Suzane Jardim é historiadora, professora, militante anti-cárcere e pesquisadora em questão racial e criminologia.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou mãe há 10 anos. Rotina faz parte da minha vida desde então, porém não uma rotina pessoal, algo com que eu possa cuidar de mim. Meus horários de acordar e dormir geralmente estão vinculados ao fato de eu ser mãe – mais do que ao fato de precisar trabalhar, pesquisar e afins. O trabalho e a pesquisa aparecem nos intervalos da maternidade – quando já não se tem mais alho pra fritar, lição pra corrigir ou problemas de um proto-adulto em sua rotina escolar pra resolver. Creio que dar ênfase nesse fato é importante porque vejo constantemente uma série de mulheres que são ou serão mães, extremamente descrentes e sem saber se conseguirão dar conta desses vários aspectos da vida tendo ainda uma criança pra criar – porque não interessa se a gente tem o pai, vizinhos, amigos… No final é a mãe que vai cuidar do que importa e tentar se livrar desse peso causa uma estranheza social tão grande que muitas vezes a gente prefere o peso ao julgamento – e a maioria dessas mães tenta viver como é possível, se anulando e sentindo sempre que não fazem o suficiente por suas vidas profissionais. Nesse sentido, minha rotina matinal está ligada a mandar o filho pra escola, ver se o uniforme está ok, checar se ainda sobrou comida na geladeira ou se terei que ir me trocar para ir ao mercado só para comprar cebola. Não tem nada a ver com meus estudos, trabalho ou pesquisa, mas os estudos, trabalhos, pesquisas e escritos convivem com essa rotina, aparecem nela e respiram entre as cebolas e o despertador que toca às 6h. É possível.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa noturna e da madrugada. Para além disso, qualquer estimulo externo me puxa pra outro lugar. Eu definitivamente consigo trabalhar de dia e com meu filho ao lado me contando tudo o que sabe sobre o universo do Crash Bandicoot, mas definitivamente prefiro ficar só comigo e o silêncio, sem sequer a possibilidade de ter redes sociais extremamente agitadas em volta.
Já meus rituais de escrita estão ligados a leitura – eu demoro de fato para sentar e escrever, mas passo um tempo enorme lendo: leio artigos sobre o tema a que me proponho a abordar, vejo vídeos, opiniões, especialistas, até sentir que o cérebro esgotou sua capacidade de armazenar elementos sobre o assunto (uma vez me tornei especialista em astrologia em uma madrugada de leitura: saí do ciclo sabendo tudo sobre stellium, quíron, nodo norte, fundo do céu, casas decanos… infelizmente já esqueci boa parte do aprendizado, mas no momento foi útil pra conseguir ler o mapa astral de alguém com quem até hoje sonho em poder grudar junto definitivamente até ter um aquário com um peixinho chamado Carlos em uma sala de estar só nossa. OBS: é aquariano com ascendente em virgem e os dados indicavam que a gente pode ganhar muito dinheiro juntos – seguimos tentando).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Adoraria escrever um pouco todos os dias e já tentei organizar esse hábito – seja para elaborar melhor a escrita em si ou simplesmente para adiantar trabalhos e compromissos. Entretanto – e digo isso já avisando que não sou um bom exemplo ao leitor que veio aqui ter dicas de como escrever melhor – funciono mesmo é sobre pressão. Nesse sentido costumo concentrar as tarefas de escrita em no máximo 3 dias: no primeiro eu vomito em cima do computador todas as ideias possíveis e imagináveis que a pesquisa me leva a ter; no segundo, vou podando essas ideias e elaborando melhor cada uma delas, excluindo outras até que, no terceiro dia, finalmente, faço