Susan Blum é escritora e coaching literária.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Até bem pouco tempo atrás, eu dava aulas na Universidade, então as manhãs e noites eram limitadas às aulas e atendimento de alunos. Mas agora estou mais livre para me dedicar à leitura e escrita. Então levanto quando acordo e meu maior hábito é ler as notícias (seja na internet, seja em jornais). Gosto de me manter atualizada e também porque muitas notícias podem acabar me inspirando para escrever contos ou crônicas. Também aproveito para ler, seja a literatura universal quanto a contemporânea. Gosto muito de Kafka, Joyce, Cortázar, Clarice Lispector, Florbela Espanca, VirgíniaWoolf, Ana Cristina Cesar, Chimamanda Adichie, Toni Morrison, Assionara Souza, Rupi, etc
Atualmente também tenho relido clássicos infantis porque estou escrevendo um romance infanto-juvenil. Também gosto muito de ler e reler livros acadêmicos sobre literatura (pois sou formada em Letras pela UFPR) e sobre Psicologia (pois sou formada em Psicologia pela PUCPr).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho especificamente um horário ou um ritual. Qualquer hora do dia, noite, madrugada são usadas para jogar as ideias. Por exemplo, se estou na rua escrevo as ideias em uma caderneta que sempre carrego comigo, pois nunca se sabe quando a inspiração virá. Por muito tempo não tive carro (tenho somente há dois anos) e sempre andei de ônibus, o que considero uma fonte incrível e inesgotável de ideias. Adoro andar de ônibus e ficar escutando as pessoas. Muitos de meus escritos foram inspirados em histórias dali. Outra fonte maravilhosa para contos são os sonhos. Tenho uma segunda caderneta ao lado da cama. Uma vez conversei com o escritor Tezza e ele me mostrou uma salinha pequena em seu apartamento dizendo que se trancava (literalmente) ali, para escrever. Eu escrevo em qualquer lugar, qualquer lugar MESMO. Até deitada na cama ou em algum passeio com um grupo de amigos que gostam de fotografar. Sempre que me vem a inspiração para um escrito eu tenho que parar e escrever (não confio em minha memória, pois já perdi bons insightspor não ter escrito na hora).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não que seja algo planejado, mas a tendência é escrever um pouco todos os dias, seja jogando as ideias de um novo texto, seja trabalhando algumas ideias que já foram jogadas nas cadernetas (ou guardanapos). O que faço é, quando estou em casa e com tempo, abrir o computador e abrir a pasta ideias de contos ou a pasta ideias de crônicas, ou a pasta poesias ou romance. Enfim… vou digitando as ideias das cadernetas e trabalhando os contos que tenho. Não consigo (isso é algo meu e acho que cada um deve perceber como é sua escrita e seu processo) ter horários rígidos e nem metas. Também não consigo ficar em um só conto ou poesia, até terminar, para só então ir para o próximo texto. Eu trabalho em vários ao mesmo tempo, assim como leio vários livros ao mesmo tempo também. Talvez seja porque sou meio louquinha. Não me sinto mal quando não produzo nada algum dia, pois sei que o principal (para mim, pelo menos) foi feito: observação direta do dia. Procuro ver as pessoas, sentir a Natureza, observar a mim mesma. Aproveito de tudo como base de futuras escritas. Tem uma fala de Julio Cortázar que gosto muito: distração atenta. E procuro fazer isso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Este processo acontece de forma simultânea, vou pesquisando e escrevendo. Então as notas que compilei já são o início da escrita, é como se eu fosse apenas um canal para as ideias fluírem. Claro que depois vem o trabalho, a transpiração.
