Sylvia Caiuby Novaes é professora titular de Antropologia da Imagem na Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo entre 8:30 e 9:00. Após o café leio e-mails, alguns jornais e boletins, fumo um cigarro e com isso ligo o tico e o teco. Gosto de começar a escrever pela manhã. Releio o que escrevi à noite e dou continuidade ao texto, que nessa hora em geral rende bem.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Hoje em dia trabalho melhor no período da manhã. Antigamente isso era impossível antes do almoço. Se estou escrevendo um artigo, gosto de ter um “envelope de ideias”. Vou escrevendo as ideias que me surgem em qualquer papel que tiver pela frente e são esses papeis que vou guardando no envelope. Penso a escrita de um texto como a feitura de um tecido, que vai gradativamente se compondo. Nessa composição dá para perceber que às vezes tem uns “buracos” que precisam ser preenchidos, que falta continuidade, que nem sempre as cores usadas no tecido permitem um resultado harmonioso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas prefiro a escrita que é resultado de um longo processo de imersão, o que nem sempre é possível em meio às aulas, orientação de alunos, trabalho administrativo, as atividades na casa e o convívio familiar. Não trabalho com metas de escrita, isso não funciona para mim. Trabalho com ideias e o objetivo pode ser transformar essas ideias em artigo, projeto de pesquisa, ensaio fotográfico, documentário, aulas, responder a esse questionário, etc. A ideia de metas não me agrada mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre um processo lento e depende do que está sendo escrito. Felizmente já não preciso escrever nenhuma tese. Teses têm um constrangimento acadêmico que você tem que respeitar, mas, uma vez terminadas, pronto. Antes de começar a escrever, passo um bom tempo pensando sobre o tema, sem escrever nada, nem mesmo notas. Em seguida anoto como que uma estrutura do texto, um roteiro do que pretendo escrever e que certamente sofrerá inúmeras alterações. Posteriormente, quando começo a escrita, as notas acompanham esse processo o tempo todo. Algumas anotações a precedem, mas o processo de notas, de leituras, observação, divagação é concomitante à escrita. Acho estimulante escrever depois de ver um filme, mesmo que o filme não esteja diretamente relacionado ao tema sobre o qual estou escrevendo. Romances são também inspiradores para o processo de escrita. Não gosto da escrita rebuscada, daquela que só os pares podem ler. Nesse sentido o romance é um estímulo para o desenvolvimento de uma narrativa que chegue mais diretamente ao leitor. Exposições de arte podem igualmente ser interessantes para me colocar numa outra sintonia com o tema, de modo mais sensível e intuitivo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lembro-me que estava com dificuldades com o primeiro capítulo de meu mestrado. Queria introduzir o cotidiano da vida numa aldeia Bororo, mas nada do que escrevia me parecia interessante ou satisfatório. Tudo o que escrevia traía o encantamento que sentira enquanto estava na aldeia. Final dos anos setenta. Fiz com uma grande amiga uma viagem pela Colômbia de um mês, daquelas com mochila nas costas, muita carona, poucos itinerários previamente planejados, alguns contatos estratégicos. Fizemos uma cavalgada de um dia por um despenhadeiro horroroso, trilha estreita, chão muito pedregoso, em que os cavalos andavam muito devagar e mesmo assim iam escorregando. Foi nessa cavalgada que escrevi mentalmente o primeiro capítulo do mestrado. Não sei como, mas ele se organizou completamente na minha cabeça e é das partes de que mais gosto. É um dia completo, começa no meio da noite e vai até o entardecer do dia seguinte. Totalmente recriado a partir de minha vivencia de muitos anos na aldeia. Estratégia muito frequente entre antigos cineastas documentaristas, mas funcionou.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é permanente e, tal como as notas, acompanha o processo da escrita. Para retomar a escrita releio o que já escrevi e, nessa leitura, muita coisa já é revista. Mas depois que considero o texto pronto gosto de deixar que ele durma por uns dois dias, antes de retomá-lo para uma última leitura. Passar o texto para outras pessoas é fundamental. Mas é preciso bem escolher quem serão, em geral mais de uma.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho problemas com a tecnologia. Escrevo diretamente no computador, mas sempre anoto à mão as ideias que surgiram, a página de alguma referência bibliográfica, o autor a que devo voltar no raciocínio que estou desenvolvendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Para mim as ideias surgem quando há um processo de imersão numa temática. Isso demora um tempo, mas quando estou de fato imersa a temática me toma. Tenho ideias enquanto estou dirigindo – além de muito desorientada espacialmente, nesses períodos acabo me perdendo ainda mais; tenho ideias tomando banho ou um pouco antes de dormir. São momentos em que minha mente não é conduzida, ela divaga livremente nessa imersão. As ideias surgem frequentemente como um flash, um insight poderoso, mas ainda não elaborado. São esses insights que preciso anotar num papel (é muito fácil esquecê-los) para que possam ser depois desenvolvidos. Por outro lado, se estou escrevendo, já me cansei e quero desenvolver melhor uma ideia, tenho que sair do computador e fazer outra coisa. Em geral gosto nessas horas de regar o jardim, tirar mato da grama, plantar temperos. Mas enquanto faço isso continuo pensando e tentando deliberadamente desenvolver a ideia. Volto ao computador e retomo a escrita. Essa pausa numa outra atividade, que pode ser uma caminhada ou atividades no jardim é importante não apenas para que eu possa esticar as pernas, mas também descansar os olhos e pensar sem a pressão da tela do computador.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Logo que comecei a usar o computador, meados dos anos 70, percebi que ele transformava o estilo da escrita, “alongava” desnecessariamente o texto, muitos parágrafos eram redundantes. Com o tempo e a familiaridade isso passou e hoje escrevo e penso melhor já com o computador. A escrita é como qualquer outra atividade. É preciso treino, dedicação, imersão. É preciso ler e escrever muito para escrever bem. Tem dias que sai melhor, outros dias não. Como tocar piano, imagino.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não me dedico hoje em dia apenas à escrita, mas cada vez mais à fotografia e ao audiovisual. São três linguagens diferentes que se influenciam mutuamente. Tenho muita vontade de tentar uma abordagem mais experimental.