Solange Padilha é poeta.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou uma pessoa um pouco assistemática. Quero dizer que repito as mesmas coisas que faço no cotidiano, porém, a organização pode ser completamente diferente. Com a pandemia essa tendência exacerbou-se. A única coisa que praticamente não muda é tomar meu café da manhã, minha refeição preferida. Mas me ocorre usar o celular antes disso para escrever alguma coisa do momento, algo que me sensibilizou ao abrir os olhos. E, de repente, o tempo perde seus marcadores. Esses tempos de distanciamento social super hiper necessário, criou no recolhimento forçado que parece infindável e afloram sensações que beiram, exagerando, o quase encarceramento. Isso inicialmente foi bem complicado e tive de reestruturar a rotina. E, paralelamente aguçou profundamente a relação com o em torno. Fiquei mais sensível ao que vem do lá de fora. Se a luz do dia que invade meu des/mundo, num estalar dos dedos meu olhar se torna mais agudo, amplifica os indicadores da vida e aguça a vontade de escrever. Ai, muitas vezes o simples registro desse momento e a estupefação de não saber quanto tempo tudo isso vai durar, se modifica e surgem novas perguntas e tentativas de responder através da escrita. A pandemia modificou minha rotina matinal também porque as relações com a comunidade virtual se estreitaram e passaram a ter importância maior, assim como seguir o fluxo da informação do que está acontecendo no Brasil e no mundo. Por outro lado, a sobrecarga das atividades domésticas colocou muitos projetos em compasso de espera. A questão do tempo ficou ainda mais presente e a aguda. Assim como a noção do outro e de liberdade. Sim, meu escrever abrange a continuidade de relações sociais, trocas de trabalho ou minha militância feminista que perdura desde os anos 70.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Em tempo de pandemia o que determina os meus horários mais fecundos é quando consigo dar conta das mil tarefas que tenho de cumprir no dia a dia. Moro sozinha, tive problemas de saúde e ainda tenho certas limitações, de modo que preciso me desdobrar para dar conta do recado. Estando liberada, posso mergulhar em certas profundezas. Mas já gostei muito de passar madrugadas em claro escrevendo. O silêncio da madrugada, me traz a sensação de que sou a única pessoa acordada…e todos dormem. Isso aguça em mim o sentimento de liberdade. Até hoje, quando estou em plena atividade criativa pode acontece de ir dormir bem cedo e colocar o despertador para três horas da madrugada, em busca de deixar correrem soltas as possibilidades da imaginação. Mas em situação normal escrevo seja cedinho, seja à tarde até ir dormir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias, mas tenho períodos de maior intensidade, depende do que estou escrevendo. Também acontece de ficar um tempinho parada, copilando. Mas de uns 10 anos pra cá, tento manter o hábito de escrever todos os dias. Não tenho meta, sigo o fluxo do meu corpo, da disposição e do próprio trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo poemas vou juntando um pouco aleatoriamente e a partir de uma certa quantidade, faço uma limpeza e começo de fato a trabalhar. Geralmente faço isso em bloco e a partir de determinada estágio, vou trabalhando um por um separadamente. O processo vem da maneira como evolui a relação interna e exterior ao poema. Existem processos que seguem a trilha das sonoridades, outros são costurados por uma construção narrativa que, muitas vezes são depois desconstruídas. Alguns poemas ou lampejos poéticos estão tão colados a camadas muito profundas que preciso descobrir a sua língua ou linguagem. Esses mandam em mim, rárárá. Quando escrevo contos é mais ou menos o mesmo sistema. Entretanto, no caso dos contos, o que me move não é a busca de uma unidade temática. Reescrevo incessantemente. E sou muito lenta para terminar um trabalho. É uma espécie de bricolagem de muitos fios e materiais. Pesquiso bastante, desde o significado de uma palavra, e o dicionário é sempre uma ferramenta essencial, aos sinais associativos e gosto de pesquisar imagens, fotografias, quadros, etc. para compor ideias escritas. A pesquisa é um tipo de lâmpada que reflete diferentes luzes, e, por vezes, atua como o infravermelho no processo de revelação da fotografia em preto e branco. Claro que o processo é totalmente diverso se escrevo um ensaio sobre a mulher ou textos mais políticos e quando escrevia teses acadêmicas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas são um assombro. Acho que a melhor maneira é deixar passar o tempo. Mas existem travas e travas. Quando um poema atola, acontece, deixo quieto e depois leio sem me preocupar, pesquiso e tento mexer até que consigo pelo menos me aproximar do meu sentimento e vou trabalhando. Alguns textos ou poemas, realmente precisam amadurecer. Eu diria que a grande maioria. É um pouco imprevisível, por isso tento trabalhar com o máximo de liberdade de prazos e autonomia. Se você entende projetos mais longos um romance, eu nunca escrevi. Textos longos somente acadêmicos. Até o momento.
Não gosto nada de adiamentos. Em geral faço um esforço de manter os compromissos. Detesto quem adia compromissos sistematicamente. Mas, nesse momento a realidade muitas vez impõe mudanças de planos em cima da hora e, na medida do possível, tento me adaptar na medida do possível.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é como falei anteriormente incessante. Enquanto o texto estiver em minhas mãos, vou revisá-lo. Perco a conta.
Em geral trabalho muito solitariamente. As vezes mostro, quando me sinto insegura, quando tenho uma dúvida e quero sentir a reação de outra pessoa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a usar o computador em 1992, era uma ferramenta que se tornou fundamental para escrever a tese. Mas, durante muito tempo, todos os meus rascunhos de poesia ou textos ficcionais foram rascunhados a mão e depois a máquina de escrever, manual e em seguida elétrica. Hoje, faço muitos rascunhos direto no computador e depois imprimo e vou fazendo as mudanças e correções. De todo modo, o papel é fundamental, imprimo muito para trabalhar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ah! Puxa! Essa é uma pergunta … da experiencia com o mundo, da imaginação, das heranças de outros escritores, da memória, do acaso, e por aí vai. Não tenho hábitos criativos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Inicialmente eu escrevia para mim, em cadernos de anotações, agendas e até em cadernos de pautas musicais que eu achava lindos quando garota, como até hoje. Passei um longo período seja escrevendo textos acadêmicos, sejam jornalísticos, principalmente relacionados à condição da mulher e sobre aspectos narrativos e da arte de grupos indígenas brasileiros. Voltei escrever poemas para publicar há uns doze anos. Acho que isso foi um erro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever e ler esse livro sobre uma determinada época histórica do Brasil Cujos dois fios que se cruzaram, meu pai e minha mãe, me deram nascimento. Um misto de história autobiografia e ficção. Mas isso é muito trabalhoso. Acho que não terei tempo! Meu cotidiano é muito exigente e não consigo viver exclusivamente para a literatura. Tenho alguns textos para organizar e publicar. Agora mesmo estou trabalhando no meu primeiro livro de contos. Sou bastante lenta.