Geralmente mudo um pouco o início e o final de cada texto. Procuro cortar exageros ou partes do texto que são apenas enfeites desnecessários. Mas ao mesmo tempo procuro dar um tom poético a tudo. Procuro sinônimos, metáforas, ambiguidades, poesia. Cortar, para mim, é a pior parte do trabalho, confesso. Para mim é como cortar partes de um filho. Mas sei que é necessário. É a velha frase: menos é mais. Dalton Trevisan revê seus escritos e sempre diminui. Cortázar comparava a literatura com o boxe. Dizia que o romance se ganha por pontos e o conto por nocaute. “O conto tem que chegar fatalmente ao seu fim, como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma grande sinfonia de Mozart. Se não se detiver na hora certa, vai tudo para os diabos”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esta é a sorte de não se trabalhar exclusivamente com a escrita. Não me sinto forçada ou constrangida a sempre produzir. Então tenho a liberdade de fazer de forma lenta e ao seu tempo. Para se criar um bebê precisa-se de 9 meses, mas para a escrita não tenho um tempo limite. Sinto que cada texto tem seu tempo. Existem ideias minhas que ficaram paradas no computador por anos (algumas ainda estão lá, sendo mexidas de tempos em tempos, mas ainda em gestação). Outros contos saíram em dois dias. Então, se travo em um deles, vou para outro. Como trabalho um pouco a cada dia não existe procrastinação e, se não escrevo nada, apenas penso no que escrevi anteriormente: aproveitei o dia. É o velho Carpe Diem que também aproveito no Carpe Noctem.
Antes de escrever acredito que devo viver. E procuro viver de forma intensa. Já fiz desde Tae Kwon Do, rapel, balé, fotografia, artesanato, cantar em coral, etc. Tudo que faço aproveito para algum texto. Já o medo de não corresponder às expectativas, aprendi na vida: nunca agradamos gregos e troianos. Sempre haverá alguém que irá criticar negativamente nosso trabalho. Procuro dar ouvidos às críticas construtivas e deletar as que nada contribuem. Não é fácil, mas depois a gente consegue de forma mais natural. Projetos longos também não me assustam, já escrevi dois romances (ainda não publicados). Mas, particularmente, não gosto muito de escrever romances. Prefiro contos, crônicas e poesias.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nossa… não dá para dizer em números exatos. Como eu disse: cada conto tem seu tempo. Essa revisão acontece dezenas (em alguns casos milhares) de vezes. Procuro fazer algo que também aprendi desde cedo: quando acho que algo está “pronto”, imprimo, deixo em uma gaveta e depois de semanas ou meses pego para ler. Se leio e me impressiono (às vezes penso: nossa, eu escrevi isso?) sinto que está pronto. Caso contrário (às vezes penso: nossa, eu escrevi isso? hehe) eu começo a retrabalhar tudo de novo. O texto me diz quando está pronto e não o contrário.
Sobre mostrar antes de publicar: só faço isso com um amigo. Um amigo de São Paulo que não é escritor, mas é um ótimo leitor. E depois, como verdadeiro amigo, me fala a verdade, dá sugestões (que às vezes acato, às vezes não). É difícil ter amigos assim. Até tentei mostrar para outras pessoas, mas quando vejo que só elogiam, não mostro mais. Já este amigo é fantástico, espero sempre poder contar com ele. Ele está em meu livro “Novelos Nada Exemplares” como Icaro. Acho que é importante termos amigos assim. Grandes escritores trocavam cartas com seus textos, então por que não fazer isso?
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou da época de escrever cartas para familiares e amigos. Então dá para se ter uma ideia. Fiz meus trabalhos da primeira faculdade em máquinas de escrever. Adoro a tecnologia. Esta possibilidade de escrever e deletar, mexer, mudar, etc. Gosto muito. Mas, como eu disse anteriormente, nem sempre temos o computador à mão, então uso cadernetas ou qualquer material para escrever as ideias (para não esquecer) e depois vou trabalhando aos poucos no computador. Como já afirmei, não me sinto feliz em cortar os meus textos, então faço algo que não recomendo: gravo versões diferentes, colocando datas para me achar. Assim, se me arrependo de um corte, volto lá na versão x e revejo se vale mesmo a pena cortar ou se é melhor apenas burilar mais. Geralmente quem “ganha” a briga é o corte. Mas já aconteceu de eu aproveitar o que havia escrito mudando palavras ou usando metáforas. Já aconteceu até de eu usar aquilo que cortei, em outro texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de absolutamente tudo. Qualquer coisa pode me inspirar. Desde um passarinho que apareceu na janela, uma semente que perdi no vento, uma roupa que lavei, uma gracinha de uma de minhas gatas, uma fala de um amigo, um olhar que observei dentro do ônibus, uma notícia de jornal, uma foto, um filme, um conto de fadas, algo ruim que me acontece, uma música, um vídeo, um objeto, um sonho. Faço também meditação e sinto que esta capacidade de distração dirigida me ajuda muito. Também acredito em auto-observação além de ficar observando os outros.
