Simone Saueressig é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho sim: algumas pessoas não começam o seu dia sem uma boa xícara de café. Bem, eu não consigo começar o dia sem um chimarrão. Parece que as ideias não “ligam” sem ele. Tento manter uma rotina de meditação e caminhada, mas não é sempre que consigo fazer isso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho nenhum ritual, é tudo muito simples. Desde que o PC colabore, está tudo certo. Há alguns anos eu procurava manter uma rotina de escrever pelas manhãs, mas isso nem sempre é possível, até porque a questão das caminhadas entrou na agenda há alguns anos e preciso mantê-las. Como não há como fazer ambas coisas à tarde, em função de trabalho, o jeito é ir equilibrando como dá. Contudo, quando estou envolvida com algum projeto mais específico, dou prioridade à escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro escrever todos os dias, nem que seja alguma coisa, uma crônica, o trecho de alguma narrativa, até poesia cometo de vez em quando. Já me impus metas, e as cumpri. Contudo, tenho uma vida meio caótica, então não é fácil manter uma meta de escrita. Mas, de novo, depende do projeto e do prazo de finalização do mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como sou do contra, geralmente vou da escrita para a pesquisa, do jeito mais errado que você imaginar. É muito raro eu tomar notas antes de escrever. Talvez tome “notas mentais”. Às vezes imagino uma história, e até algumas mais complexas, mas não as escrevo imediatamente. Deixo passar algum tempo para ver se elas “sobrevivem”. Se isso acontecer, se a história imaginada se mantiver mais ou menos intacta, geralmente é porque acho a ideia boa e só então é que invisto nela. Mas já aconteceu de eu me fixar em uma imagem, imaginada ou real, ou uma música, e usar isso como estribo para a construção de uma narrativa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, eu mantenho uma coisa muito clara quando escrevo: um dia de cada vez. Eu sei que existe a tal da inspiração, mas acho que nada substitui o trabalho. Então, se eu tenho um projeto mais longo, eu realmente me dedico, mas não fico ansiosa com ele. Normalmente sou cumpridora de prazos. Na maior parte das vezes, se a gente se programa, dá para cumprir as metas. Quanto à expectativa dos demais… já me preocupei muito com isso. Mas, com o passar do tempo, a gente aprende que não dá para entrar na cabeça das pessoas. Não tem como você saber o que elas realmente estão esperando de um texto, porque depende do caminho que fizeram até chegar ao momento em que escolheram um texto seu. Eu escrevo para crianças, adolescentes e adultos. Então, quando um adulto pega um livro meu para ler, eu nunca sei se ele já vem de ter lido um outro texto adulto (e vai ter uma expectativa “X”) ou de ter lido um texto infantil ou infanto-juvenil, e espera encontrar algo completamente diferente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei, depende do texto. Há textos que eu reviso dezenas de vezes e quando estão finalmente publicados, tenho vontade de recomeçar do zero. Outros, eu praticamente dou por terminados, quando gravo o último capítulo. Com “B9”, um romance de Ficção Científica, foi exatamente assim. Foi o texto que eu menos revisei em toda a minha vida e, excetuando problemas pontuais de acentuação e uma que outra pontuação, eu não mexeria em nada daquela história.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu vou direto no computador. Gosto muito de tecnologia e acho até que perco muito tempo fuçando em coisas informáticas que não me dizem respeito. Mas, para mim, esse mundo cheio de celulares, tablets, PCs e wi-fi se parece bastante com o mundo da Ficção Científica que eu consumia na adolescência. Às vezes irrita, mas, no fundo, é um grande quebra-cabeças.
