Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Hoje tenho pouca rotina, meus horários de aula se alternam a cada semestre e uma escala rígida de produtividade é pouco viável. Um início de dia ideal é começar a jornada me dedicando, mesmo que apenas um pouco, ao livro que estou lendo no momento, em geral um romance: é uma sensação muito particular, quase aquela felicidade clandestina do conto da Clarice Lispector, como se a vida convocasse para todas as tarefas mais urgentes, mas a gente foge para encontrar com o nosso amor verdadeiro.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Nenhum ritual, absolutamente desritualizado. As manhãs para mim sempre foram a grande promessa do dia, o momento em que a mente parece estar mais aberta, mais alerta e mais propensa a criar e articular ideias. Mas concretamente há anos venho trabalhando nas janelas que consigo, sem necessariamente atender a esse chamado matutino. Tenho três filhos e dou um doce a quem me provar que consegue ter uma rotina rígida nessa paisagem tão cheia de vozes as mais variadas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Para mim metas são uma categoria ligada ao comércio, ou ao mundo corporativo. O pensamento não funciona assim, ele é mais livre e menos sujeito ao ritmo do produtivismo que cada vez mais nos assola. Na universidade, já há algum tempo somos cobrados a entregar “produtos” (o nome é esse), cumprir números e demandas que dizem menos da qualidade da reflexão e mais da necessidade de atender a uma exigência ligada à quantidade. Então ficamos tentando criar um possível equilíbrio entre duas esferas que se esbarram e concorrem: de um lado, o desejo legítimo da pesquisa e do tempo de maturação que uma reflexão séria demanda, e, do outro, a velocidade da publicação de artigos, comunicações, preparo de aulas, participações em bancas, produção de pareceres e mesmo o trabalho administrativo que muitos de nós exercem dentro da instituição.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Compilar notas é um deleite, o momento da colheita de ideias, das alternativas fervilhando, da promessa de fertilizar um solo de possibilidades. De futuros. É uma etapa muito agradável. Identificar o material, mapear a bibliografia, transitar entre as fontes, um pouco essa liberdade de andar pra lá e pra cá. Fuçar mesmo. E tem a ver com fantasiar tudo de melhor que poderíamos fazer. É a hora do delírio, permitido e bem-vindo. Em algum momento, isso tudo tem que virar concretude, e aí a fantasia cede lugar ao real… O material e a reflexão devem ser colocados de pé, então começa a luta. Nessa hora muitas vezes a gente desiste, porque entre a fantasia e a luta com as palavras pode-se perder a batalha. Mas, como nos ensinou Drummond, “lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã”. A peleja é boa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Seguindo um pouco o raciocínio acima, o bloqueio se relaciona com essa imagem maravilhosa que fazemos das possibilidades futuras, e na verdade a batalha é com a gente mesmo, vencendo o medo, a autocrítica, a preguiça (sim, ela é um item importante!), o prazo…eu não sou de procrastinar, tenho um lado prático e espartano. Mas com o passar dos anos identifiquei um gatilho no meu processo de escrita (e identificar não tem necessariamente a ver com erradicar, mas pelo menos ter consciência dele) que seria mais ou menos assim: se estou mergulhada em um texto, com um rendimento razoável, e de repente tenho uma epifania, ou boa ideia, o que seja. Minha primeira reação é abandonar o trabalho, arrumar algo para fazer. Como se o susto daquela possibilidade me travasse e eu precisasse de uma pausa, ou fuga, ou um intervalo para me afastar daquilo. A gente é muito maluco. Por isso, nada melhor do que a prática e o autoconhecimento para pelo menos saber como é nosso funcionamento. Lembro de como foi aterrador escrever os primeiros trabalhos acadêmicos (e sempre adorei escrever, nunca foi algo penoso), a sensação de total falta de intimidade com aquilo…hoje releio minha dissertação de mestrado e até gosto, mas nunca vou esquecer o pânico envolvido.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, mas sempre passa algo… tenho o maior respeito e gratidão aos meus leitores, eles são parte fundamental na avaliação do que escrevo (Giovanna Dealtry, Graça Ramos, Alexis Parrot, meus eleitos: ouço atentamente comentários e acolho. A gente está muito exposto na escrita. É o que há de mais íntimo e revelador, nos colocamos inteiros ali, e claro que há uma dose de narcisismo e de expectativa daquilo ser lido e apreciado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Notas à mão, escrita no computador. Não sou uma louca pela tecnologia, mas tiro proveito dela na pesquisa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ler, ler, ler. As ideias vêm dos lugares mais inesperados. Também ouvir muito…às vezes uma conversa com sua amiga querida te traz uma ótima ideia. Um filme, uma série, uma imagem. Uma música. Além daquele processo louco: quando pesquisamos algo, aquilo vira uma linda obsessão, e tudo parece se relacionar com seu objeto, você se abre intensamente para tudo o que se refere a ele. Mas tem outra coisa. Uma volta de bicicleta ou um mergulho no mar às vezes podem ser mais produtivos do que ficar sentada olhando para as paredes, bloqueada. Acredito muito na sabedoria do corpo e em como ele te afeta na escrita e no pensamento. Minha cabeça está plantada em um corpo, não esqueço disso nem por um minuto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não diria nada…meu erros e desacertos são parte do que sou, a imaturidade vinha cheia da expectativa de melhorar, então está tudo bem. Ter filhos e me ocupar bastante deles obviamente mudou meu modo de trabalhar. Tudo vira uma mistura, não existe o escritório fechado e uma placa “proibida a entrada, gênio trabalhando”, como os homens sempre fizeram, ou pelo menos como sempre vi acontecer. É tudo junto, filho na sala, chamando, e você lá, tentando pensar! Por outro lado, vejo meus alunos e alunas hoje, e obviamente me enxergo neles, eu lá atrás. A ansiedade da escrita, os bloqueios, a insegurança. Oriento dissertações de mestrado e teses de doutorado, e sei que há momentos em que o único a fazer é deixar que vivam essa angústia, não tem fórmula mágica para isso, o que posso é apoiar e incentivar que se aventurem. O prazer do trabalho feito, a delícia de concluir essas etapas, isso faz valer a pena. Não se trata somente de produzir conhecimento (o que em si já é muito) mas também de mergulhar mais fundo neles mesmos, porque nada mais desafiador do que essa hora em que você se depara com seus maiores medos e desejos. Porque pesquisar, para que pesquisar, como pesquisar… e, sobretudo, o que fazer com tudo isso hoje, em um cenário em que o ensino e a pesquisa estão sistematicamente sendo desvalorizados e o Brasil mergulha na vergonha de ter um presidente que se orgulha da ignorância e da estupidez. Responda a isso tudo e você amadureceu cem anos!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou há mais de dois anos mergulhada em um projeto sobre o oceano como espaço político, pensando em como esse lugar simbólico é atravessado por vozes silenciadas historicamente: são sujeitos escravizados, imigrantes, refugiados. Quem pode transitar, aonde chegam. O tema me fascina, ao mesmo tempo que frustra por não conseguir me dedicar como gostaria à pesquisa. A velha história… Portanto, o livro que quero ler é aquele que escreverei. Tenho muito material, já dei cursos no âmbito da pós-graduação sobre isso, escrevi alguns textos sobre o assunto. Estou exatamente naquele momento, umas três respostas acima, entre a fantasia das possibilidades e a concretude da pesquisa. Espero que a gente se fale daqui a… um ano, e convido você para o lançamento!