Alguns hábitos que tenho: caminhar e fotografar. Gosto muito de passear perto de casa ou em locais diferentes. Ir a parques, praia, etc. Uso a fotografia para aprofundar meu olhar seletivo, observar detalhes e imaginar coisas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que tudo na vida é uma questão de amadurecimento. Comecei a escrever de criança. Lembro que tive uma redação premiada, com oito anos de idade, e que tive que fazer várias cópias para amigos e professores. Sempre escrevi e cheguei a ganhar duas bolsas no Ensino Médio (segundo grau na época). Também sempre adorei ler. Tive um pai que adorava ler e me dava livros de presente. Ganhei carteirinha na Biblioteca Pública ainda criança e lia de tudo. Foi lá que conheci Edgar Allan Poe e me apaixonei por este gênero. Anos depois, quando entrei na Faculdade de Letras aprendi que todo bom escritor é, antes de mais nada, um bom leitor. Aprendi também que não deveria ler somente os clássicos (que amo), mas também os contemporâneos.
Aos poucos vamos aprendendo tanta coisa que é impossível não amadurecer na marra. Cada contato que tenho com pessoas diferentes me ajuda a ter outro olhar.
Assim, sei que daria conselhos específicos à Susan de antes. Principalmente pedindo que ela tivesse mais paciência consigo mesma, que não ficasse afobada e que não fosse tão crítica de si. Não gosto de diversos textos meus, mas tenho consciência que foram feitos no momento certo. E que não poderiam ser diferentes naquela época. Como também trabalho como coaching literária sei que cada caso é diferente e que conselhos diversos são dados para cada escritor específico. Além disso, existem diversos fatores que influenciam na escrita de cada um.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer é o que estou fazendo neste momento. Um romance infantil, e aqui gostaria de fazer um parênteses pois, para mim, todo e qualquer texto dito infantil é na verdade para qualquer idade. Acredito que cada pessoa (seja de 10, 40 ou 80 anos) lerá o mesmo texto com diferentes interpretações, de acordo com sua experiência de vida e repertório cultural.
Demorei para iniciar este projeto porque fiz uma longa pesquisa sobre o assunto, desde leitura de contos de fadas, livros didáticos sobre estudos de contos de fadas, psicologia dos contos de fadas, mitologias, anotações de ideias, leitura de textos sobre Psicologia Positiva, Filosofia (Cortella, Cury, Pondé, Monja Cohen).
Estou escrevendo um texto que poderá ser lido por diversas pessoas diferentes, mas com pitadas de Filosofia sobre a Vida e a Morte. Assuntos que me interessam.
Um livro que eu gostaria de ler, mas não existe? Hehe este que estou escrevendo.
Mas, na adolescência eu pensava que seria legal ter um livro que tivesse muitos capítulos, e que pudessem ser lidos aleatoriamente. Depois, na faculdade de Letras, descobri que este livro existia: “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar.
