Socorro Nunes é poeta e professora da Universidade Federal de São João del-rei.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa após as 10h da manhã, quando realmente acordo, mesmo tendo me acordado mais cedo. Todos os dias, invariavelmente, por volta das 6 da manhã, passo os olhos nas principais noticias dos dois jornais que assino, selecionando aquelas que tratam da situação politica do país. O ritual mais importante é o de tomar um café da manhã reforçado, ópio sem o qual não sobrevivo. Antes de subir para o escritório, deixo encaminhado o almoço, que tenho o prazer de preparar todos os dias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ser professora universitária, com dedicação exclusiva, não me permite abrir mão do trabalho matinal, dado que a agenda está sempre ocupada com várias atividades. Mas são as tardes especialmente nubladas da pequena São João del-rei que mais me instigam à leitura e à escrita, ferramentas com as quais lido diariamente por ofício ou pura fruição. Não tenho qualquer ritual, a não ser o de me sentar em frente ao computador e iniciar o rascunho de algum texto acadêmico. Porém, na escrita de poemas, jamais inicio no computador, escrevo no meu bloco de notas do celular e desde que escrevi todo o meu segundo livro de poemas dessa forma – Miragem (CEPE, 2015), não consigo mais abrir computador para isso. É como se o celular fosse parte da identidade do meu processo de escrever poesia. Assim, sempre que troco de aparelho o primeiro aplicativo que eu baixo é o bloco de notas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nunca me impus qualquer tipo de meta. Não funciono dessa forma nem nas atividades da vida cotidiana tampouco com relação à escrita. Escrevo vários tipos de texto desde os mais burocráticos até a escrita poética, entretanto, somente a escrita acadêmica ocorre diariamente. Por dever de ofício, tenho de escrever textos acadêmicos que serão em algum momento publicados e o controle do tempo, nesse tipo de escrita, não é realizado apenas pelo autor, mas por vários sujeitos que integram a cadeia de publicação de textos acadêmicos. Já na escrita literária o processo é completamente diferente, sem qualquer tipo de controle, a não ser o do meu desejo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita acadêmica difere totalmente do processo de escrita literária. Para a escrita acadêmica costumo ter como base a pesquisa que estou conduzindo e isso implica muita leitura e anotações de textos relativos ao objeto de investigação, que no meu caso, é o campo da leitura e da escrita em espaços urbanos e no campo, na escola ou na universidade, com alunos brasileiros ou estrangeiros. Não costumo me sentir travada no processo de escrita, reconheço que uma página em branco pode causar alguma ansiedade, mas normalmente lido bem com isso porque escrever é das coisas que mais gosto de fazer. Meu processo de escrita é muito intenso, uma vez concluída a primeira versão, logo no dia seguinte volto a ler o texto e fazer os ajustes que julgo necessários para garantir a qualidade da versão final, que será sempre avaliada pelos meus pares. Portanto, não me demoro muito na escrita de um texto acadêmico. Já na escrita de poemas não obedeço a qualquer planejamento, nem rotina, nem algo que signifique controle. Não escrevo diariamente, tampouco tomo notas pensando em produzir um texto no futuro. Assim como no texto acadêmico, a base para a escrita literária é a leitura literária, essa sim, realizo praticamente todos os dias. Escrevo poemas com a mesma intensidade e prazer com que produzo um artigo científico.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que já tratei disso anteriormente, não me reconheço muito como alguém que se sente travada na realização de algum texto escrito nem mesmo com o medo de não corresponder às expectativas seja em projetos longos ou curtos. Na área acadêmica estamos acostumados à avaliação dos nossos escritos e lidamos sempre com prazos curtos para a escrita e prazos razoavelmente longos para o desenvolvimento de uma pesquisa. Como bolsista produtividade do CNPq preciso prestar contas a cada três anos do projeto financiado e é dentro desse prazo que me movo em direção à escrita e à publicação. Caso algum artigo seja negado, tomo isso como uma referência para a produção de novos textos ou até mesmo a reescrita. Não me causa ansiedade a avaliação do outro nem nos textos acadêmicos nem na escrita de poemas. Considero-a parte inerente e fundamental do processo de escrita, uma vez que sem o olhar do outro, que deve ser no sentido dialógico, não somos, não produzimos, não nos reconhecemos, não nos