os aparos finais e: BOOM! Tá pronto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como mencionei, tenho um processo de pesquisa realmente intenso onde entra em um looping de leitura que muitas vezes atrapalha sim o percurso entre compreender a hora de parar e iniciar a escrita. Geralmente me coloco um limite inicial – “você lerá esses 4 artigos sobre e pode incluir outros dois se a leitura dos 4 primeiros tornar necessário” – e tento iniciar a escrita a partir desse limite. É muito comum a pesquisa precisar ser retomada durante a escrita para tentar resolver uma ideia que acabo colocando no papel, parando pra pensar e me questionando “ok, parece ótimo, mas isso que você falou tem base?”. Então o processo de escrita acaba se unindo ao da pesquisa, sendo na verdade uma consequência desse processo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido, simplesmente entro em desespero. Sei que as pessoas leem o Como eu escrevo para tentar se desesperar menos ou ter reais dicas de como se organizar melhor, entretanto o desespero já se tornou parte da minha rotina e creio que vai fazer parte da rotina de muitos que trabalham com escrita por longos e longos tempos. Infelizmente, escrever deixou de ser um trabalho totalmente criativo e crítico se tornando um trabalho, uma obrigação. Eu amo escrever textos longuíssimos sobre a comédia do Richard Pryor sem finalidade alguma além do prazer de transmitir informação e dar aos outros um canal para conhecer coisas novas, entretanto está cada vez mais difícil conseguir tempo para escrever sem culpa, sem prazos e por puro prazer. Antes era a faculdade e seu conceito de me fazer escrever 6 páginas sobre o fenômeno dos tiranos na Grécia Antiga ou sobre a relevância da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na consolidação do Estado comercial brasileiro – temas que, com o perdão dos amigos da área, me levam até hoje a um estado mental de coma devido ao tamanho desinteresse que tenho sobre. Agora são as obrigações de trabalho que reduzem o meu tempo livre e meu tempo de pesquisa. Nesse sentido é muitíssimo comum ter no processo de escrita um poço de possibilidades para deitar a cabeça no travesseiro a noite após um dia cansativo, mas não conseguir dormir depois que sua mente involuntariamente manda um “hum…. cansada, né… IMAGINA ENTÃO SE……”. Atualmente um dos meus maiores desesperos nesse campo dialoga novamente com a maternidade e com os paradoxos que ela traz – estou trabalhando demais e passando pouco tempo com meu filho ou estou gastando tempo demais sendo mãe e não conseguindo me dedicar com a maestria que vejo nos outros à pesquisa e à escrita? O que tem me tranquilizado nesse turbilhão de desespero, ansiedade e síndrome do impostor é simplesmente pensar na imensa quantidade de porcaria que já li por aí, escritas muitas vezes por pessoas que não tem filhos, que não levam duas horas no transporte público para chegar no centro da cidade, que não estão necessariamente preocupadas se vai ter arroz feito, se a roupa do varal secou ou se serão usadas como exemplo generalista caso cometam um único erro (“Claro que ela fez esse trabalho porco, veio de Diadema, deve ser cotista! Cotista é tudo vagabundo! Tem que parar a mamata!” etc). Pensar na imensa quantidade de gente medíocre com prestígio – de gente com tempo, disponibilidade, recursos e possibilidades, mas que caga pelos dedos enquanto é aplaudida por um seleto grupo de outros cagões – me motiva e me tranquiliza. Eu posso não corresponder as expectativas, posso levar broncas, atrasar ou entrar no desespero da falta de criatividade, mas felizmente sei que, apesar da minha falta de base, não sou uma fraude e estou honestamente tentando, ao contrário de c e r t a s p e s s o a s.