Silvia Simone Anspach é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina matinal fixa, constante. Minha atuação atual como profissional liberal e palestrante pressupõe uma agenda bastante flexível. Academicamente, sou agora professora universitária aposentada. Com isso, sou também, ocasionalmente, convidada a participar de bancas examinadoras, dar entrevistas e palestras em universidades. Além disso, como pequena empresária e arrimo de família, tenho de lidar com muitos papeis, contas e burocracia, o que odeio fazer. Essa mescla de ocupações e preocupações me impede de manter uma rotina. Sobretudo, faz com que haja dias em que eu tenha uma quantidade absurda de coisas a fazer, enquanto em outros, conviva com uma agenda quase vazia – que trato de preencher com a solução de todas as pendências possíveis. Sou hiperativa. 220 Volts.
Quando minha agenda permite, procuro iniciar o dia com orações, meditação e leitura de pelo menos algumas páginas de algum livro edificante. Depois, tudo pode acontecer. Para organizar-me, mantenho uma lista das tarefas que tenha de ser minimamente cumpridas a cada dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Definitivamente, não sou uma pessoa notívaga. Trabalho muito melhor no período da manhã; e à tarde, até escurecer. Depois, meu rendimento tende a cair. Às vezes, assim mesmo, acabo por produzir muito à noite, o que me acelera mortalmente, desencadeando insônia e agitação, que resultam numa espécie de ressaca no dia seguinte. Lembro-me aqui de uma amiga minha, que conheci no período em que vivi na Inglaterra. Ela costumava dizer que devíamos seguir o exemplo das aves, empoleiradas no entardecer, preparando-se para o sono. Idealmente, este seria o meu próprio padrão: Preparar-me cedo para meu ciclo de sono e descanso. Mas infelizmente, raramente a vida me permite que o siga, o que tende a me tirar do eixo.
Normalmente, não tenho um ritual de preparação para a escrita. Às vezes, sim, medito sobre algo que me veio à mente antes. Daí preparo um lugar à mesa para iniciar a escrita de maneira mais “formal”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta de escrita diária. Tendo a escrever em períodos concentrados, ao longo dos quais, produzo textos massivamente e de maneira quase compulsiva. Fora de tais períodos, laivos de inspiração me surgem do nada ou motivados por alguma leitura, vivência, emoção, contato humano. Ou ainda por sonhos. Neste caso, eu os persigo, e eles resultam em textos isolados – poemas, contos, crônicas ou resenhas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pesquiso somente para a produção de textos técnicos. Nesse caso, procuro aprofundar meus estudos, antes de por qualquer coisa “no papel”. Mas em termos de textos criativos, seja em prosa seja em poesia, o texto vai se escrevendo por si só, dita as regras inicialmente, fora de meu controle. Conforme ele vai tomando forma, vou aparando as arestas, imprimindo-lhe características estruturais mais intencionais. Lembro-me que num dos contos que compõem meu livro “A Última Esquina do Tempo”, o texto (intitulado “De aromas, amores e romãs”) me conduziu a plantar uma árvore no centro da narrativa. Fiquei um bom tempo sem saber o que fazer com aquela árvore. Num certo momento, ela me levou a compor um conto de Páscoa.
Às vezes, surgem na minha mente palavras ou sentenças ou até parágrafos isolados. Neste caso, escrevo-os antes que os esqueça e os guardo, para posterior trabalho e reflexão. Se não conseguir levá-los adiante imediatamente, deixo-os em “stand-by”. Um dia os reencontro e eles frutificam.
Aliás, mesmo em meus textos técnicos, acadêmicos, ao começar a escrevê-los, a escrita me conduz mais depressa que minha própria mente ou controle. Tanto que, se eu tiver que dar uma aula ou palestra sobre o meu próprio texto, tenho que estudá-lo cuidadosamente antes, como se ele tivesse sido escrito por outra pessoa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não me imponho prazos angustiantes. A escrita é para mim um hobby e um prazer. Quanto às expectativas ou à receptividade do texto, elas não me sufocam em nada nem me inibem. Há sempre quem goste e quem não aprecie algo. Lembrando Nelson Rodrigues, “toda a unanimidade é burra”. Um texto criativo não pode ser submetido a um torniquete ou a um padrão, caso contrário, ele deixa de ser criativo. Jorge Luís Borges postulava que um texto é o conjunto de leituras que se faça dele. Concordo com este grande mestre da literatura, tradução e teoria literária. Uma vez produzida, a obra não mais nos pertence e democraticamente assume as mais diversas feições que o leitor lhe imprime, submetendo-se, também, às suas variadas abordagens críticas.