Já, escrever à mão é mais raro. A mão é muito lenta para a ideia. Geralmente enquanto eu ainda estou na metade de uma linha, já tenho bem claro o final do parágrafo, e se não escrever logo, tudo se perde. Mesmo quando anoto algo em um papel, o que não é comum, termino levado o mais breve possível para o teclado, para dar um formato ao texto. Por outro lado, o bom o computador é que a gente pode reescrever milhares de vezes a mesma coisa, sem ter de copiar tudo de novo. Eu lembro de quando escrevia na máquina de escrever. Gente, era um horror, porque um texto revisado nunca é revisto apenas uma vez só. São várias versões. Tenho originais que foram “batidos na máquina” umas três ou quatro vezes, e cada um tinha em torno de 80 a 100 páginas. Acho muito cansativo, porque há partes do texto onde não há nenhuma alteração e no entanto precisavam ser datilografadas junto com as demais. Era muito cansativo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Ora, as ideias estão por toda a parte. A gente é que tem de manter o olhar afiado para elas. Uma imagem, uma música, uma cena no metrô… sei lá. Quase qualquer coisa pode dar a partida para uma história ou uma crônica. A gente precisa se manter aberta para isso. Óbvio que alguns detalhes nos chamam mais a atenção do que outras. Tenho um amigo que tem o olhar aguçado para coisas estranhas, que passam desapercebidas da maioria das pessoas. Eu acho que tenho um olhar afiado para crianças, como elas se comportam, como elas estão no mundo. Tento manter um olhar positivo, porque o cotidiano desta segunda década dos anos 2000 é de uma crueldade imensa… aliás, o problema não é apenas a crueldade, mas a onipresença da informação. Através dos celulares você pode se informar sobre quase qualquer parte do mundo, a qualquer momento, em qualquer lugar, e eu acho que não estamos preparados para essa onisciência. Neste momento, as notícias sobre a barragem de Brumadinho dominam. Todo aquele horror e tudo o que circula em torno desse horror, da boçalidade à incoerência, passando pela tristeza completa, pela falta de informação ou, o que é pior, pela ignorância recheada de “achismo”, que é a ciência brasileira por excelência. Eu estou preparada para ler sobre trezentas pessoas esmagadas e sepultadas vivas? Se for uma história fictícia, é possível lidar com o sentimento, mas em forma de notícia, me sinto incapaz. A Literatura tem algumas vantagens. Você sabe que não é real (a menos que seja um livro reportagem ou algo do estilo) e ao final de todas aquelas páginas, ele termina (e continua dentro de você, se for bom o suficiente), o que pode parecer bobo de dizer, mas é um fato chave. Todos os dramas, tragédias, terrores, findam com a última página e só ficam as coisas boas que o livro te contou e você pode seguir adiante, para outro livro, para outra coisa. Mas no cotidiano as páginas se reescrevem continuamente, sobretudo se estamos lidando com um país que não aprende com seus erros. E não adianta você dizer que não vai mais olhar para isso, porque você não terá alternativa. A onisciência estará na palma da sua mão. Por outro lado, há um foco, nessa onisciência, então a quantidade de informação sobre uma determinada coisa termina tolhendo as demais. Coisas boas dificilmente recebem tanta atenção da mídia, em qualquer plataforma. As conquistas humanas e científicas ficam cada vez mais nubladas a impressão que dá é que vivemos em um mundo sem saída. Mas basta dar uma espiada em novidades médicas, em notícias sobre o espaço, sobre novos mecanismos que auxiliam pessoas a voltar a andar ou a refazer a sua vida, que a gente se dá conta de quem há coisas boas, sim, acontecendo. Só que a gente não vê. Se fosse no século XIX, Stephen Hawking não teria sobrevivido para ser a maior mente científica, ao lado de gente como Einstein ou Newton. Mas ele sobreviveu e isso não é apenas a conquista de um homem, mas de toda a Humanidade. Olhar para essas pessoas, para essas histórias me dá alento e me ajudam a tentar manter viva a criatividade sobrecarregada com essa dose de tragédia que nos chega a cada dia.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que com o passar do tempo meu texto evoluiu. Escrevo melhor hoje do que há trinta anos, mas também é verdade que há trinta anos eu tinha muito mais gás. Porém, muito do que escrevi no início ficou atirado pelo caminho, contos que não foram finalizados, diálogos sem começo ou fim, essas coisas. Quando olho para esse material, percebo que de alguma maneira eram exercícios. Eu não os via assim, mas é exatamente isso o que eram. Não há como fazer alguma coisa sem praticar, sem errar e aprender com o erro. Eu acho que tenho muito para aprender ainda, e a Arte está sempre se modificando. Em todo o caso, eu diria para a garota que começou a escrever (e para essa pessoa que agora escreve para vocês): mantenha-se ativa. Não deixe de escrever, mas não pense que a primeira coisa que você escreveu é a definitiva, porque não é. Aliás, se você escrever algo que é definitivo para você, em qualquer parte do caminho, por que continuaria a escrever?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma ideia de romance histórico, mas nunca começo porque quando penso na quantidade de pesquisa que terei de fazer me dá uma preguiça macunaímica e eu não faço nada. Quem sabe ali adiante? Quanto ao livro que eu gostaria de ler e ainda não existe… é o livro pelo qual o escritor brasileiro não vai ter de penar. A indústria nacional é muito difícil, e ter livros publicados não garantem nada. Eu gostaria de não ter de provar continuamente se o que eu faço é bom ou ruim. É o público quem tem de decidir isso, não o escritor.