Silvia Regina Dowgan Tesseroli de Siqueira é cirurgiã-dentista, professora da USP, neurocientista e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina começa cedo, antes das 6 horas da manhã. Às 7 horas, costumo já estar trabalhando no computador, exceto por duas a três vezes na semana em que realizo atividades físicas das 7 às 8 horas. Concentro boa parte do meu trabalho de escrita neste período, dividindo outros horários com atividades de orientação, acompanhamento de alunos, atividades clínicas de pesquisa entre outros. Mais para o final do dia, evito permanecer no computador uma vez que procuro dormir cedo e a luz da tela compromete o sono. Então, é nesses momentos silenciosos da noite que dedico ao estudo, no qual incluo leituras científicas, filosóficas, literárias, materiais de pesquisa, enfim, tudo que compõe minhas fontes de consulta e de formação. Quando surgem ideias para escrever que podem contribuir para as questões nas quais estou trabalhando, faço anotações à moda antiga, papel e caneta. Aliás, este é um hábito frequente: anotar frases e ideias assim que elas surgem para que eu as utilize nos escritos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim, o melhor período do dia para trabalhar é pela manhã. É quando a mente está descansada e aberta, pronta para a atividade intensa. Assim, está naturalmente inclinada para a escrita, o que portanto independe de um ritual específico. Entretanto, posso apontar o meu planejamento diário enquanto preparação.
Os conteúdos nos quais estou trabalhando variam muito, desde escritos mais científicos em inglês ou português a textos técnicos ou não, mais voltados para um público geral. Sou extremamente organizada e procuro me antecipar aos prazos, o que diminui a pressão para trabalhar, especialmente quando há uma demanda mais intensa. Não há bom resultado escrito quando as coisas são feitas às pressas ou sob pressão. Assim, a cada dia de trabalho já tenho de antemão qual o conteúdo no qual irei me dedicar, permitindo uma fluidez de produção contínua.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta específica para a escrita diária rotineira, mas sim uma meta que corresponde ao meu planejamento dos conteúdos que preciso preparar e entregar, entrelaçada com aqueles projetos mais pessoais, como livros ou artigos de revisões, e que exigem maior dedicação durante uma determinada fase. Então, posso dizer que escrevo bastante todos os dias, mas que há períodos em que é necessária maior concentração por estar trabalhando em um projeto mais complexo ou mais longo. Tenho facilidade de concentrar-me e realmente deixo-me envolver profundamente em cada projeto, que gosto de ir do início ao fim, preferencialmente sem interrupções com outros conteúdos cuja temática é alheia ao projeto em questão. Deixo-me envolver pelo conteúdo, e mesmo quando não estou escrevendo, ele flui em meu subconsciente, o que me leva a frequentes anotações de ideias nos mais variados momentos do dia. É como se a mente trabalhasse naquele conteúdo dia e noite para que haja lucidez e consciência plena nos momentos da escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As questões científicas e filosóficas permanecem vivas em mim constantemente, levando-me a um processo contínuo de leituras e pesquisas buscando solucioná-las ou esclarecê-las. Isso faz com que o processo da escrita caminhe meio em paralelo com o estudo, não havendo intervalo entre um e outro. Entretanto, quando começo um projeto novo ou interesso-me por uma questão nova, posso passar anos guardando anotações e observações em papel até sentir emergir a necessidade de organizá-las e começar a escrever. Esse processo é natural e nunca difícil.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim, escrever, estudar e pesquisar são parte da minha essência. Isso foi sempre assim, desde criança. De certa maneira, é como se, diante de cada projeto, eu fosse impelida a começá-lo por ter sido tocada pelo espanto socrático. Afinal, o projeto começa pela pergunta, e é esta que me move até esgotá-la. Sinto uma ansiedade natural que é a vontade de ir até o fim da questão, buscando informações em todas as disciplinas e conteúdos que possam de alguma forma contribuir, que é um catalisador do processo criativo. Essa motivação é profunda e vem do espírito.
Portanto, não sofro com procrastinação nem medo das expectativas alheias. A escrita é o resultado de um intenso processo da minha consciência, que coloco diante de Deus e à serviço Dele, apenas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso uma ou duas vezes meus textos com bastante atenção, preferencialmente com intervalo de dias ou até semanas, especialmente os escritos mais longos. No caso dos trabalhos mais científicos, os textos passam naturalmente por vários processos de avaliação por pares que os avaliam criteriosamente. No caso dos textos de livros e outros escritos mais pessoais, costumo mostrá-los às pessoas mais próximas antes de submetê-los para publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Procuro não me render à tecnologia e usá-la de forma benéfica. Minhas anotações são feitas com caneta ou lápis, e não abro mão da velha agenda de papel. Entretanto, quando vou começar o texto, trabalho no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A consciência precisa estar aberta para Deus, para o ser, para que se mantenha plenamente criativa. Mantenho um cuidado especial com meu espírito da mesma forma que cuido do corpo: evitando os excessos e alimentando-o com muita leitura, estudo e oração. Assim, sinto-me integrada ao meu sentido da vida e busco voltar a ele sempre que me perco em trivialidades.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A maturidade aprimorou-me em vários sentidos. Ampliei meus conhecimentos e procurei aprofundar minha autoconsciência, o que se reflete na escrita. Minha existência está atrelada à busca pelas respostas que, em parte, consigo colocar na escrita; mas as respostas estão no espírito, e nem sempre podem ser completamente traduzidas em palavras. São essas vivências da consciência humana que procuro passar ao leitor.
A princípio não mudaria nada em relação aos meus primeiros escritos, pois o espírito era o mesmo, embora eu fosse menos experiente. Quando leio esses conteúdos sempre me surpreendo ao perceber que a base das minhas ideias não mudou em nada, embora agora eu tenha aprimorado a forma de escrevê-las.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho sempre vários projetos que gostaria de fazer mas ainda não comecei. Não estão engavetados, mas esperando a emergência e o momento oportuno. Cada um deles terá sua hora certa.
Não consigo imaginar um livro que gostaria de ler mas que não existe por duas razões: primeiro, a verdade e o conhecimento jamais estarão contidas nos livros. A escrita é apenas o vislumbre de parte delas, e o encanto está no mistério permanente desta existência; segundo, há muitos livros, inclusive antigos, que já falaram tudo, enquanto que tantos outros, mais recentes, apenas repetem conteúdos de maneira frequentemente superficial. Há um excesso de conteúdo escrito que torna complexo o garimpo das obras de real valor, o que turva a mente de muitas pessoas de boa intenção.