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu geralmente sinto que os textos estão prontos porque vejo certo esgotamento saindo das linhas em certo momento. Outras vezes simplesmente me forço a terminar porque me conheço, escrevo demais e sou capaz de ultrapassar prazos máximos de páginas com imensa facilidade. Nesse caso, paro de escrever e começo a elaborar melhor todas as ideias postas até então, tomando cuidado para respeitar os limites de caracteres e afins. Quando sinto o esgotamento novamente, dessa vez dentro do processo de revisão e elaboração do que já foi escrito, então termino. É comum enviar meus textos para outras pessoas, mas geralmente faço isso quando sinto que estão totalmente terminados e para ter certeza de que não perdi nenhum erro de português, digitação ou que não acabei incluindo um paragrafo totalmente incoerente e incompreensível ao corpo do texto. Geralmente, quem lê meus textos não é da área acadêmica ou, pelo menos, não do meu campo de pesquisa. Faço questão de que seja assim porque tenho um lema – se só quem pesquisa ou estuda o assunto consegue compreender o que escrevo, então meu texto é uma merda. Provavelmente isso vem do fato de que antes de pesquisadora ou escritora, eu sou educadora e acredito que a escrita só é útil quando alcança e ensina. Nesse sentido, me preocupo em ter feedbacks “leigos”: Deu para compreender o que eu quis dizer? Algum conceito pareceu alienígena? A linguagem está ok? São nesses feedbacks que consigo ter noção do quanto o texto precisa ou não apostar em uma maior didatismo para ser de fato envolvente e útil, não mais um artigo de um assunto esgotado para gente que já se esgotou de tanto ler sobre o tema.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É aquilo, gente que nasceu em um mundo sem internet e fez trabalho de escola usando a Barsa talvez tenha dificuldades de se iniciar em uma rotina totalmente digital, mas a correria do dia a dia me mostrou os benefícios de tentar e atualmente ando agradecendo muito a todos os cientistas e outras pessoas que escolheram criar máquinas em vez de ter uma vida feliz. Só muito recentemente venho tentando criar intimidade com o computador porque sempre fui uma pessoa mais manual. Lia, fazia minhas anotações e conexões a mão, montava um mapa de conceitos e possibilidade de escrita em um caderninho e só depois disso passava a conclusão desse processo para o computador. Esse tipo de rotina foi se tornando complicada devido ao transporte público e os afazeres da vida e, devido a isso, passei a tentar organizar as pesquisas e leituras que antecedem um texto no celular. Vou anotando insights no bloco de notas, destacando trechos de um PDF, criando listas de conceitos úteis e, quando finalmente me sento em frente ao computador para escrever – isso quando não escrevo no celular mesmo, dentro do metrô – tenho em mãos as reflexões anteriores sem precisar procurar em qual página eu anotei ou compreender o quê foi mesmo isso que escrevi naquela frase, enquanto o trólebus se mexia tanto que acabou tornando minha letra ilegível.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Na verdade existe 3 linhas que definem o que eu escrevo e a relação disso com a criatividade. Na primeira, eu simplesmente sou convidada a escrever sobre um tema definido. Quando acontece, meu papel é de pesquisar tal temática e tentar pescas entre as leituras acumuladas as possibilidades de criação – nesse contexto, as ideias surgem em meio a leitura, com um autor que puxa outro e outros e outro, me ajudando a criar conexões e lógicas de sistematização dessas ideias.
