmente para relaxar.
Agora existem também as pequenas travas que rolam em uma parte específica do texto, enquanto a cabeça continua cheia de ideias para outra parte. Aí é fácil: eu largo o que está travado e vou escrever o que está fluindo. Essa é uma das vantagens do computador. Hoje eu sei que teria dado para fazer o mesmo na máquina de escrever, embora com muito mais trabalho braçal, mas acho que naquela época nem passava pela cabeça das pessoas escrever algo fragmentado para depois organizar. Eu, pelo menos, escrevia tudo na sequência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nem sei dizer, porque reviso o tempo inteiro. Cada vez que paro, leio tudo que vem antes para conseguir continuar, e nisso já vou fazendo pequenas revisões. Quanto a mostrar a outras pessoas, depende. Geralmente só mostro quando tenho dúvidas sobre o efeito que vai causar ou quando não consigo julgar se o texto está bom ou ruim. (risos)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A maior parte do tempo escrevo direto no computador. Às vezes, quando já estou cansada e preciso concluir, ou mesmo iniciar um novo texto, escrevo à mão no sofá ou na cama, enquanto descanso o corpo, mas o que rabisco nessas situações nunca passa de um rascunho. Acho que, infelizmente, ou não rsrs, meu raciocínio está atrelado às teclas. Essa dependência do teclado acontece desde que comecei no jornalismo usando aquelas antigas máquinas Remington. O que o computador me trouxe foi o vício da fragmentação. Quando alguma parte do texto trava, pulo para o que está mais resolvido e vou fazendo trechos isolados que depois coloco em seus devidos lugares e costuro. Acho que já disse isso antes.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Nunca pensei em cultivar hábitos que me tornassem criativa, mas certamente reconheço que muitas ideias surgem a partir de referências do cinema, do teatro, da literatura, das artes plásticas, da música e também, com muita frequência, das viagens, do contato com pessoas de diferentes culturas e realidades. São coisas que faço porque gosto, porque preciso e não para cultivar a criatividade, mas acredito que tudo isso é indispensável à formação e à nutrição de qualquer profissional e de qualquer ser humano, não é?
E, fora isso, acho que as ideias podem surgir também das pequenas coisas do dia a dia, basta que a gente preste atenção.
Outra coisa: percebo que, pelo menos para mim, as épocas mais produtivas são também as de maior fluxo de ideias. Parece que o fazer estimula as conexões.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei o que mudou. Talvez eu esteja um pouquinho mais chata. Antes eu escrevia no meio de uma redação barulhenta, com gente contando piada, telefones tocando, barulho de fax e televisões ligadas. E isso não me afetava. Hoje, quando é possível, prefiro escrever longe do barulho.
O que eu diria se pudesse voltar à escrita da minha tese: diria a mim mesma para ser um pouco mais organizada a fim de perder menos tempo e reduzir o desgaste.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Difícil dizer. Estou com um projeto novo, que é o blog lugares de memória, e ele atende toda a minha necessidade de fazer algo que ainda não ´tinha feito. Pelo menos por enquanto.
Quanto ao livro que ainda não existe, vou contar uma historinha. Eu fiz mestrado sobre um tema que praticamente não tinha bibliografia em nenhum idioma. Eu lia livros inteiros para encontrar um parágrafo que me interessava e às vezes encontrava somente uma linha. Foi uma pesquisa muito cansativa e frustrante. Em alguns momentos eu achei que não iria conseguir. Então, naquela época, eu desejei que existisse um livro com todas as informações que eu buscava. E a minha dissertação, quando foi publicada, acabou, de certa forma, virando esse livro que eu tanto procurei. Mas aí eu já não precisava mais dele. (risos)