realizamos, não somos sujeitos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos acadêmicos várias vezes porque enquanto escrevo estou em processo de revisão, mas não costumo encaminhar a outro leitor, uma vez que já contarei com a leitura dos pareceristas da revista a qual o artigo será submetido. Escrever implica revisão, independente do texto que está sendo escrito. É um processo. Quanto aos textos poéticos, costumo pedir a leitura de alguém com quem divido minha vida cotidiana há algum tempo. Esporadicamente, peço que alguns amigos do campo literário também o façam. Meus três livros de poemas passaram por processos semelhantes antes de eu decidir publicá-los. Embora desde jovem tenha iniciado o rascunho de poemas, somente em 2015 iniciei a sua publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Creio que já respondi a essa pergunta. Computador para a escrita acadêmica, bloco de notas do celular para a escrita de poemas. Não escrevo mais nada à mão, a não ser anotações de algum evento acadêmico do qual esteja participando. Por outro lado, confesso que sou colecionadora dos mais diferentes bloquinhos de papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias no campo da pesquisa nascem da imersão cada vez mais aprofundada no campo acadêmico, seja por meio da leitura, da participação em algum evento, do contato com diferentes realidades educacionais, com professores da educação básica de escolas públicas, por exemplo. Para que eu me interesse, o contato precisa indicar uma tensão clara em relação ao fenômeno social que pesquiso: a relação linguagem e educação. Já na poesia, minhas ideias surgem geralmente da conjuntura social, política, das experiências de vida (já morei em muitos lugares) e isso é uma fonte inesgotável. Mas, sobretudo surgem de alguma palavra ou expressão do texto literário que esteja lendo. A palavra tem uma força devastadora de mobilização da minha sensibilidade que me leva ao desejo de rascunhar imediatamente um poema. Por isso o celular está sempre à mão quando leio um texto literário. Opero muito com a transfiguração dos sentidos atribuídos por algum autor a uma determinada palavra. Tenho prazer em produzir novos sentidos e imagens, nesse momento nasce a ideia de um poema. Que será relido algumas vezes até poder integrar um corpo editável e publicável na forma de livro. Não concebo a produção literária sem a leitura literária como fundamento básico. A escrita nasce da qualidade dos passos que você dá na leitura literária.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. A escrita é um processo não linear, não se desenvolve de forma unidirecional. Aprendi na pós-graduação a importância do interlocutor para a escrita e isso mudou o meu modo de escrever. Quanto mais eu penso no possível leitor dos textos acadêmicos mais condições tenho de escrever de forma coerente. Na poesia, o processo é diferente, embora a presença de um leitor modelo, no sentido atribuído por Umberto Eco, sabemos da dificuldade que se enfrenta no Brasil para que um texto literário fure a bolha e seja lido no cotidiano da população, por leitores reais. Ou até mesmo na escola. Assim, escrevo poemas desejando ser lida por muita gente, mas sei que isso é uma ficção. Infelizmente. Por isso milito na universidade para inserir cada vez mais a leitura literária como linguagem importante na formação dos futuros professores com os quais trabalho. Criei o sarau VOZ POÉTICA e esse vem se mantendo em duas edições ao ano. Criei uma disciplina em que o programa é a leitura de textos literários para discutir e fruir, sem qualquer compromisso com avaliação. A mim mesma eu diria, voltando aos anos noventa, quando me enxergo como alguém que escreve, eu a aconselharia a nunca esquecer o leitor, em hipótese alguma.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ter mais tempo para organizar novo livro com os textos já escritos e isso não tem a ver com ter mais tempo para escrever, porque quando vem o desejo de escrever poesia em simplesmente paro qualquer coisa que esteja fazendo para me dedicar a isso. Significa simplesmente ter tempo para lidar com o processo de organização e de edição, que nos toma boa parte da energia, mas como estou nesse momento fazendo um novo pós-doutorado na UFSCAR e em Londres, preciso me disciplinar para dar conta de produzir o relatório. Quanto ao livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe, considero que todos os livros que me esperam na nossa biblioteca não existem enquanto não forem lidos. Assim, o livro que gostaria de ler está bem perto, porém não passa de um amontoado de páginas esperando um leitor ou leitora que lhes dê vida.