Se em algum momento, minha mente criativa “trava”, se enfrento momentos de deserto e secura, dedico-me a outras atividades, até que a inspiração volte a bater à minha porta. Não forço nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Normalmente, reviso inúmeras vezes. Em muitas ocasiões, assim que produzo um dado trabalho. Em geral, deixo-o, então, “descansar” e não penso mais nele. Quando volto a ele, encontro novas arestas a serem aparadas, acréscimos a serem feitos, elementos a serem condensados, etc.
Ocasionalmente, produzo alguns textos que me vêm num “jorro”, de uma só vez e que já nascem “prontos”. Nestes casos, me surpreendo, porque eles não demandam nenhum tipo de revisão. Este foi o caso, por exemplo, de meu poema “Amor In)finito”, que foi lido no último encontro da ASES (Associação de Escritores de Bragança Paulista) e acabou sendo parte de uma pequena publicação do encontro. Outros vêm quase prontos, e só exigem alterações pouco significativas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Incialmente, manuscrevo minhas ideias. Sem caneta e papel, as ideias não fluem. Risco, rabisco, acrescento, elimino elementos ainda no papel. Passo a primeira versão para o computador. Em alguns casos, enquanto vou digitando, já encontro coisas a serem modificadas e as altero diretamente. Em outros, imprimo o arquivo, e o leio e releio, seguindo os procedimentos de que falei na minha resposta anterior.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Já respondi parcialmente a esta questão acima. Elas vêm de leituras, sonhos, vivências, sensações, emoções como eu já tinha dito antes. Mas vêm também de situações inusitadas que eu enfrente, de epifanias, de contatos marcantes com pessoas. Originam-se frequentemente de minha formação em música, arte pela qual tenho paixão, e de minha admiração pelas artes plásticas. Originam-se, também, fortemente de minha ancestralidade ao mesmo tempo católica e judaica. Minha criação dialoga abertamente com a psicologia analítica junguiana e a psicanálise, bem como com a filosofia. É marcadamente intertextual e sinestésica.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Durante a infância e adolescência, escrevia poemas. Poemas sobretudo românticos, confessionais. Mais tarde, produzi textos acadêmicos, com um jargão bastante técnico, que ora me afastaram da produção criativa ou a tornaram subsidiária de ideias mais radicais, oriundas da teoria literária e da semiótica. A longa doença seguida de morte de meu marido me conduziu à poesia novamente como processo catártico. Foi durante este período, também, que descobri minha vocação para a prosa. Minha prosa é, assim, filha da poesia e do sofrimento. Prosa poética com enredos rarefeitos. Consegui produzir mais recentemente alguns textos em prosa mais linear e enredos mais “palpáveis” como um treinamento para tornar minhas ideias mais acessíveis e menos densas. Mas meu forte é mesmo a poesia e a prosa poética.
Não conseguiria dizer nada a meus primeiros textos, nem àqueles que compuseram as fases subsequentes de minha produção criativa e acadêmica, pois creio que todas as etapas pelas quais passei foram igualmente necessárias para chegar onde estou. Aliás, não creio que tenha chegado a lugar algum. É tudo um só processo, que ainda continua em aberto e em movimento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meus contos são curtos. Nunca escrevi um romance e invejo (no bom sentido) quem consiga fazê-lo. Porém, até agora, essa não pareceu ser minha vocação.
Quanto ao livro que gostaria de ler, há inúmeros, incontáveis, muitos deles “na fila” em minhas prateleiras. Outros, sendo encomendados ou ambicionados. Leio avidamente montões de livros. E sei que pensar em um livro que não existe seria impossível: Já contamos com uma produção infinita de textos. E abarcar a todos em nosso espaço-tempo de vida seria inviável. A literatura humana é um poço sem fundo, um voo para a transcendência e o infinito. Tudo o que existe e não existe é dito por uma biblioteca universal – Biblioteca de Babel, diria Jorge Luís Borges – onde todos os possíveis e impossíveis podem conviver. Jamais poderemos esgotar essa pluralidade que supera todos os nossos sentidos, nossas expectativas, nossos padrões de gosto, nossas crenças, nossas convicções, nossa cognição, nossa experiência. O que não existe já está aí, contido nos livros já produzidos. E ainda existirá no que está por vir.