Na segunda, sinto necessidade de escrever sobre uma temática por sentir que há uma deficiência na discussão publica sobre o tema. Estou nos facebooks da vida, estoura uma polêmica, um caso midiático, uma iniciativa pública e as pessoas imediatamente começam a opinar e falar sobre em um exercício que acho muito útil. Tem mais é que dar palpite mesmo. Entretanto, é comum passar por temas que dialogam com minhas áreas de pesquisa sendo debatidos com certo desconhecimento de causa, com sensos comuns e falácias. Nessas ocasiões, surge a ideia de escrever sobre – não para “corrigir” os debates, mas para colaborar com elementos, tentar passar um pouco do meu conhecimento para frente, sabe? E há a terceira linha, onde eu simplesmente me lembro de algo absolutamente aleatório e me bate uma vontade de escrever sobre, só porque sim. Essa linha é a que geralmente conduz meu comportamento nas redes sociais e que foge muito de tudo que escrevi aqui até então: eu não tenho metodologia pra escrever no facebook, muito pelo contrário. É até muito comum perceber erros ortográficos horríveis nos meus textos nas redes sociais pois geralmente os escrevo enquanto estou no banheiro ou fumando um cigarro, sem grande pretensão e seguindo o fluxo dos meus pensamentos. Quando a escrita vem desse modo, ah, meu amigo, ai não tem limite. Já escrevi textos enormes sobre a beleza de ouvir “Solta o grave” do MC Pedrinho, sobre hábitos selvagens em restaurantes self service buffet liberado, sobre gente aleatória que vejo no metrô, molho de tomate… O céu é o limite.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu aprendi que gírias da internet são feias em qualquer coisa não irônica e isso melhorou absurdamente tudo o que eu escrevo. Também percebi que antes, a poucos anos atrás, eu tinha uma necessidade absurda de fazer uma piada em cada frase que escrevia – hoje vejo isso como reflexo da minha insegurança para a escrita e para me comunicar com as pessoas em geral: se todo mundo está rindo, não vão reparar de fato no conteúdo das coisas e há mais chances de nem repararem que você é uma fraude. Esse costume têm diminuído juntamente com a diminuição da sensação de que sou uma fraude. Ela raramente aparece agora e porque, poxa, eu estudo desgraçadamente, sabe? Estudo, trabalho e faço coisas tendo todo o universo materno e da dona de casa pra cuidar – não é pouco. Assim tenho me permitido propor leituras com mais seriedade, sem achar que devo fazer as pessoas gargalharem a cada paragrafo: têm temas que não são engraçados e, mesmo os que são, são possíveis de serem transmitidos com maior seriedade e profissionalismo. Entretanto, se eu pudesse mesmo conversar com a Suzane quando ela começou a escrever publicamente, a única coisa que eu diria, de todo meu coração é: pelo amor de deus, não escreve “mana”, “miga”, não usa “lacrou” e derivados nem em sonho e, por favor, por mim que te amo, não troca “esclarecer” por “escurecer” no meio dos seus textos – baita micão.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Às vezes, nos meus momentos mais alcoolizados, me bate uma vontade muito real de escrever um livro sobre a vida. Sim, um lance meio auto biográfico contando todas as desgraças que me aconteceram e que geralmente fazem meus colegas ficarem pasmos ou terem ataques de riso na mesa do bar. Entretanto eu sou conceitualmente contra jovens escrevendo livros do tipo, então meu plano é ficar muito velha e, aí sim, quem sabe, mandar um livro sobre como sobrevivi no meio do caos.
Agora, falando mais seriamente, tenho de fato uma série de projetos em mente que envolvem educação, escrita, didatismo e relacionados. Um dos que está quase encaminhado se trata de um esforço para organizar escritoras negras escrevendo sobre lutas políticas dentro da radicalidade – creio que “feminismo negro” é hoje um tema que levanta interesse, entretanto há ainda um desconhecimento geral sobre a diversidade ideológica, política e de ação das mulheres negras e creio que uma publicação sobre viria muito bem a calhar. Para além disso, também tenho interesse em organizar um material didático sobre a questão prisional no Brasil, abolicionismo penal e temas afins, projeto que tentarei tocar com o pessoal da luta anti-prisional no próximo ano.
Quando a livro que gostaria de ler e que ainda não existe… Sempre acho que tudo já existe e que, se não achamos, é só porque não procuramos direito. Na verdade eu gostaria de voltar a ler por prazer, sem qualquer vinculação com trabalhos e temas de pesquisa que desenvolvo atualmente. Assim sendo, gostaria mesmo de ler mais sobre, sei lá, história política turca e os precedentes do genocídio armênio, história japonesa, das subculturas – a dos adultos que brigam por pipa até a dos jovens que são apaixonados por caminhões e trocam ideia sobre modelos e manobras em fóruns de internet. Sei que tudo isso provavelmente já existe (inclusive aceito indicações de leitura sobre os dois primeiros temas que citei), mas afinal de contas eu ainda sou jovem, limitada e tenho muitos e muitos pratos pra cozinhar antes de explorar tudo que se há pra ler. Que eu possa me esgotar nas possibilidades então.