Acho que devem ter percebido que falei muito deste escritor. Sim, ele é o meu favorito, junto com Clarice Lispector. Considero estes dois minhas inspirações constantes. Assim, recomendo a leitura dos livros deles e, particularmente, dois deles:
“Continuação dos Parques”, um conto de Julio Cortázar que foi re-escrito mais de dez vezes e que é um dos contos mais curtos dele (se não for o mais curto). Ele é fantástico e é, para mim, um exemplo vivo do nocaute de Cortázar. Depois de ler o conto, procure a imagem de Escher, Galeria de arte. Entenderá quando ler e ver. Escrevi algo sobre isso em alguns artigos e na minha dissertação de Mestrado (Abrindo as portas para ir brincar explorando os Espaços de Final Del Juego).
“A paixão segundo G.H.” – livro de Clarice Lispector que traz reflexões profundas sobre a psicologia feminina. Uma mistura de religião, origem, morte e mutação.
Como eu disse antes, gosto muito de escrever contos. Acho mais fácil do que romance, e tão fácil e profundo quanto poemas. Para mim, os contos são – parafraseando Cortázar: “um tremor de água dentro de um cristal”.
***
Algumas dicas finais para os leitores que buscam a escrita:
OBSERVAR – observem Tudo e Todos. Inclusive a si mesmo. É incrível como as pessoas e coisas podem nos inspirar.
HORÁRIOS – sei que alguns escritores têm horários rígidos (não é meu caso) mas acho fundamental escrever um pouco a cada dia. Perceberão que a cada dia a escrita fluirá de forma mais poética e fácil.
BLOCO – isso para mim é fundamental. Tenho blocos espalhados pela casa, carro, trabalho. Se não tenho um por perto anoto em guardanapo ou até nota fiscal. O importante é não perder a ideia. Anote sonhos (para mim, eles são trabalhos da mente que não para).
CHAVÕES – fuja deles. A não ser que pretenda desvirtuar, brincar com eles.
AMBIGUIDADES – crie vários caminhos ou possibilidades para enganar o leitor. Manipule as leituras dele revelando o final surpreendente.
NOMES – eu acho que os nomes nunca podem ser aleatórios ou apenas para homenagear algum familiar ou amigo. Tudo deve ser muito bem pensado na escrita. Busque nomes no dicionário etimológico de nomes e sobrenomes, que tenham a ver com a história.
OBJETOS – tudo que você inserir na escrita deve ter um objetivo (seja pela simbologia dele ou pelo uso mais tarde no conto). Se você coloca um lampião em um capítulo e nunca mais fala dele, o leitor ficará perdido.
TÍTULOS – seja criativo nos títulos. São eles que vão prender – ou não – a atenção do leitor. Exemplos: Tímpamen(um conto meu), Queda da Própria Altura(de Sergio Tavares) ou Me roubaram uns dias contados(Rodrigo Souza).
VOZ – pense em que voz cairá melhor na sensação que você quer transmitir no seu escrito. Passivo ou ativo? Veja que falar “O cão mordeu o homem” é bem diferente de “O homem foi mordido pelo cão”. Veja qual voz fica melhor para os diversos momentos.
INÍCIO e FINAL – o principal é você ter uma ideia (mesmo que minimamente) do início e do final, assim o meio da história tende a sair de forma mais fácil (mesmo que você mude o final depois).
IMPACTO – se você trouxer um clímax para o início da escrita também pode surpreender o leitor. Mesmo que tenha outro clímax depois. Lembre-se do início de Metamorfose(Kafka).
HUMOR – mesmo que você esteja escrevendo um suspense, o humor pode dar uma quebra necessária para que o leitor tenha uma catarse maior.
TEMPO – escreva, guarde, releia, guarde de novo, releia. O tempo pode ser um tempero interessante nessa culinária da escrita. Pode fermentar certas ideias.
AMIGO – mas um amigo SINCERO.
CORTE – a escrita é nosso filho que criamos com amor e é muito difícil às vezes cortar, mas isso pode ser necessário. Aliás, quando dou aulas de escrita criativa percebo que alguns textos poderiam parar após a metade da escrita. Alguns finais ficam explicando coisas que não são necessárias. Deixe o leitor ter um trabalho de interpretação também.